Guerras coreografadas e outros aspectos do maior esporte do mundo
Eduardo Galeano* [As passagens seguintes foram extraídas pela TomDispatch do livro de Galeano “Futebol ao Sol e à Sombra.”] – Carta Maior
O Estádio
Você já entrou em um estádio vazio? Tente. Fique no meio do campo e escute. Não há nada mais vazio do que um estádio vazio. Não há nada mais mudo quando está desprovido de espectadores.
Em Wembley, gritos da Copa de 1996, que a Inglaterra ganhou, ainda ressoam, e se escutar com cuidado ainda irá ouvir os murmúrios de quando a Inglaterra cedeu aos húngaros.
O estádio centenário de Montevidéu suspira com nostalgia pelos dias gloriosos do futebol uruguaio. O Maracanã ainda chora pela derrota Brasileira em 1950. Na Bombonera em Buenos Aires, tambores de um século atrás ainda rugem. Do abismo do Estádio Asteca, consegue-se ouvir os cantos cerimoniais do antigo jogo de bola mexicano. Os terraços de concreto do Camp Nou em Barcelona falam catalão, e as arquibancadas de San Mamés em Bilbao falam a língua basca. Em Milão, o fantasma de Giuseppe Meazza marca gols que balançam o estádio que carrega seu nome. A partida final da Copa de 1974, arrebatada pela Alemanha, é jogada dia após dia e noite após noite no Estádio Olímpico de Munique. O Estádio do Rei Fahd na Arábia Saudita tem mármore, caixas de ouro e arquibancadas atapetadas, mas não tem memória ou nada muito importante a dizer.
As Invasões Inglesas
Do lado de fora de um hospício, em um espaço vazio em Buenos Aires, vários garotos loiros estavam jogando bola.
“Quem são eles?” perguntou uma criança.
“Pessoas loucas,” respondeu o pai. “Ingleses loucos.”
O jornalista José de Soiza Reilly se lembra disso da sua infância. No início, futebol parecia um jogo de homens loucos no Rio da Prata. Mas enquanto o império expandia, o futebol se tornou uma ‘exportação’ tão tipicamente britânica quanto os tecidos de Manchester, ferrovias, empréstimos da Barings ou a doutrina do livre-comércio. Chegou ao pé dos marinheiros que jogavam pelas represas de Buenos Aires e Montevidéu, enquanto dos barcos da Vossa Majestade eram descarregados os cobertores, as botas, farinha, e pegavam lã, peles e trigo para fazer mais cobertores, botas e farinha no outro lado do mundo. Cidadãos ingleses – diplomatas, e gerentes de ferrovias e companhias de gás – formaram os primeiros times. Os ingleses de Montevidéu e Buenos Aires organizaram a primeira competição internacional do Uruguai em 1889, diante de uma pintura gigante da Rainha Victoria, seus olhos baixos em uma máscara de desdém.
Outra pintura da rainha dos mares vigiou o primeiro jogo de futebol brasileiro em 1895, jogado por sujeitos da Companhia Britânica de Gás e outros da ferrovia de São Paulo. Fotografias antigas mostram esses pioneiros em tom de sépia. Eram guerreiros treinados para batalha. Com uma armadura coberta por algodão e lã e que cobria seus corpos inteiros para não ofender as moças presentes de chapéus de seda e que abanavam seus lenços. A única carne que os jogadores expunham eram seus rostos sérios espreitando de trás de bigodes e abaixo de chapéus ou bonés. Seus pés eram calçados com sapatos pesados da Mansfield.
Não demorou muito para que a contaminação se espalhasse. Antes tarde do que nunca, os senhores nativos da sociedade local começaram a jogar aquele jogo inglês louco. De Londres, eles importaram as camisas, os sapatos, as meias e as calças que iam do peito ao joelho. As bolas não confundiam mais os funcionários aduaneiros, que no início não sabiam como classificá-las. Os navios também trouxeram manuais para as áreas fora das costas no sul dos EUA, e com eles vieram palavras que perduraram por muitos anos: campo, gol, goleiro, pênalti, impedimento, escanteio. A “falta” como punição feita pelo árbitro, mas o jogador agredido poderia aceitar um pedido de desculpas do outro jogador desde que “seu pedido fosse sincero e fosse expressado em inglês correto”, de acordo com o primeiro manual do futebol que circulava pelo Rio da Prata.
Enquanto isso, outras palavras inglesas estavam sendo incorporadas no vocabulário dos países latino-americanos no Caribe: jogador que lança a bola (pitcher), jogador que pega a bola (catcher) e turno. Tendo cedido à influência americana, esses países aprenderam a bater em uma bola com um taco de madeira. Os fuzileiros botavam nos ombros os tacos ao lado de seus rifles quando impunham ordem na região. O baseball foi para o povo do Caribe o que o futebol foi para nós.
Guerra Coreografada
No futebol, ritual de sublimação da guerra, onze homens com shorts são as espadas da vizinhança, da cidade ou da nação. Esses guerreiros sem armas ou armadura exorcizam os demônios da multidão e reafirmam sua fé: em cada confronto entre os dois lados, velhos amores e ódios passados de pai para filho entram em combate.
O estádio tem torres e bandeiras como um castelo, assim como um profundo e grande posso ao redor do campo. No meio, uma linha branca separa os territórios em disputa. Em cada extremos estão as goleiras que serão bombardeados com bolas voadoras. A área diretamente na frente do gol é chamada de “área de perigo”.
No círculo central, os capitães trocam bandeirolas e apertam as mãos como demanda o ritual. O árbitro assopra seu apito e a bola entra em ação. A bola viaja para trás e para frente, um jogador a captura e a leva a passeio, até que é atacado e cai de braços abertos. A vítima não se levanta. Na imensidão do campo verde, o jogador deita prostrado. Da imensidão das arquibancadas, vozes ecoam. A multidão inimiga emite um rugido amigável:
“¡Que se muera!” (“Que morra!”)
“Devi morire!” (“Deve morrer!”)
“Tuez-le!” (“Mate-o!”)
“Mach ihn nieder!” ( “Leve-o para baixo!”)
“Let him die!” (“Deixe-o morrer!”)
“Kill, kill, kill!” ( “Mate, mate, mate!”)
Lágrimas não caem do lenço
Futebol, metáfora para guerra, às vezes se transforma numa guerra mesmo. Aí “morte súbita” não é apenas mais um nome para um jeito dramático de decidir um jogo apertado. Atualmente, o fanatismo do futebol veio para ocupar o lugar reservado para o fervor religioso, ardor patriótico e paixão política. Como de costume na religião, patriotismo e política, o futebol pode trazer muita tensão, e muitos horrores podem ser cometidos por esse nome.
Alguns acreditam que o homem está possuído pelo demônio da bola, e francamente, essa imagem apresenta uma figura certeira do fã frenético. Mas mesmo a crítica mais indignada chegaria a conclusão de que na maioria dos casos a violência não se origina no futebol, assim como lágrimas caem do lenço.
Em 1969 se iniciou uma guerra entre Honduras e El Salvador, dois pequenos e pobre países da América Central que, por mais de um século, estiveram acumulando razões para não confiar um no outro. Um sempre serviu como a explicação mágica dos problemas do outro. Hondurenhos não conseguiam trabalho? Porque eles eram tomados pelos salvadorenhos. Salvadorenhos estão com fome? Porque os hondurenhos os maltratam. Ambos os países acreditavam que seu vizinho era o inimigo, e as ditaduras militares de cada um fizeram o que podiam para perpetuar esse erro.
Essa guerra foi chamada de Guerra do Futebol por que as faíscas que iniciaram o incêndio foram atacadas no estádio de Tegucigalpa e São Salvador. O problema começou durante as qualificações para a Copa de 1970. Tiveram brigas, mortes e muitos machucados. Uma semana depois, os dois países cortaram relações. Honduras expulsou 100 mil salvadorenhos que sempre trabalharam no país; tanques salvadorenhos cruzaram a fronteira.
A guerra durou uma semana e matou 4 mil pessoas. Os dois governos, ditaduras forjadas em uma fábrica dos EUA chamada “Escola dos Americanos,” sopraram o fogo do ódio mútuo. Em Tegucigalpa o slogan era “hondurenho, não fique parado, pegue um pau e mate um salvadorenho”. Em São Salvador: “ensine uma lição àqueles bárbaros”. Os lordes da terra e da guerra não perderam uma gota de sangue, enquanto pessoas descalças vingavam suas misérias idênticas matando umas às outras.
O Fim de Jogo
A bola gira e o mundo gira. As pessoas suspeitam que o sol seja uma bola em chamas que funciona todo o dia e passa a noite perambulando pelo céu enquanto a lua cumpre seu turno, mesmo a ciência sendo um pouco duvidosa. Não há dúvidas, no entanto, sobre o fato de que o mundo gira em torno de uma bola giratória: a final da Copa de 94 foi assistida por mais de 2 bilhões de pessoas, a maior platéia da história da humanidade. É a paixão mais compartilhada: muitos admiradores da bola jogam em campinhos, e muitos mais têm uma caixa em frente à TV e roem as unhas enquanto 22 homens correm atrás de uma bola para provar seu amor.
No final da Copa de 94 toda criança nascida no Brasil se chamava Romário, e a relva do estádio em Los Angeles foi vendida como pizza, por U$ 20 o pedaço. Vale um pouco de insanidade por uma boa causa? Um negócio primitivo e vulgar? Uma sacola de travessuras manipuladas pelos donos? Sou um daqueles que acredita que o futebol pode ser tudo isso, mas ainda é muito mais: um banquete para os olhos que assistem e um prazer para os corpos que jogam. Um repórter uma vez perguntou à teóloga alemã Dorothee Sölle, “como explicaria a felicidade a uma criança?”. “Eu não explicaria,” ela disse. “Eu jogaria uma bola e a deixaria jogar.”
O futebol profissional faz de tudo para castrar esse prazer de jogar bola, mas sobrevive além de tudo. E talvez seja por isso que o futebol nunca deixa de ser estonteante. Como meu amigo Ángel Ruocco diz [sobre o futebol] – a capacidade teimosa de surpreender. Por mais que os tecnocratas programem todo e qualquer detalhe, por mais que os poderosos manipulem, o futebol continua a ser a arte do imprevisível.
Um vazio espantoso: a história oficial ignora o futebol. Os textos de história contemporânea não mencionam, mesmo em países nos quais o futebol foi e ainda é o símbolo primordial de identidade coletiva. Jogo logo existo: um tipo de jogo é um modo de ser que revela o perfil único de cada comunidade e afirma seu direito de ser diferente. Me diga como joga que eu te direi quem és. Por muitos anos o futebol foi jogado em estilos diferentes, expressões únicas das personalidades de cada pessoa, e a preservação dessa diversidade parece ser muito mais necessária do que era antes. Estamos em tempos de uniformidade obrigatória, no futebol e em tudo mais. Nunca o mundo foi tão desigual nas oportunidades que oferece e tão igual nos hábitos que impõem. Nesse mundo fim-de-século, quem não morre de fome morre de tédio.
Por anos me senti desafiado pela memória e pela realidade do futebol, e tentei escrever algo digno para essa massa pagã que é capaz de falar várias línguas e emanar uma paixão tão universal.
Pela escrita, eu iria fazer com as minhas mãos o que eu nunca pude fazer com os pés: sendo desajeitado e a desgraça dos campos, não tive opção a não ser pedir por palavras para a bola que eu tanto desejava mas me sempre negava.
Desse desafio, e pela necessidade de expiação, esse livro nasceu. Homenagem ao futebol, a celebração das suas luzes e denúncia de suas sombras. Não sei se acabou de jeito que o futebol queria, mas sei que cresceu em mim e chegou à sua última página, e agora que nasceu, é de vocês. E eu sinto aquela melancolia irreparável que todos sentem depois de fazer amor no final da partida.
*Tradução de Isabela Palhares.
Olá, bom dia, acredito que a pessoa que traduziu o texto se equivocou, pois não houve copa do mundo em 1996. A Inglaterra possui apenas um título, conquistado em 1966.