Indígenas Awa ameaçados pela tuberculose e por negligências da FUNAI e da SESAI

Vias de Fato

Os Awa (regionalmente conhecidos como Guajá, ou Awa Guajá) são um dos poucos povos indígenas ainda estritamente itinerantes do planeta: afora alguns grupos atraídos e assentados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) em “aldeias” instaladas nas proximidades de seus antigos Postos Indígenas (PI), os Awa são caçadores e coletores, têm uma cultura material despojada e, dispersos nas matas da Amazônia maranhense, vêm recusando-se sistematicamente a ceder aos presentes e atrativos oferecidos pelas frentes de contato que, desde 1913, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e sua sucedânea, a FUNAI, estabeleceram em seu território.

Apenas em meados dos anos 1970 alguns Awa aceitariam, pela primeira vez, os presentes oferecidos no PI Guajá, na Terra Indígena (TI) Alto Turiaçu; o episódio atraiu o interesse de outros Awa das imediações, e em 1976 já eram seis grupos autônomos (num total de 91 pessoas) contatados e assentados nessa “aldeia” da FUNAI. Logo nos anos seguintes, foi drástica a redução da população desta aldeia, por mortes causadas por doenças advindas do próprio contato: de 91 para 25 pessoas, entre 1976 e 1980.

No rastro dos projetos de desenvolvimento e grandes empreendimentos, a exploração madeireira expandiu-se muito na região, acarretando a rápida devastação da floresta dos Awa, sobretudo a partir do final dos anos 1980, com o Programa Grande Carajás.

Após muitas denúncias de movimentos sociais, de várias organizações não-governamentais – especialmente do Conselho Indigenista Missionário (CIMI, que há mais de 30 anos trabalha com este povo indígena) – de universidades, de uma campanha de dois anos da Survival International (organização não-governamental que representa o movimento global pelos direitos dos povos indígenas – t), finalmente, em janeiro de 2014, como desdobramento da chamada “Operação Hiléia Pátria”, a Polícia Federal e Grupo Especial de Fiscalização do IBAMArealizaram a remoção de invasores da TI Caru, e fecharam 173 serrarias ilegais em atividade na região.

Já em abril de 2015, entretanto, o Governo brasileiro voltou a ser foco de denúncias, por força de um surto de tuberculose nas aldeias Awa e Tiracambu, na mesma TI Caru, ameaçando os Awa ali assentados.

Conforme informações do CIMI-MA (AQUI), em 27/12/2014, Amakaria, Jakarewỹj (mulheres) e Irahoa/Jiroho (homem), filho de Jakarewỹj, foram avistados por outros Awa, que caçavam na cabeceira do igarapé Presídio. Estes avisaram os demais na aldeia, e voltaram com 20 outros Awa dispostos a estabelecer o contato.

Já na primeira consulta médica de Jakarewỹj, realizada na aldeia Awa, em 31/12/2014, por um médico do Distrito Sanitário Especial Indígena do Maranhão (DSEI-MA), da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI – responsável pela atenção à saúde dos povos indígenas no país) do Ministério da Saúde – alocado pelo Programa Mais Médicos do município de Bom Jardim – registrou que ela “ficou gripada após a chegada na aldeia” e apresentava tosse com expectoração amarelada. Um primeiro exame de escarro para investigar esta tosse só foi solicitado em 16/1/2015, mas seu resultado nem foi registrado na evolução da paciente; novos exames só viriam a ser solicitados quase 3 meses após, em 10/4/2015 (cujo resultado positivo para tuberculose só sairia em 24/4/2015).

Numa trágica repetição dos episódios anteriores de contato e assentamento de grupos Awa, o estado de saúde de Jakarewỹj deteriorou-se rapidamente neste meio tempo, sem que as equipes da Coordenação-Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC) da FUNAI, e do DSEI-MA, investigassem, chegassem a um diagnóstico e iniciassem algum tratamento.

A publicação de matérias denunciando a situação, no site da Survival International (AQUI, em 20/4/2015) e no site do CIMI (AQUI, em 21/4/2015), marcaram a retomada das pressões sobre a FUNAI e sobre a SESAI, para que alguma providência fosse tomada.

FUNAI/CGIIRC e SESAI/DSEI-MA perderam vários dias preciosos numa discussão sobre quais procedimentos a tomar: entre a proposta de remover as pacientes para a cidade e hospitalizá-las (do médico do DSEI-MA), ou tentar tratá-las na própria aldeia, buscando ali lhes assegurar “uma morte digna” (sic), inclusive, se fosse o caso (da FUNAI/CGIIRC).

Em resposta a essas pressões, finalmente, a SESAI enviou um médico infectologista do DSEI-Ceará, Dr. Rafael Henrique Machado Sacramento (apresentado como especialista da SESAI no tratamento de índios isolados), para a aldeia Tiracambu (TI Caru), para onde haviam sido deslocadas Jakarewỹj e Amakaria. Em 28/4/2015 Dr. Rafael iniciava o tratamento de tuberculose de ambas, e de Irahoa/Jiroho.

Jakarewỹj, entretanto, com estado de saúde já muito grave, acabou sendo removida, juntamente com Amakaria, da aldeia Tiracambu para São Luís, onde estão internadas, desde 18/5/2015, no Hospital Presidente Vargas, cercadas de medidas (tanto por parte da SESAI quanto da FUNAI) de restrição a seu acesso e às informações a seu respeito.

Porque todas essas restrições? O que a FUNAI e a SESAI pretendem esconder?

Para compreender melhor o caso, segue uma breve cronologia dos fatos:

  • Conforme apurado pelo CIMI-MA, entre as décadas de 1980 e 1990 (época da implantação do Programa Grande Carajás), Amakaria, líder deste grupo, se recusou a permanecer na aldeia Awa após o contato feito pela FUNAI e, numa noite, acompanhada de outros Awa, voltaram para a floresta, em que permaneceram até o final de 2014.
  • Janeiro de 2014 – operação da Polícia Federal e Grupo Especial de Fiscalização do IBAMA retirava a maior parte dos madeireiros e invasores da região.
  • 27/12/2014 – na mesma aldeia Awa (TI Caru), Amakaria, Jakarewỹj e Irahoa/Jiroho, filho de Jakarewỹj, foram avistados por outros Awa e ali assentados.
  • 31/12/2014 – primeiro exame de Jakarewỹjpelo médico do DSEI-MA, com descrição de bom estado geral, gripe após chegada à aldeia e tosse com catarro amarelado.
  • 1/1/2015 – novo registro, pelo médico do DSEI-MA, de bom estado geral de Jakarewỹj, mas com palidez, tosse expectoração amarelada.
  • 9/1/2015 – publicação da materia, no site do CIMI: “Ameaçados, Awá Guajá isolados aceitam contato no Maranhão”.
  • 16/1/2015 –solicitado, pelo médico do DSEI-MA, o primeiro exame de escarro para diagnóstico de tuberculose (seus resultados sequer são relatados).
  • 9/3/2015 – em oficina de capacitação da SESAI em São Luís, a equipe do DSEI-MA informava que diagnosticou que Jakarewỹj estaria com uma grave pneumonia.
  • 10/4/2015 – nova requisição do médico do DSEI-MA, para Jakarewỹj,de exame de escarro para tuberculose.
  • 13/4/2015 – Jakarewỹj e Amakaria foram deslocadas pela FUNAI/CGIIRC para a aldeia Tiracambu (para onde já havia sido deslocado Irahoa/Jiroho).
  • 19/4/2015 – a mineradora Vale deu início às obras de expansão e duplicação da Estrada de Ferro Carajás, no trecho que adentra a TI Caru.
  • 20/4/2015 – retomada da pressão em defesa dos Awa e publicação da matéria no site da Survival International: “Desastre sanitário atinge índios recém-contatados no Brasil”.
  • 21/4/2015 – publicação da matéria, no site CIMI: “Awa contatada segue à beira da morte enquanto Funai e Sesai decidem quem, como e onde deve atendê-la”.
  • Prof. Dr. István van Deursen Varga, em email àFUNAI/CGIIRCfez, enquanto médico sanitarista e Coordenador Geral do NuRuNI/PPGSAUFMA, a primeira de várias solicitações de acesso a informações sobre os Awa doentes, oferecendo os serviços de equipe de saúde da UFMA (médico infectologista, médico sanitarista/antropólogo e enfermeiro), e solicitando autorização para seu ingresso na TI Caru, para examinar e atender esses doentes – foi orientado a encaminhar solicitação ao Presidente da FUNAI.
  • 24/4/2015 – resultado exame de escarro de Jakarewỹj: positivo para tuberculose.
  • 28/4/2015 – email de Dr. István à Sra. Roberta Aguiar, da SESAI, solicitando informações sobre Jakarewỹj e demais Awa doentes – NEGADAS, com o argumento de que essas pacientes já estariam tendo acompanhamento médico.
  • 28/4/2015 – Dr. Rafael Sacramento, na aldeia Tiracambu, iniciou tratamento de tuberculose para Jakarewỹj, Amakaria e Irahoa/Jiroho.
  • 30/4/2015 – ofício de Dr. István, ao Coordenador Distrital de Saúde Indígena do Maranhão, solicitando informações sobre Jakarewỹj e demais Awa doentes – NEGADAS POR ORDEM DA SESAI.
  • 17/5/2015 – visita do Dr. István, e do enfermeiro Msc. Raimundo Luís Silva Cardoso (UFMA/Hospital Universitário) ao responsável da FUNAI na aldeia Tiracambu, no povoado Roça Grande, Alto Alegre do Pindaré, e solicitação de autorização para ingresso na aldeia Tiracambu para exame e atendimento de Jakarewỹj e demais Awa doentes – AUTORIZAÇÃO NEGADA POR ORDENS DA FUNAI/CGIIRC.
  • István e Raimundo foram informados sobre a remoção de Jakarewỹje Amakaria, naquele mesmo dia, a Monção, e de lá, de helicóptero, a São Luís, com provável internação no Hospital Presidente Vargas.
  • 20/5/2015 – visita de Dr. István a Jakarewỹj e Amakaria no Hosp. Presidente Vargas. No espírito normal de colaboração entre profissionais de saúde, a própria equipe de enfermagem do Hospital franqueou a Dr. István, como médico, acesso aos prontuários das pacientes (destes é que constam boa parte das informações aqui citadas).
  • Dr. Rafael (da SESAI/DSEI-Ceará), responsável pelos casos, que havia saído para um telefonema, retornou à enfermaria, ao que Dr. István apresentou-se a ele como médico e professor da UFMA, que vem trabalhando com saúde de povos indígenas desde 1981, e explicou que a equipe do NuRuNI/PPGSA/UFMA colocava-se à inteira disposição para auxiliá-lo, no que fosse necessário, no tratamento e acompanhamento destas pacientes. Dr. Rafael, informou a Dr. István que NÃO ESTAVA AUTORIZADO SEU ACESSO ÀQUELAS INFORMAÇÕES, NEM PELA SESAI, NEM PELA FUNAI/CGIIRC; afirmou que desconhecia os motivos desta proibição, mas que teria de cumprir as ordens de seus superiores da SESAI.
  • À saída do hospital, Dr. István recebeu telefonema de Sra. Danielle Soares Cavalcante (do MS/SESAI), de Brasília, que repetiu, alertando-o em tom francamente intimidatório, que NÃO ESTAVA AUTORIZADO SEU ACESSO ÀS INFORMAÇÕES SOBRES ESTAS PACIENTES, NEM PELA FUNAI NEM PELA SESAI, que estas informações seriam sigilosas, por se tratar de índios isolados, e que não admitiriam qualquer divulgação à imprensa.
  • 21/5/2015 – reunião de Dr. István com o Sr. Procurador da República no Maranhão, para relato de todos estes fatos.
  • 8/6/2015 – fomos informados que o filho de Jakarewỹj, Irahoa/Jiroho, também teria apresentado tosse sanguinolenta e sido removido para São Luís.
  • 10/6/2015 – impedido de ter acesso aos pacientes, Msc. Raimundo, em visita ao Hospital Presidente Vargas, era informado que Irahoa/Jiroho não fora internado neste hospital, mas estaria “no DSEI-MA”.

Políticas e práticas da FUNAI e SESAI: “negligências”, conveniência e/ou conivência?

Já do ponto de vista exclusivamente técnico, a seqüência de fatos acima evidencia, em primeiro lugar, a negligência dos sintomas respiratórios constatados e registrados, logo na primeira consulta de Jakarewỹj, pelo médico do DSEI-MA, em 31/12/2014, cuja investigação só se iniciou mais de duas semanas após, em 16/1/2015, de maneira pontual e novamente negligenciada, sendo retomada apenas cerca de 3 meses depois, em 10/4/2015 – o que contribuiu para o grande atraso no diagnóstico de tuberculose, em 24/4/2015, em relação ao registro inicial de seus sintomas, em 31/12/2014 (retardo de cerca de 4 meses, portanto), e no conseqüente início efetivo de seu tratamento, em 28/4/2015.

Seria precipitada e enganosa a conclusão, no entanto, de que a responsabilidade por esta negligência é deste médico do DSEI-MA. Deve se ter em conta que este médico não está permanentemente na aldeia, e que dependeu inteiramente dos intérpretes da língua Awa, e dos relatos dos funcionários da FUNAI/CGIIRC, para construir a história clínica e toda a consulta desta paciente.

A responsabilidade por esta negligência deve, portanto, ser partilhada por todos os envolvidos, tanto da SESAI/DSEI-MA, quanto da FUNAI/CGIIRC.

Isto, certamente, explica todos os empecilhos e dificuldades que vêm sendo interpostos, tanto pela FUNAI/CGIIRC, quanto pela SESAI, ao nosso acesso a esses pacientes e às informações a seu respeito.

Também fica claro, mais uma vez (repetindo o fracasso de todas as experiências anteriores da FUNAI), o desastroso efeito do contato, atração e assentamento de Awa isolados, com a progressiva deterioração de seu estado de saúde (especialmente de Jakarewỹj) no assentamento na aldeia Awa, e posterior remoção para a aldeia Tiracambu.

É urgente que sejam interrompidos quaisquer planos de novas remoções e/ou deslocamentos e assentamentos, pela FUNAI/CGIIRC, de outros Awa isolados para as aldeias Awa e Tiracambu, em vista do surto de tuberculose em andamento em ambas.

Uma última questão: porque a FUNAI/CGIIRC tem optado por assentar os Awa recém-contatados justamente nas aldeias Awa e Tiracambu (TI Caru), que têm um histórico pregresso de surtos de gripe e de tuberculose (e talvez leishmaniose) não investigados, expondo-os ao risco de contraí-las?

– Acaso teria alguma relação com o fato de que a mineradora Vale, agora, irá investir maiores recursos para o trabalho com os Awa da TI Caru, considerada diretamente atingida pelas obras de duplicação da ferrovia?…

– “Negligências”, conveniências ou conivência?…

* * *

– István van Deursen Varga – Professor Associado do Departamento de Sociologia e Antropologia (DESOC) e do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Ambiente (PPGSA) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Coordenador Geral do Núcleo de extensão e pesquisa com populações e comunidades Rurais, Negras quilombolas e Indígenas (NuRuNI) do PPGSA/UFMA. Membro associado da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ). Médico sanitarista, Mestrado em Ciência Social (Antropologia Social), Doutorado e pós-doutorado em Saúde Pública.

– Madalena Borges – missionária do Conselho Indigenista Missionário-Regional Maranhão (CIMI-MA), professora dos Awa na Terra Indígena (TI) Caru. Magistério.

– Rosana de Jesus Diniz Santos – missionária do CIMI-MA, professora dos Awa na TI Caru. Graduação em Letras, Especialista em desenvolvimento e relações sociais no campo.

– Rosimeire Diniz Santos – missionária do CIMI-MA. Estudante do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais da UFMA.

Destaque: © Madalena Borges/CIMI-MA/Survival

Comments (1)

  1. EM TODO ANDAR DA HISTORIA OS PEQUENOS FORAM ESMAGADOS POR PODERES MAIORES E A COVARDIA É A MARCA DO EXTERMÍNIO. ANIQUILA AQUELES QUE NÃO TEM PODER DE REAÇÃO , OS MENOS FAVORECIDOS SÃO OS QUE MAIS SOFREM , O ÍNDIO BRASILEIRO TEM SOFRIDO ENUMERAS AFRONTAS E AS MAIORES E AS QUE MAIS OFENDEM SÃO AS COMETIDAS PELOS IGUAIS ,OS QUE DEVERIAM PROTEGER E LUTAR PRO , ACABAM SENDO OS CONTRAS , INFELIZMENTE A REALIDADE DOS POVOS INDÍGENAS TEM SIDO ESTA O DESCASO .

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