Voto em Dilma: resgate do Passado, aposta no Futuro, por Carlos Vainer*

Depois da postagem sobre o valor dos votos das “elites” e do dos “excluídos“, este texto, que acabo de receber, não poderia ficar de fora. (Tania Pacheco)

brasil em raças

Como votar no 2º turno? De um lado, a direita, cada vez mais raivosa e conservadora, mostra suas garras e, uma vez mais, seu profundo desprezo pelo povo e por sua inteligência. De outro lado, uma coalizão que, após 12 anos de governo, parece ter perdido tanto os laços com suas origens quanto a possibilidade de se reinventar para o futuro.

Em 2002, a eleição de Lula para a presidência da república representou o desenlace das lutas travadas desde o fim dos anos 1970, que aceleraram  a queda da ditadura militar e sua “transição lenta, gradual e segura”, como a designavam os ditadores de plantão, seus principais beneficiários e prestadores de serviço: a grande mídia, os “democratas moderados” (que têm mais medo de povo que amor à democracia), o grande capital convertido às virtudes da transição negociada após 20 anos de benesses obtidas sob as asas do autoritarismo, e, nunca é bom esquecer, muitos intelectuais desde sempre disponíveis para explicar por que razão uma “transição brusca” e um “excesso de democracia” constituiriam uma ameaça à democracia.

Desde as grandes mobilizações populares do início da década de 1960, em 2002, pela primeira vez encontrava-se novamente a sociedade brasileira colocada diante de uma oportunidade histórica; abriam-se caminhos, senão para a revolução social, ao menos para profundas reformas políticas, econômicas e sociais.

Nos anos 1960, as lutas populares colocaram no campo das possibilidades as “reformas de base”: reforma agrária, reforma urbana, reforma universitária, reformas bancária e fiscal, entre outras, que, se levadas a cabo de maneira integrada e consistente, teriam mudado a face do Brasil. Como sabemos, uma santa aliança reunindo as classes dominantes – latifundiários e capitalistas de todos os setores – e expressivos setores de uma classe média urbana amedrontada por implacável campanha terrorista de propaganda anti-comunista, amparada no “generoso e desinteressado apoio” norte-americano, golpeou os movimentos populares, lançando o país em uma brutal ditadura. O golpe militar e a ditadura frustraram as expectativas populares e conduziram uma modernização conservadora que aprofundou as desigualdades sociais e o monopólio político, institucional e econômico que produziu e reproduz uma das sociedades mais injustas e violentas do mundo.

2002 veio reabrir o cenário histórico. Esta nova oportunidade esteve amparada e resultou da convergência de lutas e correntes políticas as mais diversas – que vão dos que resistiram na clandestinidade à ditadura até massivas greves operárias, passando pelas ricas experiências políticas e organizativas da Igreja da Teologia da Liberação. Sua agenda retomava algumas questões colocadas e não resolvidas desde os anos 1960, em particular as reformas agrária e urbana. Ia, porém, muito além, em virtude mesmo de ter que equacionar e enfrentar a herança tanto da ditadura militar quanto das reformas neo-liberais dos governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. Assim, de um lado, mais de 10 anos após a promulgação da Constituição que havia selado a democratização, restava a ser varrido para o lixo da história um perverso e perigoso entulho autoritário: a Lei de Segurança Nacional, a militarização das polícias estaduais, as práticas corriqueiras e institucionalizadas de tortura e violência contra os pobres, o conluio dos aparatos policiais com o crime organizado, a continuada impunidade dos que cometeram crimes contra a humanidade em nome do estado brasileiro, a Lei de Imprensa e o monopólio dos meios de comunicação, etc.

De outro lado, impunha-se reverter a neo-liberalização que conduzida tanto ao sucateamento e entrega ao capital privado, em muitos casos multinacional, de grande parte do patrimônio do povo brasileiro (CSN, Vale do Rio Doce, empresas elétricas, telecomunicações, entre outros), quanto à construção de um aparato legal-institucional que expressava a subordinação do estado e da economia brasileiras ao capital financeiro e às corporações globais. Trata-se aqui de lembrar a Lei de Patentes, as emendas constitucionais e institucionais que submeteram o país às receitas do FMI e Banco Mundial, o ainda vigente Programa Nacional de Privatização (Collor, 1990) e as agências “reguladoras” que organizam os cartéis beneficiários das privatizações, as sucessivas reformas de legislação previdenciária, as parcerias público-privadas, etc. Outro grande e complexo desafio era a necessidade de enfrentar e derrotar um sistema político que, a partir da Constituição de 1988, havia (re)acomodado nos governos – federal, estaduais e municipais – novas e velhas oligarquias políticas (os Sarney, para citar apenas um exemplo) e econômicas (as grandes empreiteiras de obras públicas, outro exemplo). Esta agenda foi, lamentavelmente, abandonada.

Certamente se poderiam colocar na balança alguns avanços em termos de redistribuição da renda e políticas sociais compensatórias abrangentes, cuja contribuição para uma redução das desigualdades foi importante, mas que deixaram intactas a distribuição do patrimônio, o controle das instituições estatais e, tão ou mais importante, o monopólio dos meios de comunicação. Era muito pouco para um povo que se queria “Sem medo de ser feliz”.

A frustação das expectativas e possibilidades afirmadas no início deste século com a vitória de Lula não foram frustradas nem truncadas por um ato de violência dos dominantes. Assistimos nos últimos 12 anos, a uma sucessão de hesitações, concessões, omissões, denegações, abdicações e negociações de princípios e valores que deixaram intocadas algumas heranças perversas de 25 anos de ditadura e preservaram o legado de 15 anos de neo-liberalismo. A relativa desmobilização popular e a perda progressiva de vitalidade de experiências democratizantes, como os orçamentos participativos, em alguma medida pareceram autorizar e homologar, pela passividade, a domesticação e neutralização do que havia de mais popular e radical no projeto societário elaborado na década de 1980, e de que o PT era o principal depositário.

Eis que em 2013, em mais de 500 cidades, cerca de 10 milhões de cidadãos foram às ruas expressar a frustação com uma coalizão governamental que parecia haver rompido toda e qualquer relação com os processos, grupos sociais e movimentos que lhe haviam dado origem. Diante do absurdo desperdício de recursos públicos em obras suntuosas e inúteis, das remoções forçadas de 170 a 200 mil pessoas, da farra da especulação imobiliária e das empreiteiras, das transferências de recursos públicos a grupos privados através de parcerias público-privadas, diante de um marketing político conduzido em aliança com os grandes monopólios midiáticos, da homofobia entronizada na presidência da Comissão de Direitos Humanos pela coalização governista, da corrupção generalizada, o povo disse NÃO.

Não estava nos planos, não era esperado. 2013 relembrou momentos de nossa história em que as multidões se fizeram protagonistas: o grande Comício da Central do Brasil em março de 1964, as manifestações de protestos em 1968, as Diretas Já.  Perplexos, após momentos de hesitação em que as matérias provocadoras da Rede Globo incitavam à pura e simples repressão dos “vândalos” para “restabelecer a ordem”, um sinal de esperança apareceu no discurso da Presidente Dilma Roussef, em cadeia nacional, no dia 21 de junho.

Nesta fala, a Presidente disse à nação:

Os que foram ontem às ruas deram uma mensagem direta ao conjunto da sociedade e, sobretudo, aos governantes de todas as instâncias. Essa mensagem direta das ruas é por mais cidadania, por melhores escolas, por melhores hospitais, postos de saúde, pelo direito à participação. Essa mensagem direta das ruas mostra a exigência de transporte de qualidade e a preço justo. Essa mensagem direta das ruas é pelo direito de influir nas decisões de todos os governos, do legislativo e do judiciário.

Note-se que, ao contrário de outros políticos e analistas, a Presidente reconhecia que não havia apenas reivindicações setoriais, materiais, mas também um desejo de “mais cidadania” e de “influir nas decisões”. Não seria esta uma forma, indireta mas inequívoca, de reconhecer que os direitos cidadãos e o direito democrático de influir nas decisões não vinham sendo adequadamente contemplados?

A presidente também afirmou que “as pautas dos manifestantes ganharam prioridade nacional” e que “temos que aproveitar o vigor dessas manifestações para produzir mais mudanças, mudanças que beneficiem o conjunto da população brasileira”. Reconhecimento, pois, de que as pautas populares não vinham sendo prioridade nacional e de que mais mudanças se impunham e se impõem. A presidente, porém, foi além e declarou solenemente: “É a cidadania e não o poder econômico que deve ser ouvido em primeiro lugar”. Surpreendente e importantíssima autocrítica, pois era a Presidente da República quem anunciava, sem meias palavras, que até então o poder econômico vinha sendo ouvido em primeiro lugar e que isso precisaria ser mudado.

O exame cuidadoso dessa fala pode servir para entender e enfrentar o embate eleitoral em que estamos lançados, pois as manifestações de 2013 condicionam e contextualizam o embate atual. Elas explicam a virulência da campanha deflagrada pelas elites, pelas forças mais conservadoras da sociedade brasileira, capitaneadas, como em outros momentos históricos decisivos, pelas Organizações Globo, espécie de comitê central das elites. A guerra (de classes) que lançam contra Dilma e contra o PT não visa, na verdade, nem Dilma, nem uma coalização governamental que, ao fim e ao cabo, foi tão leniente com estas mesmas elites. O que está em jogo é se, em que medida, um novo mandato poderá, na esteira das grandes manifestações de 2013, relançar a aliança original que, um dia, fez do PT parte das lutas de nosso povo e das lutas de nosso povo parte do PT.

No mesmo discurso acima citado, Dilma afirmou:

Precisamos de suas contribuições, reflexões e experiências, de sua energia e criatividade, de sua aposta no futuro, de sua capacidade de questionar erros do passado e do presente”.

Os erros hoje são conhecidos de todos e já foram expostos na praça pública pelos manifestantes de 2013. Reinventar o presente e apostar no futuro é a única promessa de Dilma que me convence. Voto em Dilma por acreditar que o passado recente pode ser resgatado e por querer acreditar que o futuro próximo ainda não nos foi totalmente surrupiado. Voto em Dilma como uma aposta de futuro, de que a coalizão governamental liderada pelo PT poderá se reencontrar com aqueles de quem nunca deveria ter-se afastado: os oprimidos, os explorados, os discriminados, os movimentos que protagonizaram todas as lutas, resistências, críticas intransigentes e protestos contra a opressão, a exploração e discriminação.

*Professor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR/UFRJ.

Comments (6)

  1. Li e fiquei estonteado com tanta informação, tantos fatos lembrados, tantos fatos filtrados, tantos fatos convenientemente esquecidos. Como aprendo lendo esse tipo de texto! Quantas dúvidas persistem e são até aguçadas – não posso expô-las à altura to texto, não sou tão erudito, mas consigo citar duas:
    Quão mais do povo é uma empresa estatal, administrada por maus políticos e gerando poder, corrupção e prejuízos, que uma empresa privada bem administrada por empresários obsessivos por lucros e que reserva 27% desses ao Estado, só a título de IR?
    Como confiar na maior autoridade de uma nação quando ela deixa de perceber tantos clamores comuns antecedentes, para valorizar e estimular só quando os mesmos aparecem nas ruas acompanhados de quebra-quebra, depredação do patrimônio público e desordem? Seria cultivar o caos para depois ter motivos para aplicar regime de exceção como único remédio quando a situação fica incontrolável?

  2. A conjuntura entre o primeiro e o segundo turno mudou, ou seja, em parte Dilma foi sendo empurrada mais para a esquerda, apesar de grupos e setores sociais poderosos e articulados no apoio e sustentação da gestão atual, e nós aqui do extremo sul do Brasil acompanhamos e lutamos contra isso e as políticas neodesenvolvimentistas; e de outro, explicítamente, Aécio cada vez mais para junto com o sistema financeiro, os especuladores, consultores, e agiotas dos fundos de pensão…Portanto, agora tem dois candidados, o RETROCESSO, O ATRASO e o retorno do Neoliberalismo…e Dilma. Por isso, e mais pelos argumentos de Vainer, eu também voto em Dilma.
    carlos rs machado, rio grande

  3. O PT , no poder, voltou as costas aos reclamos dos movimentos sociais e suas políticas contribuindo para a destruição de nossos biomas e das populações indígenas e ribeirinhas, não realizou reforma agrária nem tributária. E o PT no poder político tirou o país do mapa da fome. Incluiu negros e pobres nas universidades. Reforçou canais de participação popular nas políticas públicas. Aposto, com Carlos Vainer, que o PT pode voltar a ser o que foi um dia e, com apoio das mobilizações populares -que precisam continuar-, consiga fazer frente às determinações do poder econômico capitalista.

  4. Concordo com tudo o que vocês – França e Cláudio – escrevem. Foi difícil para mim sair do voto nulo, inclusive, posição que só consolidei no domingo, quando publiquei o texto do Carlos Eduardo Marques (http://racismoambiental.net.br/2014/10/a-gente-e-indio-negro-mulher-gay-candomblecista-devir-minoria-ou-seremos-indigente-por-carlos-eduardo-marques/). De qualquer forma, não pretendo fazer campanha.

    O texto do Vainer foi publicado por dois motivos: (1) acho que há nele questões importantes a serem resgatadas; e (2) eu acabara de postar o comentário sobre o texto do Alberto Goldman, que me deixara doente, e o Vainer de certa forma dialogava com ele. Pessoalmente, considero que se o título dado por ele fosse outro teria sido muito melhor, pois permitiria que as pessoas lessem e dialogassem com texto, mesmo convictas da importância de votar nulo. A declaração de voto inicial possivelmente levou muita gente a sequer lê-lo. Pena.

  5. Votar em Dilma ou Aécio é fortalecer no povo a ilusão de que pode se libertar do Latifúndio,da Grande Burguesia e do Imperialismo através de eleições dessa velha democracia. A verdadeira Mudança só poderá ser feita pelas mãos dos camponeses, proletários e pequena burguesia progrecista. É o que penso.

  6. Acho curioso como em todos esses manifestos históricos, declarações de artistas acima de qualquer suspeita e outros mais, pra que se vote em Dilma, se parecem muito com os que foram feitos a época que o Lula viajava o Brasil pra defender a continuidade. todos diziam que o PSDB era o demônio (é de verdade, mas isso não vem ao caso agora!!!) e como era importante seguir com os avanços conseguidos e tudo mais. Pois bem o PT venceu, seguiu em frente sem se distanciar um milímetro do seu projeto de gerente do Capital. Os procedimentos de demarcação de Terras indigenas foram paralizados, o rio Madeira foi estrangulado, Belo Monte viu toda espécie de violações (escravização sexual, espionagem e ameaça de morte contra militantes, repressão aos trabalhadores), A Vale desafetou terras de assentamentos, sem falar nos escândalos de corrupção. E não vi nenhum desses formadores de o?inião se manifestarem pra “corrigir” os rumos desse governo e, foi assim em todas as eleições que o PT ganhou, quando se via ameaçado, davam uma de arrependidos, mas depois festejavam ao lado dos opressores de sempre . VOTONULO!!!!

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