A Gente é Índio (Negro, Mulher, Gay, Candomblecista, Devir-Minoria) ou Seremos Indigente*, por Carlos Eduardo Marques

Antes do texto, uma observação: até este momento, tinha optado por deixar o blog fora do duelo eleitoral, que para mim se resume a anular o voto ou votar em Dilma Rousseff. Meus amigos e meus candidatos do primeiro turno igualmente se dividem entre essas duas opções. Li, vi e ouvi seus pronunciamentos, mas não postei nada. Carlos Eduardo Marques é diferente, pois ele não perdoa: declara seu voto mas, ponto por ponto, cobra! Se deixa de fora Belo Monte, o São Francisco ou a ameaça de estupro ao Tapajós, traz para a pauta, por outro lado, os povos indígenas, sem dúvida a minoria mais desrespeitada pelo atual governo e que continua ausente até mesmo dos debates. Publico seu texto-desabafo com raiva, mas também com satisfação. Ele diz quase tudo que eu gostaria de ter escrito. (Tania Pacheco)

brasil em raças

Carlos Eduardo Marques, em Combate Racismo Ambiental

Nunca votei PSDB e não será desta vez. Continuo onde sempre estive: na campanha Aécio Never!!! Por sempre ter denunciado o PSDB e suas políticas aqui em Minas, ao contrário aliás, de parte do PT que fez – como o próprio partido admitiu – uma oposição faz de conta e em certos momentos se aliou ao PSDB, como quando criaram este monstro chamado Lacerda para governar nossa cidade de Belo Horizonte. Como militante, cidadão e pesquisador busco participar da tentativa de construir um país menos conservador: menos racista, sexista, machista, homofóbico, patrimonialista, estamentalista, dentre outras mazelas.

Participar desta luta significa manter posição crítica e inclusive de oposição – se necessário for – ao PT, quando ao invés de encampar o debate (trata-se da abertura de diálogo) sobre a desmilitarização da polícia, segue caminho exatamente oposto, quando pela voz da candidata do partido é proposto o impensável e o inexplicável: a defesa do fortalecimento de um modelo militar de segurança, que se vale de uma polícia repressiva, violenta, miliciana, racista, sexista, classista, antidemocrática, como a que vimos no período da Copa e no cotidiano das favelas, ocupações de sem casa, com os moradores de ruas, dentre outros. Esse tipo de polícia não é modelo e nem deve se tornar paradigma de segurança, como tem defendido a candidata à reeleição.

Meu compromisso de devir-minoria não me permite sequer pensar em votar em Aécio Neves, pelo mesmo motivo que não me permite – ainda que apoiando uma candidatura – como minoria compactuar com qualquer proposta de normalização da chacina dos meus irmãos de cor, de luta e de esperança em uma sociedade melhor.

A luta por um país plural e que respeita a diferença ficará muito mais difícil com a opção da Presidenta de ter feito campanha para Kátia Abreu, Collor, Barbalhos, Calheiros, dentre outros, ao tempo que se recusou a fazer campanha para o Suplicy, e que sabotou campanhas progressistas de seu próprio partido país afora, ou de partidos coligados, como no caso do Maranhão; que obrigou o Paraná a uma candidatura absurda da Sra. Gleice Hoffman, notória militante contra os direitos indígenas e quilombolas; que indicou para o Ministério da Justiça e lá mantém por anos o Sr. Eduardo Cardozo, notório inimigo dos direitos indígenas e do direito de protesto. Mas nem por isto cogito Aécio Neves.

NENHUM VOTO EM AÉCIO é o meu lema e minha campanha neste momento. Mas isso não significa participar de acusações e persecuções àqueles que, coerentemente com as críticas que apresento aqui, optam pelo voto branco, nulo ou abstenção. NENHUM VOTO EM AÉCIO é opção radical de militância, e por isso não poderá escamotear que ficará mais complexa ainda, para nós que pesquisamos e lutamos na questão quilombola, por exemplo, o novo congresso sem os deputados – como Luiz Alberto Santos – que pagaram o preço de não conseguir explicar às suas bases porque deveriam renovar seus mandatos pertencendo eles a um partido que renegou, no governo, os direitos destes grupos aos seus territórios e, indiretamente, à sua existência. Ou sem o deputado quilombola (o único, diga-se de passagem) Domingos Dutra, vítima de uma das violências inomináveis do novo PT, que preferiu zombar do nobre ato de greve de fome deste parlamentar em oposição ao apoio do partido aos Sarneys no Maranhão e que por vias (in)diretas acabou por levar à sua saída do partido.

Não serei simplório: o novo congresso não é apenas responsabilidade das opções e escolhas do partido do governo, mas é também responsabilidade dele, por escolhas, omissões e alianças. Não posso – em nome da luta que agora compartilhamos – negar isto, somente porque estamos todos empenhados em NENHUM VOTO A AÉCIO!!!

NENHUM VOTO em Aécio significa NENHUM RETROCESSO, mas com total liberdade para debater com maturidade este modelo petista de governar com e à direita!!! É preciso fazer a autocrítica. Não apenas eleitoral, mas na prática, como governo. Ser de esquerda como ser minoria é fazer a disputa pelos rumos da sociedade. Tal disputa não pode ser negada e escamoteada, como faz o partido no governo, sob o risco da própria eliminação da diferença e do devir-minoria necessário à esquerda.

NENHUM VOTO em Aécio só terá valor a nós chamados de esquerda radical – o que é uma eloquente denúncia da tragédia que vivemos; afinal, esquerda sistêmica é capitulação não só da luta permanente, mas do próprio espectro de ser esquerda – se significar manter uma postura crítica radical às políticas do atual governo, como no caso da questão indígena, quilombola, na defesa de uma política de não eliminação de jovens negros. É necessária, por exemplo, para além do debate sobre a desmilitarização da polícia e da sociedade, a questão da democratização das mídias. É necessário combater, e não naturalizar por outros meios, a prática patrimonialista nos aparelhos de Estado. Não existe patrimonialismo bom, ou do nosso grupo, ou ainda porque sempre foi assim; não encarar esse debate é se tornar vítima, a cada ciclo eleitoral, de acusações vindas daqueles que se sentem à vontade para tentar igualar-nos a eles.

NENHUM VOTO em Aécio significa a necessária luta permanente e prática contra o sexismo – e isto se faz com políticas novas em relação à sexualidade, ao corpo e aos direitos reprodutivos – e a valorização das diferenças como constituinte do conjunto de socialidades. É necessário construir uma visão não homofóbica, que combata a trans e a lesbofobia, e não, ao contrário, retirar campanhas publicitárias que visam educar para a convivência da diversidade. É necessário uma política de reforma urbana, que rompa com o modelo de cidade-empresa e os desmandos do mercado; uma política habitacional que atenda o déficit dos sem casa, incluindo ai a classe média, mas que se baseie em um modelo de cidade inclusiva, e que respeite o buen vivir e os modos, saberes, fazeres dos grupos atendidos. Que construa a cidade em sua plenitude de cidadania, e não uma política de transferência de recursos públicos, via bancos federais, e de recursos privados dos futuros mutuários. para as grandes construtoras habitacionais realizarem, como definiu um amigo pesquisador do tema, “predinhos que se constituem em verdadeiras prisões verticais”.

NENHUM VOTO em Aécio significa debater uma nova política de descriminalização do uso de drogas recreativas e, principalmente, de combate à war of drugs que serve para genocidar a juventude pobre, em sua maioria negra, e para fortalecer as máfias, inclusive bancárias e militares, que vivem do negócio da criminalização do consumo. Significa a defesa do imposto sobre grandes fortunas. Significa o combate à autonomia – e não somente à independência – do Banco Central. Significa o combate ao  tripé econômico, tão ao gosto dos mercados e sistema financeiro. Significa recolocar a política como o campo do confronto e da coragem necessária de dizer: contrariaremos interesses, mas não só os interesses dos de sempre!, dentre outras medidas. Significa uma reforma política radical e democratizadora, e não apenas uma reforma eleitoral, que ao fim e ao cabo fortalecerá ainda mais os partidos-feudos e a pouca participação democrática; uma reforma não de códigos judiciários, mas do próprio poder judiciário, essa casta familiar e feudal, exemplo gritante do patrimonialismo estamental brasileiro.

NENHUM VOTO EM AÉCIO significa também a denúncia de que é inaceitável que o atual governo tenha titulado menos Terras Indígenas que o governo Collor, que teve apenas um ano e meio de duração. Significa a titulação de Territórios Quilombolas. A retomada da reforma agrária, considerando agora os povos tradicionais e seus modos, saberes, fazeres. Sem estes compromissos o que teremos será o eterno ciclo de a cada quatro anos votarmos no menos ruim.

Ser esquerda e ter compromissos em mudar é ter devir minoria. Por isto, uma possível vitória do Aécio, que espero não ocorra, será temerária principalmente para as populações minoritárias. Mas o será também a permanência do atual governo sem mudanças e compromissos efetivos com os programas de esquerda e dos devires-minorias.

Por ser contra Aécio, não posso, ao me posicionar eleitoralmente pró-Dilma, furtar de questionar estes pontos acima, que me parecem (e não somente eles) vitais para podermos de fato avançar em um posicionamento crítico. É necessário que não se perca de vista que do contrário estaremos compactuando para uma realidade sem expectativa de mudanças reais, pois independentemente de quem ganhar essas eleições, no atual quadro, sabemos exatamente quem perderá novamente: perdeu índio, perdeu preto, perdeu mulher, perdeu pobre, perdeu viado, perdeu… perdemos nós.

Como brilhantemente apontou a amiga Mayara Mattos, é necessário, neste momento “no mínimo, ensejar uma discussão política de como as atuais possibilidades de exercer a cidadania são enclausuradoras, sobre como não é mais viável continuar defendendo um sistema político baseado em diretrizes coloniais”.

Como afirma a Mayara, defender o menos pior é derrotismo. E é mesmo!!! Apesar disto, neste quadro eleitoral atual, assumo que votarei em um governo conservador, neoliberal, retrógado, repressivo, que permitiu a continuidade do extermínio de minorias: o governo Dilma. Mas o faço porque creio que o Devir-Minoria nos impele a evitar um mal – ainda – maior.

PS: sobre a ideia de devir-minoria, remeto à passagem de seu próprio formulador, Deleuze:

“não existe governo de esquerda, pois a esquerda não tem nada a ver com governo. Se me pedissem para definir o que é ser de esquerda ou definir a esquerda, eu o faria de duas formas. Primeiro, é uma questão de percepção. (…) Não tem nada a ver com a boa alma. Para mim, ser de esquerda é isso. E, segundo, ser de esquerda é ser, ou melhor, é devir-minoria, pois é sempre uma questão de devir. (…) A esquerda nunca é maioria enquanto esquerda por uma razão muito simples: a maioria é algo que supõe – até quando se vota não se trata apenas da maior quantidade que vota em favor de determinada coisa – a existência de um padrão. No Ocidente, o padrão de qualquer maioria é: homem, adulto, macho, cidadão. (…) O padrão é esse. Portanto, irá obter a maioria aquele que, em determinado momento, realizar este padrão. Ou seja, a imagem sensata do homem adulto, macho, cidadão. (…) Há todos os devires que são minoria. O homem macho, adulto não tem devir! (ele é o padrão). Pode ter devir mulher e ai vira minoria. A esquerda é o conjunto dos processos de devir minoritário. Eu afirmo: a maioria é ninguém, e a minoria é todo mundo. Ser de esquerda é isso: saber que a minoria é todo mundo e que é aí que acontece o fenômeno do devir. É por isso que todos os pensadores tiveram dúvidas em relação à democracia, dúvidas sobre o que chamamos de eleições”.

 *O título se inspira em uma frase de André Vallias. [E Carlos Eduardo Marques é antropólogo].

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