Comunidade do Barranco, na Praça 14, se torna o segundo quilombo urbano do País

Foto: Érica Melo
Foto: Érica Melo

Quilombo da Praça 14 tem sua história reconhecida graças à resistência das famílias remanescentes de escravos do Nordeste

Por Rosiene Carvalho, em A Crítica

A rua Japurá, na Praça 14 de Janeiro, Zona Sul de Manaus, guarda preciosa página viva da história do Amazonas. No local, resistem, há mais de um século, famílias remanescentes de escravos do Maranhão, que vieram para Manaus construir uma nova história de luta por liberdade e igualdade na Comunidade do Barranco.

As tradições dos antepassados foram mantidas pelas gerações que as sucederam, apesar do descaso do poder público na preservação da cultura e da história desse povo que se confunde com a da cidade. Também tentaram sufocar as tradições do Barranco o forte preconceito sobre a contribuição dos  negros na formação da sociedade e cultura do Estado.

Graças a essa resistência, há cerca de um mês, a Fundação Cultura Palmares concedeu aos descendentes dos escravos maranhenses a certidão de autodenifinição de quilombo. O reconhecimento tornou a comunidade o segundo quilombo em área urbana do País.

O santo protetor dos negros, São Benedito, é, de certa forma, o grande responsável pela preservação da tradição dos fundadores da Comunidade do Barranco. Isso porque parte da tradição da cultura afro foi se perdendo com o tempo. As festas da comunidade nunca tiveram  qualquer apoio ou reconhecimento do poder público.  “Hoje não temos aqui nenhum terreiro. Não há mais benzedeiras na Praça 14. As pessoas que ficaram não seguiram da mesma forma a religião. Mas outros costumes permanecem: a festa de São Benedito é realizada há 125 anos com a estátua trazida pela vó Severa do Maranhão após ser alforriada”, disse.

A família de Cássius descende da negra Maria Severa, que veio do Maranhão alforriada, com três filhos. Ela se reuniu na comunidade com outras famílias de negros vindos do Maranhão, como Raimundo Elísio e “seo” Augusto.

Severa também trouxe as correntes com as quais a aprisionavam na senzala. “A vó Severa costumava usar as argolas da corrente na perna. Era uma forma de mostrar que foi escrava e que resistia àquela condição. Muitas pessoas das nossas famílias trabalharam na construção do Teatro Amazonas, do Reservatório do Mocó (hoje, pontos turísticos de Manaus)”, declarou.

Símbolos

A festa de São Benedito envolve ainda a tradicional suspensão do mastro com oferendas, as novenas e o encerramento regado a comidas típicas da cultura afro, eventos que reúnem toda a comunidade e outras pessoas do bairro.

Apesar de ser uma tradição há 125 anos, apenas há aproximadamente 20 anos o santo tem permissão para “entrar” na igreja católica do bairro: Nossa Senhora de Fátima. “O preconceito dos padres mais antigos era forte com os negros. Tanto que o santo está presente na comunidade há 125 anos e a igreja aqui construída recebeu o nome de uma santa de Portugal”, disse Cássius.

‘Triste pensar que isso um dia podia acabar’

Edna Lago Rodrigues, 79,  conhecida como ‘dona Guguta’, afirmou que, do convívio ainda menina com dona Severa, aprendeu a dar valor à sua cor e à sua tradição. Guguta sofreu muito preconceito durante a juventude por ser negra. Na época, muitos homens brancos não assumiam relacionamento com mulheres negras. “Meu marido era branco e, antes de ficar com ele, eu perguntei se ele ia me assumir mesmo. E ele  não largou essa pretinha aqui, só para morrer”.

Uma das integrantes mais antigas da Comunidade de Barranco, dona Guguta afirma que a certificação de remanescente de quilombolas garante que as futuras gerações tenham consciência de suas origens e mantenham as tradições que ainda resistem até os dias atuais.

“Seria muito triste se não tivesse mais a festa de São Benedito. Muito triste pensar que isso um dia podia acabar”, disse. Outras mulheres que formaram a comunidade, como a ‘dona Lindoca’, figura histórica do bairro Praça 14 de Janeiro, foi uma das fundadoras da tradicional escola Vitória Régia, que deu ao bairro a fama de berço do samba em Manaus.

Cronologia

Meados do século 20:  Fotos de antigos moradores da Comunidade do Barranco na novena a São Benedito e o Mastro erguido com oferendas a São Benedito. A tradicional festa religiosa em torno da figura do santo protetor dos negros manteve os costumes da comunidade.

Década de 1980: Outra realização da Festa de São Benedito envolvendo moradores da comunidade e a tradicional feijoada de São Benedito oferecida à comunidade no ano passado, quando a Fundação Cultura Palmares esteve em Manaus reunindo dados para conceder a certificação de remanescente de quilombos.

Análise de Ademir Ramos, antropólogo: “Certificação  é afirmação”

A certificação é uma afirmação e reconhecimento desse território  e dessa cultura. Quando se reconhece que em Manaus há um quilombo urbano, se refuta as teses dos historiadores clássicos que afirmam que no Amazonas não havia negros, que tentam desqualificar a história negra na Amazônia, a participação deles na construção da nossa cultura e sociedade. Essa titulação mostra que houve, sim, essa cultura migrante vinda do Maranhão, ligada ao governador Eduardo Ribeiro, que era maranhense e trouxe de lá para cá artífices negros que  trabalharam na construção civil do Estado. Eles moraram na Praça 14 e conservaram suas tradições. São Benedito, nesse ponto, toma uma grande dimensão, porque os costumes foram mantido ao redor dessa religião, que tem a sua dinâmica. Um santo, aliás, proibido na igreja e festejado na comunidade. Quando construíram a igreja do bairro, por pressão dos portugueses, deram a ela o nome de Nossa Senhora de Fátima e não São Benedito, que tem maior identificação com o bairro”.

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