Carne ilegal em terra de índio

A cena se repete duas vezes ao dia. A primeira antes do pôr do sol; a segunda, ao entardecer. A reportagem é de Liana Melo e publicada pelo jornal O Globo, 14-11-2010.

Os anciões da terra indígena Marãiwatsede chegam devagar, agrupam-se em forma de arco, acendem seus cachimbos. Eles são a autoridade máxima entre os xavantes. A reunião ocorre sempre no centro da aldeia, que fica a 150km de São Félix do Araguaia, no Norte do Mato Grosso. O assunto nestes encontros varia conforme a ocasião, mas o idioma é sempre o mesmo: o xavante. Em Marãiwatsede, a tentativa de preservar as tradições esbarra numa lógica econômica perversa: a relação intrínseca entre a pecuária, a soja e a destruição da floresta. Essa combinação transformou a terra dos xavantes no exemplo mais emblemático da contaminação da cadeia produtiva da pecuária e da soja, ambas expoentes do agronegócio no mundo.

A luta dos xavantes contra os fazendeiros se arrasta desde 1998, quando a terra indígena foi homologada. É uma extensão de 165 mil hectares de terra (ou 1.650 quilômetros quadrados), o que representa uma área superior a do município de São Paulo (1.523 quilômetros quadrados). Só que 90% dela estão ocupados ilegalmente. O Ministério da Justiça e a Fundação Nacional do Índio (Funai) identificaram 68 fazendas em Marãiwatsede.

Apenas 11,56% são cadastradas e têm CNPJ acessível. Praticadas ilegalmente dentro da terra dos índios, a pecuária e a soja já desmataram 45% da mata nativa, segundo levantamento do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam).

Frigoríficos continuam comprando ‘carne suja’

O Grupo JBS-Friboi, maior empresa na área de alimentos do mundo, já teve “carne suja” na sua cadeia produtiva. Só em outubro de 2009 é que as empresas líderes, incluindo Marfrig e Minerva, passaram a rastrear a carne. Em julho deste ano, ficou pronto o primeiro relatório de monitoramento, quando os três grandes do setor excluíram 221 fazendas. Só no Mato Grosso, o JBS tirou da lista de fornecedores 17 propriedades, das quais cinco em terras indígenas, entre elas Marãiwatsede.

— O volume de gado adquirido de fazendas suspensas representa 2,8% de sua capacidade mensal de abate na região — calcula Angela Garcia, da área de Meio Ambiente e Sustentabilidade do JBS.

Como JBS, Marfrig e Minerva são, segundo o Greenpeace, responsáveis por 36% do abate feito na Amazônia Legal, isto significa que ainda resta enquadrar 64% dos frigoríficos do país.

— Os frigoríficos continuam se alimentando de carne suja. São empresas que vendem seus produtos para os consumidores, por meio de supermercados que ainda não limparam suas prateleiras de passivos ambientais e sociais — denuncia Márcio Artrine, da Campanha da Amazônia do Greenpeace.

Soja também pressiona terra indígena no Mato Grosso

Depois de apontar no relatório “A Farra do Boi na Amazônia”, em julho de 2009, a indústria da pecuária na Amazônia como o maior vetor de desmatamento do mundo, o Greenpeace continua pressionando, só que agora para enquadrar o varejo. Por enquanto, apenas o Walmart tirou do papel o compromisso assumido de não comprar mais carne ilegal, mas o percentual de vendas é irrisório.

— Por conta de todo o desafio da pecuária em relação ao desmatamento da Amazônia, a carne é o primeiro item do programa “Qualidade Selecionada, Origem Garantida” — diz Christianne Urioste, diretora de Sustentabilidade do WalMart, explicando que o grupo fez uma parceria com o Marfrig para lançar a marca Campeiro, a primeira com rastreabilidade.

Segundo o cacique da aldeia Marãiwatsede, Damião Paradzané, a fazenda Rio Preto seria uma das principais incentivadoras da criação de gado dentro da área indígena.

A propriedade está localizada no limite da terra dos xavantes, escoa 120 mil cabeças de gado por ano e aparece na lista do Ministério da Justiça e da Funai. O GLOBO tentou contato com o dono da fazenda, sem sucesso.

Um dos maiores infratores ambientais já identificado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mora no Mato Grosso e tem fazenda na terra indígena Marãiwatsede.

Os Penasso, da fazenda Colombo, constam da lista de punições com autos de infração por desmatamento ilegal. Recentemente eles foram alvo da Operação Soja Pirata.

Numa área contínua de 3,6 mil hectares de terra foram apreendidas 14 mil toneladas de soja. A apreensão seria um caso isolado, não fosse o fato de 30 das 78 terras indígenas do Mato Grosso estarem localizadas em municípios com mais de dez mil hectares de soja.

— A lógica da apreensão é o carro-chefe das nossas operações, não mais as multas — explica Bruno Barbosa, coordenador de Fiscalização do Ibama, comentando que as multas isoladamente não vinham mais surtindo efeito .

— Os Penasso foram multados em R$ 100 milhões, mas o efeito mais devastador é o confisco do produto, porque inibe outros infratores.

Diagnóstico do Centro de Monitoramento de Agrocombustíveis da ONG Repórter Brasil constatou que a soja é a “principal causa do desmatamento no cerrado e da degradação ambiental nas cabeceiras do rios que drenam as terras indígenas, colocando em risco à segurança alimentar dos índios”.

— Degradação, erosão, empobrecimento e desertificação do solo, contaminação de cursos d’água e disseminação das queimadas são alguns dos efeitos colaterais da sojicultura na terra indígena — avalia Verena Glass, autora do estudo “Impactos da soja sobre Terras Indígenas no estado do Mato Grosso”, da Repórter Brasil.

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=38363

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