Cuba quer se abrir ao mundo sem perder alma socialista

População deseja aderir ao universo do consumo, mas manter conquistas como saúde e segurança

Por Cynthia Castro e Evie Gonçalves, em O Tempo

Na chegada ao aeroporto José Martí, após o anúncio histórico da retomada das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos, a sensação é que a vida em Havana transcorre como nas últimas décadas. O calor intenso, o cheiro forte de diesel dos carros antigos, o velho Lada – um dos símbolos da ex-União Soviética.

Parece que nada mudou, mas basta conversar com as pessoas para sentir que algo está diferente. A ilha mais famosa do Caribe vive uma nova revolução: a abertura, ao capitalismo, do regime político e econômico instalado há 56 anos, sem que se perca a essência do socialismo. “Aqui, temos um coração e não um cofre. Nossos valores são diferentes, e o que há de melhor será mantido. A tranquilidade e a solidariedade permanecerão. Em Cuba, pensamos primeiro nos seres humanos, depois no restante. O socialismo não irá acabar”, afirma o taxista Carlos Suarez.

Ao volante de seu conservado automóvel da década de 50, ele aponta para outro veículo em frente à sorveteria Coppelia, no bairro de Vedado, e comenta que essa tradicional característica de Havana se perderá com as mudanças que estão por vir. “Em cinco anos, não haverá mais esses carros antigos por aqui”.

Mais abertos a dizerem o que pensam, os cubanos esperam o fim do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos para alcançarem uma vida melhor. O taxista acredita que a aproximação dos dois países, oficializada em dezembro por Raúl Castro e Barack Obama, é vital para a sobrevivência da terra natal. “Vocês não sabem o que é viver 50 anos sob um forte embargo econômico. São cinco décadas sem poder comprar praticamente nada!”.

Ao dirigir rumo ao Malecón, principal cartão-postal, na orla de Havana, Suarez define os cubanos como arquitetos inventores. “Inventamos nossa forma de viver. Cada peça de nossos carros vem de um lugar. Não temos aviação que funcione direito. Temos problemas para conseguir medicamentos, roupas. Tudo por causa desse bloqueio”.

Nas ruas de Cuba, os moradores defendem a saúde, a educação e a segurança, mas sentem a necessidade de mudança. Querem mais oportunidades, mais bens de consumo, mais informação e liberdade. Entretanto, a possível transição no modelo, que já apresenta diferenças, não é garantia de que os sonhos poderão se realizar. O dinheiro é pouco valorizado, e os cubanos precisam de recursos.

O eletricista David César saía de uma padaria em Havana Velha, quando parou para conversar sobre o futuro de Cuba. “Não confio nos Estados Unidos”, dispara. Mas logo sorri, dizendo que, apesar da desconfiança, considera um passo importante. Ele atua na restauração de prédios antigos, ganha o equivalente a US$ 10 por mês e diz que a remuneração de um médico é cerca de US$ 50 mensais.

David César diz que hoje Cuba enfrenta diversos problemas, inclusive certa desigualdade social, por isso, é preciso mudar. Sobre o socialismo, ele considera uma utopia. “O homem não consegue praticar de fato esse sistema, que tem valores voltados para a solidariedade e não para o individualismo”.

A cerca de 300 km de Havana, em Trinidad, cidade tombada pela Unesco, o garçom Carlos Cruz avalia que o país vive um socialismo diferente. “Antes de 1990 (período em que Cuba recebia apoio político e financeiro da extinta União Soviética), o socialismo funcionava muito bem, havia menos pobreza. Esse bloqueio não é fácil. Espero que a aproximação modifique algo, mas acredito que o regime nunca irá se perder. Esse é um país de solidariedade e tranquilidade”. Sobre a possibilidade de viver em outro lugar, ele é categórico: “No me voy nunca de Cuba”.

Entrevistas

Como a ideia inicial da viagem não era fazer uma reportagem, os nomes reais de alguns entrevistados foram preservados pois eles ao falarem não sabiam da futura publicação dos seus relatos.

Cubano dá um jóia em varanda decorada com bandeiras de Cuba e dos Estados Unidos no dia 16 de janeiro
Cubano dá um jóia em varanda decorada com bandeiras de Cuba e dos Estados Unidos no dia 16 de janeiro

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Jovens cobram transformação e não idolatram ‘comandante’

Admirado por quem viveu a revolução, Fidel não tem mesma popularidade entre os mais novos

Por Cynthia Castro e Evie Gonçalves, em O Tempo

Se os cubanos que vivenciaram o período revolucionário ainda admiram a figura de Fidel Castro e o que o regime socialista representa hoje, o mesmo não pode ser dito em relação a muitos jovens. O anseio por mudanças é explícito entre eles.

Apesar de reconhecerem o esforço do governo para oferecer educação, saúde e segurança de qualidade para o povo, a juventude almeja usufruir de pequenos luxos característicos do sistema capitalista e sonha em conhecer uma vida diferente.

“Quero ter um apartamento, um carro e não ganho para isso. Aqui, até para comprar uma cerveja é difícil. Eu nunca andei de avião. Os turistas conhecem meu país melhor do que eu”, lamenta o produtor de eventos Noel Rozo. Ele é graduado em educação física, mas, sem mercado de trabalho, atua em casas noturnas em Havana.

Segundo o cubano de 29 anos, a educação é tida como um dever no país, e não como um direito. Entretanto, os jovens concluem a graduação e nem sempre conseguem bons empregos.
A mesma realidade é vivenciada por José Blanco, morador de Trinidad. O jovem de 27 anos trabalha como professor de salsa, aproveitando-se da curiosidade dos turistas em aprender o ritmo latino. Reticente em falar o que pensa sobre o socialismo, ele diz que o sistema não é bom para todos.

O estudante gosta da cidade onde nasceu, mas não está satisfeito com a vida que leva em Cuba. O sonho dele é deixar o país. “Para onde você gostaria de ir?”, questionou a reportagem. “Para qualquer lugar. Só queria sair e conhecer algo diferente”, respondeu.

A vontade de viajar e presenciar a vida em outro país está expressa na letra da música “Pasaporte”, da banda Havana de Primeira, uma das preferidas dos cubanos: “Un pasaporte, sin fecha (sem data) de vencimiento, libre como el viento, a caminar por otros corazones, por otras vidas”.
A música foi indicada por Lídia Gomes, moradora de Havana, após relatar que um familiar se casou com uma turista e já não vive mais em terras cubanas. Ao oficializar a união com um estrangeiro, diz a jovem, o cubano consegue deixar o país com maior facilidade. “Precisamos de uma autorização consular. Antes a situação era pior. O governo amenizou as regras recentemente, mas, com o que ganho, nunca vou conseguir uma passagem”, diz Lídia.

Noel Rozo é mais radical. Para ele, o governo se apoia na ideia de que o embargo econômico gera quase todos os problemas da ilha, justamente para que os cubanos não possam viajar e comparar a realidade deles com a de outros países. Outro insatisfeito, o estudante Roberto Leal resume o sentimento da juventude: “queremos ter o direito de sonhar diferente”.

Respeito. Entre os mais velhos a imagem de Fidel Castro ainda é reverenciada como a do grande líder revolucionário. Uma parcela significativa de cubanos se diz grata a ele pela história de luta junto a outros líderes históricos, como Che Guevara e Camilo Cienfuegos.

“Eu o amo para sempre”, declara uma moradora de Trinidad, ao comentar o atual momento. Mercy Días lembra que os moradores saíram às ruas para comemorar, tanto a retomada da relação de Cuba com os Estados Unidos, como a libertação pelo governo norte-americano de três cubanos presos. Ela considera que a história de Cuba sempre será motivo de orgulho. “Apoiamos a nossa querida revolução cubana e o seu máximo líder, Fidel Castro, quem sempre foi e sempre será nosso melhor exemplo a seguir”.

Pelas ruas das cidades, nas estradas e nos estabelecimentos, ainda estão outdoors e frases com os ideais socialistas. Num desses dizeres, uma fala histórica de Fidel ajuda a entender a longevidade dessa comunhão entre povo e governo: “…compañeros, obreros y campesinos: esta es la revolución socialista y democrática de los humildes, con los humildes y para los humildes”.

Enviadas para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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