Pesadelo logístico dificulta esforços de ajuda humanitária na Somália

Milhões de pessoas estão passando fome, pais estão assistindo os filhos morrerem. Enquanto isso, grupos paramilitares estão aterrorizando a região. A situação no Chifre da África está se tornando cada vez mais desesperadora. Organizações de assistência estão enfrentando dificuldades em suas tentativas de ajudar centenas de milhares de necessitados, mas é uma corrida contra o tempo, e parece que está sendo perdida. A reportagem é da revista Der Spiegel e reproduzida pelo Portal Uol, 28-07-2011.

Nos campos de refugiados, membros dos grupos de assistência encontram doentes e crianças fracos demais para engolirem a comida. Eles veem os pais tendo que enterrar seus próprios filhos após morrerem de fome. E o número de pessoas que morrem antes mesmo de chegar ao campo é muito maior. O mundo vem observando enquanto as pessoas no Leste da África passam fome. Agora, a comunidade internacional está finalmente tomando uma atitude. A Alemanha dobrou sua ajuda à região afligida pela escassez e apelos dramáticos de organizações de ajuda estão começando a surtir um impacto. Os efeitos mais desastrosos da seca estão ocorrendo na Somália, e a situação está piorando a cada dia.

Enquanto isso, mais de 1.000 somalis chegam por dia ao campo de refugiados deDadaab no Quênia, assim como no campo Dollo Ado, na Etiópia. Outros estão buscando segurança na capital somali de Mogadício, que está em guerra. A Organização das Nações Unidas está planejando lançamentos aéreos de suprimentos à cidade instável, incluindo uma pasta de amendoim rica em proteína urgentemente necessária.
A ajuda, porém, não está alcançando as pessoas que ainda estão presas nas áreas de crise do país. No Sul da Somália, cerca de 2,2 milhões de pessoas estão passando fome. O grupo militante al-Shabab domina grande parte da região e impede que a assistência emergencial chegue aos que sofrem.

Mas será que o aumento das doações em dinheiro vai se traduzir em mais ajuda? O “Spiegel Online” descreve o pesadelo de logística que precisa ser superado para se entregar os suprimentos –e os problemas que os membros das organizações de assistência enfrentam a cada passo do caminho.

Onde a ajuda pode ser fornecida da melhor forma?

Em todo o Chifre da África, milhões de pessoas enfrentam a ameaça de morrer de fome. A organização de uma campanha de ajuda para tanta gente seria difícil até mesmo em um país pacífico com infraestrutura intacta, mas partes do Leste da África são um pesadelo logístico. A Somália, cuja infraestrutura foi destruída por anos de guerra civil, é especialmente vulnerável.

A Somália não tem um governo central capaz desde 1991. O atual governo não detém o controle de uma série de regiões do país. Mesmo a capital de Mogadício é parcialmente controlada por milícias, o que torna quase impossível a distribuição de suprimentos. No Sul da Somália, a situação é tão ruim que o Programa de Alimentos Mundial da ONU (WFP) retirou-se completamente da região no início de 2010: as milícias simplesmente não permitiam que eles desenvolvessem seu trabalho.

A situação nos vizinhos Quênia e Etiópia, países que também sentem os efeitos da seca, é melhor. Neles, organizações internacionais de ajuda tiveram a permissão de erguer campos de refugiados, onde podem distribuir alimentos, tendas, cobertores e panelas. Mas eles também têm problemas: o campo de Dadaab, no Quênia, para onde muitos somalis fugiram, já está hiperlotado.

“No Quênia, há mais certeza que o alimento vai chegar com segurança”, diz Azel Dreher, professor de economia e diretor de política e desenvolvimento internacional da Universidade de Heidelberg. “Eles têm muitos refugiados concentrados em uma área, o que leva a uma distribuição mais eficaz do que se os víveres fossem enviados de aldeia em aldeia.”

As pessoas que chegam aos campos de refugiados no Quênia e na Etiópia estão bem melhor do que as que ficaram na Somália – mas isso também cria o perigo que não vão quererem voltar para seu país depois. “Se você doa comida no Quênia, você atrai cada vez mais pessoas”, diz Dreher.

Rainer Lang, do grupo alemão de alívio Bündnis Entwicklung Hilft, também adverte sobre o perigo da dependência da assistência. Ele argumenta que se as pessoas não tiverem a oportunidade de trabalhar, elas vão passar a depender da ajuda. Portanto, é importante possibilitar que as pessoas “continuem a viver em seu ambiente normal”, diz ele, por exemplo distribuindo ração animal e água para manter o gado nas áreas de seca.Simone Pott, porta-voz da Welthungerhilfe, organização de ajuda alemã que combate a fome no mundo, admite que, para superar a crise, os refugiados deveriam receber ajuda dentro das fronteiras da Somália. “Mas a situação ali é caótica demais”, diz ela.

Quem está fornecendo ajuda na África?

Muitas organizações internacionais estão trabalhando com parceiros locais para prestar assistência. Muitas vezes, são organizações não governamentais menores, de moradores que conhecem a região.

Na Somália, as agências afiliadas ao governo são o lugar errado para as organizações internacionais buscarem parceria na prestação de assistência. A Bündnis Entwicklung Hilft, por exemplo, tem uma política de não trabalhar com instituições do governo em muitos lugares. Em tais alianças, é impossível controlar para onde vai o dinheiro, diz Lang. Ele adverte que as verbas “podem se perder em uma série de canais”.

Bündnis Entwicklung Hilft exige que suas organizações parceiras mantenham registros detalhados. “Dessa forma, temos o controle sobre o que acontece com o dinheiro até o fim”, diz Lang. As pessoas que trabalham no local informam quais itens são mais necessários – seja comida, cobertores, lonas ou até mosquiteiros.

Onde comprar os suprimentos?

Lang ressalta que não faz sentido enviar dinheiro cegamente a uma região: é essencial identificar as necessidades concretas das pessoas por meio de funcionários no local. Quando as necessidades são estabelecidas, todos os detalhes têm que ser determinados em termos concretos. Digamos que uma organização de ajuda queira fornecer água e comida a 3.000 famílias recém chegadas de Mogadício por um período de três meses. Os cálculos podem ser feitos da seguinte forma: cada família vai precisar de 30 kg de arroz, 30 kg de feijão, 15 litros de óleo de cozinha e alguns barris de água.

Uma questão especialmente controversa é a de quanta comida deve ser comprada localmente. O WFP, por exemplo, obtém parte dos itens que distribui no Sul da África –inclusive milho, trigo e painço. “É melhor comprar localmente para ajudar as estruturas regionais”, diz a porta-voz do WFP na Alemanha, Katharina Weltecke. Outras organizações também apontam as vantagens de adquirir os bens na região, já que pode ajudar a sustentar os agricultores africanos e economizar em custos de transporte.

Dóris Fuchs, da Universidade de Münster ,na Alemanha, diz que importar itens da Europa ou dos EUA pode ter consequências terríveis, porque pode “destruir os mercados locais e até levar à continuidade da crise”. O problema, contudo, é que há limites para quanta comida pode ser obtida em determinadas regiões –se for demais, pode-se gerar uma nova crise de alimentos. “Quando muitas organizações compram alimentos ao mesmo tempo, os mercados locais ficam sobrecarregados e os preços sobem”, diz Lang. Como resultado, menos pessoas podem comprar comida.

Como a ajuda está sendo distribuída aos necessitados?

Todos os dias, caminhões carregados de suprimentos partem de Nairóbi e Addis Ababa para os campos de refugiados. Apesar de inúmeras organizações assistenciais terem depósitos nas principais cidades, muitos estão ficando vazios. “Precisamos urgentemente de mais apoio financeiro”, diz a porta-voz da WFP, Weltecke. A falta de fundos significaria que os suprimentos não poderiam mais ser transportados e teriam que permanecer no armazém –onde não servem para nada. “Uma escassez dramática vai ocorrer se mais fundos não forem aprovados”, diz Weltecke.

Nos últimos dias, o Bündnis Entwicklung Hilft começou a oferecer ajuda para além de Mogadício, expandindo para a região central de Galguduud. “Os rebeldes estão permitindo que trabalhemos ali. Isso mudou há uma semana, porque as pessoas estavam morrendo”, diz Lang.

É perigoso, mas ele diz que escoltas armadas não fariam diferença. Elas aumentariam o custo do transporte rodoviário e provavelmente não conseguiriam lidar com grandes ataques. Além disso, qualquer uso de violência destruiria a única vantagem que as organizações de assistência têm sobre os grupos militantes: sua neutralidade. De outra forma, seriam automaticamente arrastadas pelo conflito, acredita Lang.

A ONU está considerando entregas aéreas, na qual aviões lançam os suprimentos do céu. Mesmo essa tática, porém, é perigosa –e cara. É impossível controlar quem recebe os pacotes, que poderiam inadvertidamente acabar fornecendo meios de lucro para grupos militantes. Assim, um lançamento aéreo que caísse nas mãos erradas poderia gerar mais conflitos na região. Seria melhor que os suprimentos fossem distribuídos pelas forças de paz na ONU em terra. Mas com os atuais riscos, simplesmente não é uma possibilidade.

Como a ajuda está chegando às pessoas?

A entrega dos suprimentos nas diferentes regiões em si não é suficiente –a distribuição pode ser um desafio igualmente grande. “A questão chave sempre é: as organizações de assistência têm acesso aos que precisam de ajuda? E estes estarão presentes para a distribuição de alimentos?”, diz Simone Pott, da Welthungerhilfe.

Em Mogadício, o WFP está operando a partir de dois centros de segurança vigiados por forças de paz da ONU. Cerca de 100 refugiados aparecem por dia para receber comida.

Grupos de assistência que querem trabalhar fora de Mogadício e distribuir suprimentos nas aldeias vizinhas primeiro precisam resolver as questões em relação à distribuição com a comunidade. “Não podemos simplesmente aparecer, deixar os suprimentos e ir embora”, diz Lang, da Bündnis Entwicklung Hilft. É preciso “ter cuidado para que a distribuição de alimentos não leve a conflitos entre as pessoas –porque aí então só os fortes prevalecem”.

E mais, se o chefe do clã na aldeia negar o pedido da organização de supervisionar a distribuição, é difícil fazer qualquer coisa. E se uma gangue chegar a apreender os suprimentos recém distribuídos, não há nada que possam fazer.

Os assistentes estão em risco constante de serem atacados e roubados, ou virarem reféns de militantes da al-Shabab. E o dinheiro não ajuda. “Se você começa a dar propinas, você simplesmente inicia um ciclo vicioso”, explica Lang. O professor Dreher da Universidade de Heidelberg concorda que é improvável que as propinas tenham grande impacto. “Qual é o incentivo de aceitar suborno se eles podem simplesmente pegar todos os suprimentos e mais os funcionários –por quem podem pedir um resgate?”

Quais lições para o futuro podem ser aprendidas com a catástrofe?

“A fome não é um escândalo de ontem, é um escândalo de hoje e, se não fizermos nada agora, será um escândalo de amanhã”. Essa foi a advertência feita por Bruno Le Maire, ministro de alimentos, agricultura e pesca da França, durante a conferência de crise da ONU na segunda-feira (25) sobre a situação no Leste da África.

Mas qual seria a melhor ajuda no longo prazo? O que torna a situação no Leste da África especialmente ruim, dizem os especialistas, é a dificuldade em prover simultaneamente alívio de emergência e ajuda para desenvolvimento de longo prazo. “O foco urgente é em salvar vidas humanas, fornecer ajuda diante da catástrofe, em vez de ajuda de desenvolvimento”, diz Dreher. De acordo com a Organização de Agricultura e Alimentos (FAO), ao menos US$ 1,6 bilhão de dólares são necessários só para lidar com a atual crise.

Há dificuldades enormes para implementar melhorias duradoras no Leste da África, especialmente na Somália. “O desenvolvimento de longo prazo de suprimentos agrícolas teria que ser garantido. Mas isso é extremamente difícil de fazer em um “Estado fracassado”, diz Dreher. Mesmo que a estratégia fosse de plantio de culturas resistentes à seca, por exemplo, nada garantiria que os lucros da colheita não iriam para o grupo mais próximo de militantes.

Uma opção seria emprestar apoio militar ao governo de transição na Somália, para se obter a estabilidade necessária para que o desenvolvimento da agricultura sustentável pudesse ser atingido. Tal iniciativa, casada com melhorias na infraestrutura, poderia ajudar a convencer os refugiados a voltarem para sua terra natal.

Entretanto, uma estratégia centrada apenas na Somália não iria suficientemente longe. Também precisam ser levadas em conta questões do comércio global e de mudança climática. Por enquanto, porém, simplesmente deter o fluxo de refugiados seria uma enorme conquista.

Se a temporada de chuvas deste outono não chegar, a situação pode até piorar, advertePott da Welthungerhilfe. Na ausência da chuva, “talvez ainda não tenhamos chegado ao pico da crise”.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=45808

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