Luís Roberto Barroso rejeita queixa-crime da Aty Guasu e Conselho Terena contra Heinze, pois a competência seria da Funai

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Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

O deputado federal mais votado do Rio Grande do Sul, Luís Carlos Heinze, escolhido como “racista do ano” pela ONG inglesa Survival, afirmou em entrevista a Daniel Favero que poderia até mesmo processar os que assim o chamam, pois “o STF entendeu que não tem nada de racismo (…). Houve um processo que moveram contra mim, mas tem a decisão do ministro Barroso, de alguns dias atrás, me inocentando dessa acusação” (ver AQUI). A verdade é que, na decisão publicada hoje, 7 de outubro, o Ministro Barroso não chega a entrar no mérito da questão, pois rejeita a queixa-crime feita pelos Conselhos Aty Guasu Guarani Kaiowá e do Povo Terena “por ilegitimidade ativa”. Ou seja: não considera os Conselhos aptos para propor ação em nome da comunidade indígena.

Como diz na sua decisão, publicada na íntegra abaixo, a competência para o processo em nome dos Povos Indígenas seria da Funai: “ainda que se cogite de legitimidade extraordinária em razão de lesão transindividual à honra da comunidade indígena, seria competente a FUNAI para propor a ação (art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 5.371/67)”. Já com relação às demais ofensas, Luís Roberto Barroso concorda com o Procurador-Geral da República no sentido de que “o ofendido seria o Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho”. Caberia a ele, pois, a iniciativa de propor a ação.

Abaixo, a íntegra da Decisão:

DJe-195 DIVULG 06/10/2014 PUBLIC 07/10/2014

Partes

AUTOR(A/S)(ES) : CONSELHO ATY GUASSU GUARANI KAIOWA E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) : ADELAR CUPSINSKI E OUTRO(A/S)
INVEST.(A/S) : LUIS CARLOS HEINZE
ADV.(A/S) : EDUARDO ANTÔNIO LUCHO FERRÃO
INVEST.(A/S) : ALCEU MOREIRA
ADV.(A/S) : ARMÊNIO DE OLIVEIRA DOS SANTOS E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) : ALEXANDRE RÖEHRS PORTINHO
ADV.(A/S) : RAFAEL MODESTO DOS SANTOS
AUTOR(A/S)(ES) : CONSELHO DO POVO TERENA
ADV.(A/S) : CRISTIANE DA SILVA HOMRICH

Decisão

Ementa: Direito Processual Penal. Ação penal privada subsidiária da pública. Ilegitimidade ativa para a causa. 1. Na ação penal privada, conforme disposto no artigo 100, § 2º, do Código Penal, bem como no art. 30 do Código de Processo Penal, apenas o ofendido pode propor a ação penal privada ou quem tenha qualidade para representá-lo. 2. Nesse contexto, não há nos autos documento que formalize a representação dos ofendidos. 3. Excepcionalmente, há situações em que, por expressa previsão legal, o legitimado para o oferecimento da queixa-crime subsidiária pode ser pessoa física ou entes não ligados diretamente ao ofendido, o que não é o caso. 4. De toda sorte, ainda que se cogite de legitimidade extraordinária em razão de lesão transindividual à honra da comunidade indígena, seria competente a FUNAI para propor a ação (art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 5.371/67). 5. Rejeitada a queixa-crime e determinado o arquivamento do procedimento, por ilegitimidade ativa.

1. Trata-se de queixa-crime subsidiária de denúncia proposta pelo Conselho Aty Guassu Guarani Kaiowa e Conselho do Povo Terena em face dos Deputados Federais Luis Carlos Heinze e Alceu Moreira, imputando-lhes a prática dos crimes de crime de racismo (art. 20, caput, e § 2º da Lei nº 7.716/89, na redação dada pela Lei nº 9.459/97: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa”), bem como de incitação à violência e ódio contra os povos indígenas (arts. 286: “Incitar, publicamente, a prática de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa” e 287: “Fazer, publicamente, apologia de fato criminoso ou de autor de crime: Pena – detenção, de três a seis meses, ou multa”, ambos do Código Penal).

2. Narra a peça acusatória que os acusados, no dia 29 de novembro de 2013, em uma audiência pública na cidade de Vicente Dutra/RS, teriam proferido discursos racistas e incitaram a violência e ódio contra grupos minoritários. Alega que, posteriormente, no dia 07 de dezembro de 2013, no evento denominado “Leilão da Resistência”, teriam reproduzido o mesmo discurso.

3. A manifestação do Deputado Federal Alceu Moreira possui o seguinte conteúdo:
Nós os parlamentares, não vamos incitar a guerra, mas lhes digo: se fardem de guerreiros e não deixem um vigarista destes dar um passo na sua propriedade, nenhum. Nenhum. Usem todo o tipo de rede, todo mundo tem telefone, liguem um para o outro imediatamente, reúnam multidões e expulsem do jeito que for necessário. (fls. 3/4)

4. Já o Deputado Federal Luiz Carlos Heinze teria assim se manifestado:
Agora eu quero dizer para vocês, o mesmo governo, seu Gilberto Carvalho, também é ministro da presidenta Dilma, e ali estão aninhados quilombolas, índios, gays, lésbicas, tudo o que não presta ali estão aninhados… Por isso, pessoal, só tem um
jeito: se defendam. Façam a defesa como no Pará estão fazendo. Façam a defesa como o Mato Grosso do Sul está fazendo. Os índios invadiram uma propriedade, foram corridos da propriedade, isso que aconteceu lá. (fl. 5)
(…)
Tem no palácio do planalto um ministro da Presidenta Dilma, chamado Gilberto Carvalho, que aninha no seu gabinete, índio, negro, sem terra, gays, lésbicas, a família não existe no gabinete desse senhor (…) não espere que essa gente vai resolver o
nosso problema. (fl. 6)

5. Recebidos os autos, determinou-se a notificação dos acusados para oferecerem resposta. O Deputado Federal Luis Carlos Heinze, às fls. 80/107, e o Deputado Federal Alceu Moreira, às fls. 115/136, sustentaram, em síntese, (i) a ilegitimidade ativa das entidades associativas, (ii) imunidade material e (iii) a ausência de individualização das condutadas de cada querelado.

6. O Procurador-Geral da República, às fls. 138/146, opinou pela rejeição da queixa-crime, com base em três fundamentos: (i) ilegitimidade ativa; (ii) imunidade material; (iii) ausência de dolo específico.

7. É o relatório. Passo a decidir.

8. Preliminarmente, observo que a queixa-crime foi proposta por organizações não-governamentais e que essas entidades, nos termos do artigo 5º, V, da Lei 7.347/85, possuem legitimidade em tutela coletiva extrapenal. A redação do referido dispositivo é a seguinte:
Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
(…)
V – a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao patrimônio público e social, ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, aos direitos de grupos raciais, étnicos ou religiosos ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

9. Na ação penal privada, conforme disposto no artigo 100, § 2º, do Código Penal (“A ação de iniciativa privada é promovida mediante queixa do ofendido ou de quem tenha qualidade para representá-lo”), bem como no art. 30 do Código de Processo Penal (“Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada”), apenas o ofendido pode propor a ação penal privada ou quem tenha qualidade para representá-lo. Nesse contexto, não há nos autos documento que formalize a representação dos ofendidos. Excepcionalmente, há situações em que, por expressa previsão legal, o legitimado para o oferecimento da queixa-crime subsidiária pode ser pessoa física ou entes não ligados diretamente ao ofendido, o que não é o caso.

10. De toda sorte, ainda que se cogite de legitimidade extraordinária em razão de lesão transindividual à honra da comunidade indígena, seria competente a FUNAI para propor a ação (art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 5.371/67).

11. Ademais, conforme assentado pelo Procurador-Geral da República “se havia algum indício do especial de ofender, o ofendido seria o Ministro-Chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, a quem teriam sido dirigidas as palavras tidas por ofensivas acima transcritas, bem como a acusação de ter incitado os índios a invadirem a terra conflituosa.”

12. Por essas razões, acolhendo o parecer ministerial, rejeito a queixa-crime e determino o arquivamento do procedimento, por ilegitimidade ativa, nos termos do art. 395, II, do Código de Processo Penal c/c art. 21, XV, do RISTF. Publique-se.

Brasília, 1º de outubro de 2014
Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO
Relator
Documento assinado digitalmente

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