SPI – Um século de contradições e ambiguidades

Egon Dionísio Heck *

Adital – Apesar de algumas figuras heróicas produzidas pela política assimilassionista brasileira, em um século de existência, podemos dizer que esta foi uma maneira hábil, silenciosa, de matar os índios, defendendo-os. Está claro no nascedouro do Serviço de Proteção aos Índios, SPI, e nas expressões e atitudes de um de seus arautos e heróicos lutadores, marechal Candido da Silva Rondon, a defesa da vida dos índios contra os massacradores invasores de seus territórios. E a maneira humanista de defender suas vidas seria “integrá-los” na civilização ocidental cristã colonial, e desta forma ajudando-os (ou obrigando-os) a deixarem de ser o que eram, ou seja, povos indígenas originários vivendo há séculos nestas terras. E o mais importante que desta forma se garantiria a ocupação da terra “brasilis” com um rastro de sangue menor, ou pelo menos, com massacres mais civilizados.

Seria demasiado pretensioso querer trazer os principais lustres registrados em um século de política indigenista da República Federativa do Brasil. Os países de América espanhola e inglesa não se deram ao luxo de passar um verniz, estabelecer marcos legais de defesa dos povos indígenas naqueles tempos em que o preço do progresso, das frentes de expansão econômica significava claramente a eliminação dos obstáculos que eram os povos indígenas. Foi então que o SPI nos seus primórdios teve a difícil missão de defender os índios para garantir a expansão da colonização sobre seus territórios. A idéia genial foi de confinar os índios e colocar no meio deles colonos, que os ensinassem a trabalhar (ocidental e colonialmente). Não restam dúvidas de que apesar da intencionalidade e resultado prático desse política, surgiram figuras heróicas e honestas que resistiram a esse mar de contradições e foram leais e firmes defensores dos povos indígenas. É o que acontece até os dias atuais, quando , ao completar um século, a FUNAI se propõem a mudanças de direção, buscando se readequar à Constituição a aos novos ventos da modernidade.

É emblemático que no site da Funai nada conste a respeito da data comemorativa dos cem anos do SPI.

Novos ares

Na fronteira do Brasil com o Paraguai, num dos confinamentos criados pelo SPI no início do século vinte, na segunda década de sua existência, na aldeia Kaiowá Guarani de Sassoró, acontece um dos momentos importantes e silenciosos dessa memória de morte e resistência.

Os confinamentos indígenas no Mato Grosso do Sul são um exemplo claro das contradições e ambigüidades em que se tem desenvolvido esse século de política indigenista oficial. Os algozes e máscaras apenas mudaram de figurantes. A sigla poderia muito bem receber novos significados, como Serviço do Progresso dos Invasores, ou como na década de sessenta, já envolta e enlameada em extrema corrupção, deu origem à FUNAI, que por alguns índios foi chamada de Funerária Nacional do Índio. Os Kaiowá Guarani são, como a grande maioria dos mais de duzentos povos indígenas no país, beneficiários e vítimas dessa política. Dois exemplos ilustram bem a pratica dessa política: hoje a média de terra em que vive esse povo é de menos de meio hectare e para ensiná-los a trabalhar foram levados os índios Terena, que até hoje vivem juntamente com os Kaiowá Guarani na Terra Indígena de Dourados. E para elucidar ainda mais essa contraditória missão da política de defender os invadidos sem contrariar os interesses dos invasores, temos hje o jogo em que o governo federal tem que fazer de conta que cumpre a Constituição demarcando as terras e tem a ferrenha oposição do governo do Estado articulando os grandes interesses nacionais e internacionais do agronegócio da cana, soja, gado…

É neste contexto, que acontece a reunião do Conselho da Aty Guasu na aldeia de Sassoró, com o intuito de fazer avançar a luta pelos direitos e reconquista da terra. Porém o grito e desejo vão bem além de um gol, de belas jogadas… É um grito de vida envolto em eco de socorro “nos deixem viver! Reconheçam e demarquem nossas terras! Não continuem assassinando nossas lideranças! Não deixem impunes os assassinos de nossos parentes! Não matem a terra e os animais! Não destruam o pouco que resta de mata nativa! Não poluam e matem nossos rios que correm sobrem a terra como o sangue que corre em nossas veias! Esse é o nosso grito de vida!”

No contexto de jogo do Brasil, rumo ao hexa, como está estampado na Escola Indígena, são desafiados não apenas a somar no grito de milhões, mas de enfrentar com realismo o dilema de serem mais brasileiros sendo mais Guarani, da grande nação Guarani sul-americana

Egon Heck
Movimento Povo Guarani Grande Povo
Aldeia Sassoró, 20 de junho de 2010


* Assessor do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) Mato Grosso do Sul

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=48743

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