Povos tradicionais resistem à grilagem e violação de direitos no Norte de Minas

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Comunidades geraizeiras se organizam frente ao avanço da trinca que ameaça uma cultura secular. Reflorestadoras de eucaliptos, mineradoras e a barragem de Irapé (MG) invadem territórios e burlam legislação há décadas

Mídia Ninja

A exploração dos recursos naturais até a exaustão foi o modelo econômico hegemônico no Brasil ao longo de praticamente toda a sua História. No caso do Norte de Minas, esta tônica perdura. Desde os anos 1970, a situação se agravou com a constante violação de direitos humanos e irregularidades ambientais praticadas a partir da política de expansão da monocultura do eucalipto nas proximidades de Grão Mogol, grande pólo político da região no séculos XVII, XVIII e XIX, auge do extrativismo mineral no país.

Projeto da ditadura militar, a implantação da Floresta Rio Doce, de propriedade da então estatal Companhia Vale do Rio Doce, iniciou o avanço do eucalipto pelas chapadas – até aquela época – cobertas predominantemente pelo Cerrado e por resquícios de caatinga. Com incentivo do Estado, por meio de linhas de crédito do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) específicas para o reflorestamento, o processo desencadeou um conflito agrário provocado pela grilagem de terras devolutas, ocupadas há mais de 200 anos por povos tradicionais.

LUTADORES DO CERRADO

Autodenominados “geraizeiros”, os povos tradicionais do Norte de Minas habitam os Cerrados à margem direita do Rio São Francisco há séculos. Caracterizam-se por plantar em grotas, brejos e utilizar o alto das chapadas, as chamadas “gerais” (daí a nomenclatura) como grandes áreas coletivas destinadas à criação de animais soltos, coleta de frutos nativos para complemento à alimentação e uso medicinal.

Foram contemplados oficialmente pelo Decreto Presidencial nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, que ampliou a abrangência da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) para além das comunidades indígenas e quilombolas, já reconhecidas pela Constituição de 1988.

O Estado de Minas Gerais possui ainda a lei 21147 de 2014, específica para povos tradicionais e quilombolas. No entanto, o avanço da monocultura do eucalipto, da mineração e a construção da Usina Hidrelétrica de Irapé ao longo das últimas 5 décadas vem ameaçando o Cerrado e encurralando o povo geraizeiro.

O TERRITÓRIO COMO MERCADORIA

Primeiramente direcionado à produção de carvão para o abastecimento da indústria siderúrgica, o eucalipto da Rio Doce chegou com a promessa de progresso e desenvolvimento para o local. No entanto, de lá pra cá, nota-se a queda do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a precarização da oferta e condições de trabalho.

Em um segundo momento, com o declínio da siderurgia, o eucalipto do Norte de Minas passou a ser exportado e destinado à produção de celulose. Paralelo a isso, outras empresas reflorestadoras também iniciaram atuação, como a Rio Rancho – que comprou a Floresta Rio Doce quando seu proprietário, Newton Cardoso, era governador de Minas Gerais – e, mais recentemente, a Norflor, integrada ao Plantar, maior grupo reflorestador do país.

A mineração complementou o ciclo extrativista na região. É sabida da riqueza mineral do terreno desde o século XVII, quando o garimpo prosperou e alavancou o crescimento de Grão Mogol. Nos últimos anos, vem caminhando a passos acelerados a implantação de um mineroduto para operar a logística de exportação do minério, extraído no distrito de Vale das Cancelas e transportados até Ilhéus, no litoral Sul da Bahia.

O empreendimento da Sul Americana de Metais (SAM), empresa do Grupo Votorantim, que também invade o território geraizeiro, já possui a outorga junto à Agência Nacional de Águas (ANA) para retirar água da represa de Irapé, construída em 2006 e que completa a trinca violadora de direitos do povo tradicional, além de causar profundo impacto ambiental no Cerrado. Apesar do grande potencial energético da usina, famílias à beira do lago ainda não têm acesso a energia elétrica, tampouco a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) garantiu indenizações, sinalizando o descaso do governo estadual com os pequenos agricultores, em contraste com a agilidade para a regularização das atividades das grandes empresas.

MINISTÉRIO PÚBLICO E POLÍCIA FEDERAL ATENTOS

Apesar do poder econômico forte e do lobby praticado sobre autoridades por meio de financiamentos de campanhas, as empresas seguem na mira da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF), empenhados em montar o quebra cabeças da grilagem das terras devolutas no Norte de Minas.

A PF tem feito ações constantes com este objetivo. Operações investigaram fraudes na legalização de terras na região, processaram parlamentares, como o diretor da RIMA Industrial e Deputado Federal Bernardo Santana (PR), derrubaram o Secretário Extraordinário de Reforma Agrária Manoel Costa, extinguiram o Instituto de Terras do Estado de Minas Gerais (Iter) e prenderam seu ex-diretor, o ex-prefeito de Janaúba, Ivonei Abade.

O MPF vem acompanhando e tem ouvido denúncias, que envolvem desde títulos de terra irregulares até o uso de laranjas. No caso da SAM, por exemplo, acusada de fragmentar licenças ambientais para fugir de ação judicial, uma série de audiências públicas têm contribuído com as investigações.

MAB MOBILIZA RESISTÊNCIA DO POVO ATINGIDO

Atuante na região há 4 anos, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) se opõe a este modelo de desenvolvimento e faz trabalho de formiguinha – organiza grupos de base junto às famílias, fomenta associações e articula parcerias com sindicatos de trabalhadores rurais. Pauta sua luta casada a um movimento internacional por direitos humanos, vislumbrando a soberania e o controle popular do território, da água e da energia.

Sendo assim, o movimento cobra responsabilidades pelo conflito agrário e a legítima demarcação das terras geraizeiras. “O Estado Brasileiro deve reconhecer que tem uma dívida social por ter violado direitos no Norte de Minas”, argumenta Filipe Martins, Coordenador Estadual do MAB, atuante na região de Grão Mogol.

DIAS DE LUTAS GARANTEM VITÓRIAS POPULARES

No dia 17 de novembro, em parceria com Sindicato de Trabalhadores Rurais de Josenópolis, Comissão Pastoral da Terra, Sindieletro e Movimento dos Geraizeiros, o MAB articulou a 1a. Marcha Pela Paz no Campo.

Cerca de 200 camponeses de Vale das Cancelas, Josenópolis e Padre Carvalho caminharam pela cidade de Grão Mogol, reivindicando diversas questões oriundas da tensão fundiária que se arrasta na região.

O ato saiu da Rodoviária e fez sua primeira parada na Agência Avançada de Meio Ambiente, responsável pela administração do Parque Estadual de Grão Mogol, criado em 1998 sem audiência e/ou escuta aos povos tradicionais geraizeiros e faisqueiros – garimpeiros artesanais, atualmente desempregados – que vivem na área. Esta população segue isolada e não foi indenizada ao longo destes 16 anos. O órgão, que representa o IEF na região, não soube explicar por quê não existe acesso a energia, água ou qualquer política pública que contemple estas comunidades. Foi encaminhada uma reunião entre o IEF e representantes dos movimentos para debater a questão do parque.

De lá, a marcha seguiu em direção à Prefeitura, para cobrar as devidas melhorias no planejamento urbano de Vale das Cancelas, onde vai ser feita a cava para abastecer o mineroduto da SAM. Como o prefeito Jéferson Figueiredo (PP) não se encontrava, foi marcada uma reunião para as 17 horas.

A caminhada seguiu rumo à praça da Igreja Matriz de Santo Antônio. No caminho, uma rápida intervenção em frente a um cartório de imóveis para denunciar a conivência dessas repartições com as décadas de grilagens na região.

A poucos metros dali, no Fórum, acontecia uma audiência da ação em que a Rio Rancho pede “manutenção da posse” de terras de geraizeiros. Trocando em miúdos, a empresa alega que o povo presente no território há séculos teria invadido suas propriedades. Como se trata de conflito agrário, o caso foi encaminhado para ser debatido pela Justiça Federal junto ao Ministério Público.

Ao fim da tarde, o ato retornou à Prefeitura para a reunião com o prefeito. Após mais de uma hora de conversa com lideranças do MAB e geraizeiros, Jéferson Figueiredo se comprometeu em realizar uma audiência pública no ginásio poliesportivo de Vale das Cancelas para discutir, junto à comunidade, as demandas de infra estrutura e serviços urbanos que precisam ser encaminhadas.

No dia seguinte, outra mobilização popular garantiu mais uma vitória, na cidade de Josenópolis. Uma reunião aberta, convocada pela Secretaria Municipal de Agricultura, com a presença de representantes da Norflor, nomearia uma comissão formada pela empresa e famílias desalojadas dos 44 mil hectares da Fazenda Ribeirão das Piabinhas. O grupo faria acordos bilaterais para resolver cada caso de remoção. No entanto, a comunidade organizada pressionou e a proposta da comissão foi retirada. Foi encaminhada a realização de uma audiência pública, com a presença do MPF, para tratar da situação, que configura conflito agrário.

Para Filipe Martins, os compromissos e garantias firmadas nos dois dias são vitórias que dão gás à luta na região. “As conquistas animaram o povo e mostraram que, com organização e pressão popular, é possível avançar em melhorias sociais e econômicas reais”, comemora. MAB, sindicatos, associações e povo geraizeiro seguem alertas e ativos para barrar violações, garantir direitos e avançar na construção uma outra realidade econômica e social no Norte de Minas Gerais e no Brasil.

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