Tive uma visão: o Brasil não é mais um Estado laico, por Leonardo Sakamoto

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Quando parlamentares entoaram uma oração no plenário da Câmara dos Deputados, como parte de um repúdio ao protesto de uma artista transexual, que simulou sua própria crucificação na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, tive uma síncope.

Um cheiro adocicado de erva queimada tomou conta de tudo, como se brumas me abraçassem, levando a outra dimensão. Daí, uma moleza gigante se apossou de mim, fazendo com que não conseguisse mais falar, apenas balbuciasse sons ininteligíveis e risse de tudo. Entrei em transe e tive uma visão.

E, na minha visão, o Brasil não era mais um país laico. Relato, sem delongas, o que vi:

Entrei no plenário da Câmara dos Deputados e havia um crucifixo, logo atrás da mesa diretora, olhando a tudo e todos. E um presidente, que se dizendo religioso, havia trazido para votação pautas que beneficiavam seu grupo e prejudicavam direitos.

eduardo cunha cruz ao fundo

Incomodado, fui ler as propostas de deputados. E um, que era de um partido que se afirma de esquerda, propôs mudar a Constituição Federal. Ao invés de “todo o poder emana do povo” converter para “todo o poder emana de Deus”.

dep PSOL Cabo Daciolo

Assustado, atravessei a Praça dos Três Poderes, invadindo o Supremo Tribunal Federal. Percebi que lá também havia uma cruz acompanhando os trabalhos dos ministros.

stf cruz ao fundo

Incrédulo, corri para o Palácio do Planalto. Mas Dilma não estava. Havia ido à São Paulo para inaugurar um templo.

dilma no templo

Desesperado, entrei na internet para entender o que estava acontecendo e vi que fundamentalistas religiosos haviam conseguido retirar do plano nacional de educação a promoção da igualdade de gênero e de orientação sexual.

comissao educacao camara

Anestesiado, abri um jornal e li a história de um médico que chamou a polícia depois de socorrer uma mulher que havia feito um aborto.

Amuado, ouvi o telefone tocar. Era um colega relatando a história de uma assessora de comunicação da Câmara dos Vereadores de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, ameaçada de demissão por ter afirmado que não acreditava em Deus.

camara vereadores rs

Indignado, percebi que o trânsito estava o caos. Perguntei a uma motorista o que havia acontecido. E ela me explicou que era por conta da saída para o feriado prolongado de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

aecio nossa sra aparecida

Cabisbaixo, vi na TV uma celebridade narrando o estupro a uma mãe de santo, sob gargalhadas da plateia. E, apesar dos indícios de crime de ódio, nada aconteceu.

fdp estupro mae de santo

Angustiado, por perceber que estava em uma teocracia, resolvi fazer a única coisa possível nessa hora: beber. Entrei no boteco, pedi uma caracu com ovo e canela. Na hora de pagar, notei uma estranha inscrição na nota de dez mangos. Então, um calafrio percorreu a espinha. “Deus seja louvado.” Gritei, esperneei, queria sair daquele pesadelo.

notas deus seja louvado

Deixei o transe.

Minutos depois, quando as brumas doces de erva queimada se dissipavam, senti uma fome incrível que foi saciada com chocolate com amendoim, pizza fria amanhecida, risoles de queijo com presunto e feijão frio, tudo junto e misturado.

Enquanto colocava tudo para dentro, regado a tubaína, fiquei feliz de perceber que aquilo havia sido apenas uma bad trip. Não era real. Não podia ser real. O poder público não serve a uma crença religiosa no Brasil.

Afinal, o Brasil é um Estado laico. Com a graça de Deus.

 

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