Cansados de passar fome, 250 indígenas Kaiowá retomam parte do território ancestral de Kurusu Ambá

IMG_1676Cimi Regional Mato Grosso do Sul

A fome e a situação de extrema vulnerabilidade “vivida” por mais de 50 famílias Kaiowá ao longo das últimas décadas em um acampamento localizado nas cercanias da cidade de Coronel Sapucaia, no Mato Grosso do Sul, levaram na tarde desta segunda-feira, 22, cerca de 250 indígenas a retomarem uma pequena parte de seu território tradicional, conhecido como Kurusu Ambá. As famílias ocuparam porções de terra e iniciarão o plantio de seus alimentos e cessar a fome que há muito lhes têm açoitado – chegando a tirar a vida de suas crianças.

Segundo relato dos indígenas, na tarde desta segunda, um arrendatário foi até o limite da área que estabelece divisa entre a fazenda Auxiliadora e o local onde os Kaiowá estão acampados – enclausurados desde 2009 em uma diminuta área de reserva legal existente junto à fazenda. O arrendatário então anunciou que novamente a área existente seria usada para o plantio por parte da fazendeira, não restando aos indígenas nenhum hectare de sua própria terra. Na pequena faixa de mato em que estavam, as mais de 50 famílias Kaiowá esperaram pacientemente, até esta retomada, pela demarcação de seu Tekoha – lugar onde se é. Mesmo sem nenhuma atitude do governo, não esperaram em vão.

As famílias indígenas, de maneira absolutamente pacífica, impediram as pretensões do arrendatário e informaram que retomariam imediatamente a parte de Kurusu Ambá necessária para garantir minimamente a sobrevivência do povo Kaiowá. A partir de então, os Kaiowá bloquearam as estradas que dão acesso à fazenda em protesto a situação de genocídio a que estão submetidos. Os próprios indígenas chamaram representantes da Força Nacional de Segurança, que integram a Operação Guarani com a intensão de garantir a segurança da comunidade indígena e evitar conflitos com possíveis (prováveis) pistoleiros. Os indígenas deram um dia para que o arrendatário e sua família deixem a área e garantiram que seus bens permanecerão intocados até que possam ser devidamente retirados. Os Kaiowá anunciam que não recuarão de sua decisão de retomar parte de sua área ancestral esperando a continuidade do processo demarcatório em condições dignas de vida e em posse daquilo que lhes pertence.

Há mais de dois anos atrás, os meios de comunicação da cidade de Amambai e da região têm registrado os estragos que a monocultura de soja tem causado a estas famílias indígenas. Alijadas de sua terra, sofrem longos períodos de fome aguda, onde muitas vezes se alimentam apenas de farinha de mandioca e água. Além disso, são sistematicamente fatigados por doenças causadas tanto pela desnutrição quanto pela ingestão de água contaminada com fortes dosagens de agrotóxicos. O Cimi vem a quase uma década denunciando tal situação, que poderia ser evitada caso os indígenas ocupassem sua terra tradicional e tivessem acesso à água, remédios e alimentos, medidas que só dependem da vontade política do governo federal.

Para além das condições básicas de vida, esta situação ainda retira do povo Kaiowá a possibilidade de viver conforme seus costumes e dinâmicas sociais, colocando em risco a preservação de sua cultura e ferindo direitos constitucionais e sagrados deste povo. O Grupo de Trabalho (GT) da Funai foi instaurado ainda em 2008, porém, mesmo com o reconhecimento da tradicionalidade da terra indígena por parte do órgão indigenista a demarcação não foi assegurada. A situação veio a piorar uma vez que procedimentos demarcatórios encontram-se paralisados por determinação do governo federal, deixando os indígenas sem expectativas de resolução pelas vias institucionais.

Os Kaiowá exigem a imediata continuação dos procedimentos demarcatórios em Kurusu Ambá por parte do governo federal e solicitam, em caráter de urgência, ao Ministério Público Federal e Polícia Federal que todas as medidas para garantir a segurança das famílias sejam tomadas, tendo em vista o amplo histórico de violência contra os povos indígenas praticado por pistoleiros sabidamente ligados às fazendas locais. Desde 2007, quando começaram as tentativas de retomada de Kurusu Ambá, mais de três lideranças indígenas foram assassinadas, e muitos outros. Velhos e crianças pereceram expostos aos diversos tipos de violência.

Um breve histórico da situação de violência sofrida pelos Kaiowá de Kurusu Ambá

– A terra sagrada de Kurusu Ambá trata-se é um território tradicional imemorial do povo Kaiowá e passou a ser reivindicado através de retomadas por parte dos indígenas a partir de janeiro de 2007. Na ocasião os indígenas foram expulsos de seu território pela ação de pistoleiros. Diversos indígenas foram espancados e tiveram seus corpos baleados. A rezadora Xurite Lopes, uma senhora de mais de 70 anos, foi assassinada;

– No mesmo ano, obstinados por recuperar seu território, os indígenas iniciaram novo processo de retomada e novamente tiveram uma liderança assassinada por pistoleiros. Desta vez foi o indígena Ortiz Lopes, que acabou perdendo a vida na tentativa de devolver aos Kaiowá seu Tekohá;

– Em 2009, durante a terceira tentativa de retomada, com o GT da FUNAI já instaurado, Osvaldo Lopes foi também assassinado; 

– A partir deste novo ataque sofrido, os indígenas voltaram a viver em acampamentos de lona ao longo das rodovias e estradas existentes entre Amambai e Coronel Sapucaia em situação completamente desumana, que gerou a morte de uma grande quantidade de crianças;

– Em novembro de 2009, os indígenas retomaram pela 4ª vez o pequeno pedaço de sua terra tradicional, ocupando uma pequena faixa de mato nos limites da reserva legal onde incide a fazenda Maria Auxiliadora. Sofreram processos de reintegração de posse, porém sua permanência foi garantida por decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3);

– Apesar de dentro dos limites do seu território, os indígenas foram mantidos estes últimos anos em uma espécie de confinamento. Com a paralisação dos procedimentos demarcatórios, os Kaiowá ficaram alijados de sua própria terra, sobrevivendo de maneira desumana, sem sequer terem suas condições básicas de vida supridas.

Campo Grande, 23 de setembro de 2014

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

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