Indígenas Tenharim sob ameaça em Humaitá, por Renan Albuquerque [ótimo!]

Cacique Ivan Tenharim, Foto: Funai
Cacique Ivan Tenharim. Morto em 2 de dezembro de 2013. Foto: Funai

Em Amazônia Real

Humaitá é um município do Estado do Amazonas localizado a sudoeste da capital Manaus. O território, mais recentemente, foi formado por migrantes sulistas e caboclos. Os índios que compõem o conjunto populacional já lá estavam desde tempos datados de 5 a 8 mil anos atrás.

Atualmente, ao todo, existem cerca de 45 mil almas torrando sob o calor dessa cidade média do bioma caracterizada por queimadas, desmatamento, pecuária, comércio irregular de terras sem registro de cadeia dominial e tristes festivais de vaquejada. Além desse posicionamento clássico e questionável acerca de modos de vida na Amazônia, outra coisa que caracteriza a cidade, hoje, é a aversão a indígenas. Uma aversão clara e instrumentalizada, constituída a partir de discursos e armas de grileiros, posseiros, megaempresários inescrupulosos e demais tipos de espíritos preconceituosos que lucram com a tragédia do outro – sobretudo se esse outro tiver identidade pré-colombiana na América.

Durante trânsito no entorno da rodovia Transamazônica e na sede de Humaitá na semana que passou e um pouco antes, foram tomados registros de falas de pesquisadores locais e moradores da região a respeito da sociocultura do município, que hoje se configura como espaço controverso de fronteiras étnicas. Contataram-se pessoas comuns localizadas em bares, restaurantes, posto de gasolina e ainda dois pesquisadores, um filósofo e outro antropólogo, que ajudaram com informações socioculturais do lugar.

A tentativa foi perceber em que medida poderiam se situar algumas das angulações daquelas pessoas, tradicionais e não tradicionais, acerca da indianidade das pessoas do lugar. A pretensão foi comparar o contexto social de humaitaenses, territorializados no Arco do Desmatamento, ante a representação social do índio segundo residentes do Baixo Amazonas, onde há cinco anos tem sido investigadas pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos (Nepam) – o qual lidero na Universidade Federal do Amazonas, com registro no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – concepções referentes às etnias Sateré-Mawé e Hixkariana.

Note-se que o Baixo Amazonas é também uma área de fronteira, situada no extremo leste do Estado, fazendo divisa com o Pará, e possui particularidades e singularidades incidentes, para bens e males, assim como se dá em Humaitá. Por essa questão de fronteira, simplesmente, é possível crer que o comparativo foi interessante em sentidos diversos. De igual modo, foi singular o trabalho, ou pelo menos assim se almejou na estada em campo, porque o município foi tomado enquanto cenário de dinâmicas em que crenças, atitudes, valores e ideologias estão sendo moldadas em função de variantes situacionais.

Na tentativa de abarcar um ponto de análise, assumiu-se como objetivo ponderar sobre a questão indígena recentemente pulsante do município, com especificidade para o conflito entre agrocomerciantes e Tenharim. Nesse intuito, pode-se perceber o porquê dos índios, a rigor, serem raridade enquanto composição populacional na sede do município.

A presença deles não se faz notada por conta de fatores relacionados a: i) preconceito étnico, ii) sugestão de criminalidade, iii) presunção negativa ante direitos legais e iv) indução à inferioridade da pessoa indígena. Atos decorrentes de uma naturalização do ódio contra os tradicionais parecem corriqueiros e grande parte dos humaitaenses comunga do senso comum anti-indígena, agindo de maneira associada, segundo levantamento de pesquisadores experientes na temática e avaliadores com mais tempo de estudo sobre os Tenharim.

Foi perturbador notar que hoje, infelizmente, funda-se em Humaitá uma unanimidade racista que produz atos violentos e grotescos, assim como era a juventude fascista da Itália em plena pré-Segunda Grande Guerra: uma juventude que lia ao mesmo tempo o Evangelho de São Mateus e Mein Kampf de manhã e assassinava sociais-democratas e comunistas à tarde.

Em Humaitá, a tentativa foi observar em que medida ações segregacionistas anti-indígenas tendem a se efetivar como mecanismos de defesa dos quais a população branca e mesmo caboclos cooptados se utilizam para desestabilizar psíquica e fisicamente os Tenharim. Tentou-se entender que se trata de um misto de perseguição étnica associada a estados de aversão pessoal e coletiva. Ser contra os índios, por exemplo, é ser defensor do trabalho, da pátria e dos bons costumes (seja lá o que a elite branca humaitaense entenda como bons costumes).

É importante destacar que se tratam de atos de perversão contra a pessoa indígena, de viés manifestos e brutais. São atividades de enfrentamento contra uma das populações étnicas mais violentadas da história do Sul do Amazonas. Sobre o sentimento oposicionista, constatou-se que não são latentes ou veladas as ações: elas são disseminadas contra os índios em Humaitá de modo aberto e sem pudor. Aliás, pudor é o que menos a direita elitista se importa em ter no âmbito de seu plano de poder na Amazônia. São assassinatos, espoliações, desregramentos e processos criminais já registrados contra os Tenharim de Humaitá. Um caos.

É crível supor que se não fosse a atuação do Ministério Público na cidade, com auxílio de intelectuais e indigenistas que concorreram para dispor de elementos do Direito e barraram a pretensão de megaempresários, muito mais assassinatos contra índios poderiam ter sido registrados. Sobretudo em razão de ações controversas registradas, tais como a ocorrida no primeiro bimestre deste ano, quando foi formada assembleia dentro do auditório central do campus da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) após a detenção dos Tenharim suspeitos do assassinato de três não-indígenas que residiam em Humaitá. Nessa assembleia, dentre demais questões tratadas, cogitou-se a ocupação da terra indígena Tenharim – o que seria uma violência à autodeterminação dos tradicionais. A entrada em área tradicional poderia ter se dado em oposição à soberania dos índios dentro da TI, fomentando mais conflitos na região.

Em suma, ser índio, hoje, no Sul do Amazonas, é mover-se sob a insígnia do medo. Na sede de Humaitá, uma das cidades mais esbranquecidas que já visitei na Amazônia, a situação é tensa. Foi uma experiência breve, porém muito diferente ao que já tinha presenciado em estudos no entorno da terra Waimiri-Atroari, ao norte de Manaus, e com os Atingidos pela Barragem de Balbina/Presidente Figueiredo. E diferente porque a situação é pior, verdadeiramente pior.

Renan Albuquerque é professor e pesquisador do colegiado de jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e desenvolve estudos relacionados a conflitos e impactos socioambientais entre índios waimiri-atroari, sateré-mawé, hixkaryana, junto a atingidos pela barragem de Balbina e com assentados da reforma agrária.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Aline Polli.

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