O campeonato na língua Paumari e o revigoramento político dos povos do Médio Purus, por Oiara Bonilla*

“para haver um mundo basta haver pessoas e emoções.
as emoções chovendo internamente no corpo das pessoas,
desaguam em sonhos. (…)
a esse mundo pode chamar-se “vida”.”
Ondjaki – Os Transparentes

*para o Combate Racismo Ambiental

Entre os dias 16 e 18 de setembro de 2015 aconteceu o segundo Campeonato na Língua Paumari, organizado na aldeia Santa Rita, na beira do rio Purus, Terra Indígena Paumari do Lago Marahã, no município de Lábrea (AM). Esta segunda edição da experiência levada a cabo pela primeira vez em julho do ano passado demonstrou que os Paumari estão se organizando e se fortalecendo politicamente, processo que pode ser observado na região toda, desde a fundação da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (FOCIMP), em 2011, e do renascimento do movimento indígena regional que havia sido fortemente abalado, na década de 2000, pela extinção da primeiro organização indígena (OPIMP – Organização dos Povos Indígenas do Médio Purus) por conta dos processos decorrentes dos convênios de saúde firmados na época com a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA).

Historicamente invisibilizados e silenciados por séculos de colonização e exploração econômica (principalmente pela sua inserção na economia da borracha e em relações comerciais até hoje pautadas pela economia do aviamento) os povos do médio Purus (Apurinã, Paumari, Jamamadi, Jarawara, Banawa, Deni, Suruahá) vêem se afirmando politicamente no cenário regional e nacional com cada vez mais vigor, fortalecendo seu protagonismo e fazendo ouvir suas vozes para além das pequenas cidades da região.

O Campeonato na Língua Paumari poderia parecer, à primeira vista, um simples evento “cultural” destinado a tornar mais visível um povo indígena pouco conhecido ou como uma festa coletiva divertida e folclórica. Quando o professor Edilson Makokoa Paumari, preocupado com o abandono progressivo da língua paumari pelas novas gerações, idealizou o projeto de um torneio linguístico com o objetivo de propiciar um momento de aprendizado coletivo e lúdico da língua indígena, ele provavelmente não tinha medido as dimensões políticas que um evento como este poderia vir a atingir.

Comissão organizadora trabalhando / Foto: Oiara Bonilla
Comissão organizadora trabalhando / Foto: Oiara Bonilla

A realização deste Segundo Campeonato é fruto da atuação de uma comissão organizadora do evento, formada por mais de dez homens e mulheres paumari, professores e lideranças, moradores das aldeias e da cidade. Essa comissão, com o apoio da Federação Indígena, se fortaleceu ao longo do ano e pressionou os apoiadores para que o Campeonato acontecesse. Reunindo-se regularmente para discutir a realização do evento, essa comissão acabou se constituindo como uma articulação forte (entre os Paumari das aldeias e da cidade), sendo levada a discutir outras questões, incluindo problemas de terra ou questões políticas regionais mais amplas. Nesse sentido, o Campeonato já impulsou um processo político interno crucial para este povo. E isso não parece parar apenas por aí.

O Campeonato tornou-se um evento político em, pelo menos, mais dois sentidos. Como afirmou Christian Crevels, do Conselho Indigenista Missionário, no dia da abertura, o “campeonato é um acontecimento que fala sobre orgulho, orgulho de ser indígena, orgulho de falar sua própria língua”. Nessa região, onde os povos nativos eram (e por vezes ainda são) tratados pelos não-indígenas como pessoas de segunda classe, descritos como seres que falam “gírias” (e não como pessoas falantes de línguas próprias), e como seres cujo grau de humanidade era medido em relação à capacidade de se sujeitar ao regime opressor e paternalista da escravidão pela dívida (quanto mais facilmente dominado e explorado, mais “manso”, e por tanto considerado mais humano), orgulhar-se de ser indígena e de falar sua própria língua é um fato político de grande relevância e com consequências potentes.

Em uma situação diferente dos povos mais isolados desta região (inclusive porque geograficamente situados em regiões de terra firme, afastadas do curso do Purus e de seus afluentes) como os Jamamadi, os Deni ou os Suruahá, os Apurinã e os Paumari iniciaram, inclusive com essa experiência do Campeonato, um processo de reconquista e reafirmação do orgulho por suas línguas e seus modos de vida próprios. Este segundo Campeonato serviu para mostrar que é possível afirmar isso coletivamente, e que independe da língua que se escolhe valorizar.

Foto: Oiara Bonilla

Além da articulação política entre os Paumari (da aldeia e da cidade), ficou visível este ano que o evento proporcionou um momento de encontro entre todas as comunidades do povo. De fato, há cinco décadas, com a instalação da missão evangélica no Lago Marahã, os Paumari vivem uma cisão interna forte, estreitamente ligada a questões religiosas (dividindo aqueles que se definem como “crentes” dos demais, que ainda praticam os rituais e não aderem aos preceitos do cristianismo evangélico), e o Campeonato se tornou um espaço onde todos se encontram, independentemente de suas convicções religiosas ou da distância entre suas aldeias pois, como bem afirmaram e reafirmaram os organizadores, “o Campeonato não é sobre religião, é sobre a nossa língua e o orgulho de ser Paumari”.

O Segundo Campeonato também reafirmou que os povos do Médio Purus estão unidos e dispostos a seguir um caminho de luta política conjunta, para além das diferenças culturais e políticas que os caracterizam historicamente. As lideranças Apurinã participaram ativamente do evento, assim como os Jamamadi que se deslocaram até a beira do Purus para apreciar a festa e apresentar seus cantos e suas danças. Pela primeira vez, os Paumari puderam falar deles próprios, coletivamente, em sua língua e em sua casa, para seus vizinhos indígenas mais próximos, recebendo-os calorosamente e acendendo assim uma chama de entusiasmo para que eventos como este sejam replicados em outros contextos.

Foto: Oiara Bonilla

O coordenador da Federação Indígena (FOCIMP), Zé Bajaga Apurinã, abriu o evento saudando a iniciativa e enfatizando a importância da salvaguarda das línguas, das culturas e da garantia da terra para a luta indígena e para o reconhecimento dos povos do Purus, enquanto povos originários ricos e diversos. Marcílio Batalha Apurinã, vice-coordenador da FOCIMP, afirmou, no encerramento: “Achei realmente esse evento incrível, agora nós vamos fazer uma festa ainda maior e mais bonita e chamaremos todos vocês para participar!”.

O diálogo entre povos não parou por aí, pois o segundo Campeonato ainda contou com a presença de Alberto Alvares Guarani, cineasta indígena, membro do Laboratório do Filme Etnográfico da Universidade Federal Fluminense (Lab. Etno – UFF) e estudante da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FAE-UFMG). Alberto foi convidado, junto com Diogo Campos (Lab. Etno – UFF), para coordenar uma oficina de registro audiovisual com jovens estudantes Paumari e acabou participando ativamente da festa, contando histórias, ensinando danças e partilhando experiências que teve em diversas regiões do país. A oficina incluiu também a gravação de entrevistas sobre o Campeonato e o registro audiovisual de cantos rituais paumari. Esse material será editado e disponibilizado para as escolas paumari da região.

Foto: Oiara Bonilla

O Campeonato na Língua Paumari foi pensado como um evento lúdico e coletivo onde as diversas gerações pudessem se encontrar em torno de sua língua materna. A ideia de fazer um evento competitivo foi uma aposta para chamar a atenção dos mais jovens que, atualmente, estão particularmente atraídos pela “cultura do Jara” (não-indígena), pelas coisas da cidade, pelo consumo e pela tecnologia. E, neste sentido, a aposta deu certo já que os jovens estão cada vez mais envolvidos na competição e nas discussões que ela vem gerando.

Ao longo dos três dias, as nove aldeias, dividas em nove times, apresentaram cantos, danças e histórias do repertório ritual e mítico paumari. No último dia, o júri, também formado por membros de todas as aldeias participantes, escolheu a história vencedora. Mais uma vez, o time da aldeia Ilha da Onça brilhou apresentando a “História do Boto e da origem da plantas cultivadas”, com ilustrações belíssimas. O segundo lugar ficou com a aldeia Estirão e a “História do rapaz que se apaixonou por uma tartaruga”, e o terceiro lugar foi para a aldeia Morada Nova que apresentou a “História da moça de quem os primos não gostavam”. Essas histórias serão transcritas e publicadas em um livro didático que reunirá todas as histórias contadas ao longo dos Campeonatos. Já, a história vencedora deverá ser transformada em animação gráfica realizada pelos Paumari e falada na língua, assim como a vencedora do ano passado. Essa segunda etapa do projeto do Campeonato que visa a produção de material didático em papel e em suporte digital, ainda aguarda financiamento para poder ser realizada.

O Segundo Campeonato também foi palco de discussões e decisões internas importantes para os Paumari. Questões como o uso das pinturas corporais do ritual de puberdade da moça (amamajo) em eventos públicos ou o espaço cedido ao forró e ao brega durante o evento foram objeto de debates acirrados, ao longo dos três dias, colocando o problema do que “faz parte ou não” da “cultura paumari”. No que diz respeito às pinturas, enquanto os mais velhos discordavam do fato de pinturas de outros povos serem integradas ao repertório gráfico paumari, outros propunham a exclusão dos motivos gráficos do ritual de puberdade da moça do conjunto de motivos atualmente usado para encontros interculturais e políticos. Assim, ficou decidido que os grafismos próprios do ritual da moça não seriam mais usados em eventos públicos e que, em contrapartida, os desenhos usados na cestaria tornar-se-iam as “pinturas corporais” adequadas para “brigar com a Funai e com a Sesai” e para encontros culturais diversos.

Debates sobre as pinturas corporais / Foto: Oiara Bonilla
Debates sobre as pinturas corporais

Na noite do último dia, após a premiação dos grupos, seguiram-se diversas votações sobre temas importantes. Além das questões culturais debatidas, também foi discutida a própria continuidade do Campeonato, que foi votada pela grande maioria, assim como a escolha do local do terceiro campeonato. Este será realizado em junho de 2016, na aldeia Ilha da Onça, bicampeã do torneio.  Outras questões foram igualmente debatidas com funcionários da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e, para fechar a noite, os Paumari votaram pela criação de uma Comissão de Articulação e Representação da Sociedade Paumari (CARESOP), destinada a tratar das questões políticas internas do povo, em articulação e colaboração estreita com a Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (FOCIMP).

Foto: Oiara Bonilla

Além de uma bela festa, de um encontro único e alegre, o Campeonato mostrou a todos que os povos do Purus estão vivos, estão cantando, dançando e falando suas línguas, lutando por suas terras e seus direitos. Quem sabe ele não nos ajude também, nós aqui que estamos tão distantes, a deixar de ser surdos e a prestar mais atenção no que dizem essas vozes sobre a vida, as pessoas, as emoções, os sonhos, o mundo.

 

 

 

Foto: Oiara Bonilla

 

 

 

Foto: Oiara Bonilla

Foto: Oiara Bonilla

Foto: Oiara Bonilla

Foto: Oiara Bonilla

Todas as fotos são de Oiara Bonilla.

Comments (1)

  1. Trabalho bonzão ! Tô impaciente em ver o material editado e a animação ! Parabéns a todos !

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