Olhar 43, por Neimar Machado de Sousa

Combate Racismo Ambiental

Os jovens que adolesceram na década de 80 lembram, com certeza, da banda RPM e de seu vocalista rouco Paulo Ricardo. Seu sucesso mais conhecido e que marcou o pop-rock brasileiro, Olhar 43, cantava em 1985: “é perigoso o seu sorriso, é um sorriso assim jocoso, impreciso, diria misterioso, indecifrável, riso de mulher.” Entre os risos indecifráveis de mulher, certamente o mais famoso foi retratado em 1503 pelo renascentista Leonardo da Vinci, La Gioconda, a sorridente. Trata-se de Lisa, esposa de um figurão da burguesia florentina, que foi representa com uma expressão introspectiva e tímida. Naquele tempo, a arte deixou de paparicar os papas e as virgens e passou a registrar beldades, especialmente as que bem pagavam o artista.

Entre os retratos femininos mais atuais, de mulheres que não podem pagar pelo pintor, incluo aquele capturado pela câmera do jornalista e músico Ruy Sposati, Ruspo, de Damiana Cavanha, moradora da periferia de Dourados, MS. Por muito pouco, a história da arte não perdeu a foto para sempre o retrato da cacique quando os equipamentos do Ruspo foram confiscados pelo delegado que não queria que víssemos o despejo do povo Terena em Dois Irmãos do Buriti, MS, dia 18 de maio de 2013.

Voltemos à Damiana. Ela mora, embora o termo seja impróprio, numa margem de estrada e de direito, na BR 463, chamado Apyka’i, pequeno banco sagrado na língua guarani. Damiana é do povo guarani e kaiowá, ou melhor, é o povo Guarani e Kaiowá, pois seu caminho é um livro falado de história regional do Brasil.

Na década de 60, sua família, e muitas outras, foi removida, com a floresta, para dar lugar ao pasto e à soja, apresentados como progresso pelo milagre brasileiro. Damiana foi removida para a Reserva Indígena de Dourados, planejada pelo Estado brasileiro para confinar os índios, sob o pretexto de assisti-los com saúde e educação, remédios para rasurar sua identidade, integrando-os até que não fossem mais índios.

Em 1999, Damiana voltou para sua antiga aldeia, acompanhada de seu marido, sr. Ilário Ascário. Foi despejada violentamente pelo fazendeiro. Desde 2001, vive à margem da rodovia, onde, em 2002, seu marido foi atropelado. Ao tentar sepultá-lo, o fazendeiro colocou todos, os vivos e o morto, num caminhão e os despejou em outra reserva, mais longe, desta vez em Caarapó, MS, aldeia Te’ýikuê. Depois de sepultar o marido, voltou para Apyka’i, à margem da estrada.

A história de seu grupo familiar é tragicamente parecida com aquela dos 70 índios de Rancho Jacaré que foram removidos em um caminhão de gado, mas retornaram rezando a pé de Bodoquena, no pantanal, até Laguna Caarapã, em 1980. São removidos e retornam porque “lá, não tem mais lugar pra nós”.

Nas tentativas de retorno ao seu território, a família de Damiana foi recebida à bala, teve os barracos incendiados três vezes, além de serem frequentemente pulverizados, por engano, com inseticida, chamado pelos fazendeiros de agroquímicos. Mesmo sabendo dessa trajetória, atrevi-me a perguntar à Mona Lisa de Apyka’i, qual o nome de seu olhar? Ela me olhou fixamente nos olhos, certamente lembrou o pai, a tia, os filhos e o neto, mortos e enterrados ali, e respondeu: “olhar abandono”.

Vejam o retrato misterioso de Damiana:

Cacique Damiana. Foto de Ruy Sposati
Cacique Damiana. Foto de Ruy Sposati

Neimar Machado de Sousa é professor na Faculdade Intercultural Indígena da Universidade Federal de Grande Dourados (FAIND/UFGD).

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