Historiadora Heloísa Starling defende que militares liberem as informações sobre o período da ditadura

'Se os arquivos militares forem abertos nós vamos poder comprovar se o que estamos fazendo é correto ou não'
‘Se os arquivos militares forem abertos nós vamos poder comprovar se o que estamos fazendo é correto ou não’

Com base no relatório coordenado por Heloísa, com a participação de 18 pesquisadores do Projeto República, da UFMG, as Forças Armadas consentiram em apurar as denúncias de torturas cometidas em sete unidades militares, entre elas o 12° Regimento de Infantaria, em BH

Por Daniel Camargos, no Estado de Minas

“A nossa democracia só vai se completar o dia que o poder militar obedecer o poder civil”, afirma a professora Heloísa Starling, uma das assessoras da Comissão Nacional da Verdade (CNV), quando perguntada sobre a importância das Forças Armadas abrirem para consulta externa os documentos considerados secretos durante a ditadura militar (1964-1985).

Mesmo sem os documentos secretos, a CNV, criada em maio de 2012 e que funcionará até dezembro deste ano, já conseguiu um fato inédito. Com base no relatório coordenado por Heloísa, com a participação de 18 pesquisadores do Projeto República, da UFMG, as Forças Armadas consentiram em apurar as denúncias de torturas cometidas em sete unidades militares, entre elas o 12° Regimento de Infantaria, em Belo Horizonte.

Além dessa pesquisa, o grupo comandado por Heloísa é responsável por outros estudos que subsidiam a CNV. Na última segunda-feira, o resultado parcial da pesquisa sobre os centros clandestinos de tortura foi apresentado e, segundo a professora, mais detalhes sobre eles serão revelados. “Aquilo que parecia existir só na Casa da Morte, em Petrópolis, fazia parte de uma política”, afirma, em referência ao centro de tortura e morte instalado em Petrópolis, que funcionou de 1971 a 1974 e onde pelo menos 13 pessoas foram mortas.

Heloísa é doutora em ciência política e autora do livro Senhores das Gerais – os novos inconfidentes e o golpe militar de 1964 (Vozes, 1986), que foi a tese de mestrado dela, quando orientada por René Armand Dreifuss. Em entrevista ao Estado de Minas ela conta como é realizado o trabalho para a CNV.

O que significa as Forças Armadas aceitarem apurar as denúncias de tortura em suas unidades?
Significa que a CNV apresentou uma pesquisa tão bem fundamentada, que os militares tiveram que reconhecer e investigar. Isso não é pouca coisa. Como diria o presidente Lula: “Nunca antes na história desse país”.

É a maior realização da CNV?
É uma das grandes realizações da CNV. Mas a comissão fez outras coisas que são muito importantes. A quantidade de documentos que a comissão está colocando no arquivo nacional vai fazer a festa das próximas gerações de historiadores e de jornalistas. Ninguém vai conseguir trabalhar essa grande quantidade de documentos em um período curto. Outra coisa importante é a natureza dos documentos. Foi por causa da CNV que o Estado de Minas fez uma reportagem maravilhosa sobre o Relatório Figueiredo (publicada em 19 de abril do ano passado).

Militares e representantes da direita dizem que a comissão é da “meia verdade”, pois não investiga mortes atribuídas aos movimentos de esquerda e nem os justiçamentos. É papel da CNV analisar isso?
Essa é uma conversa que você tem que ter com a CNV, com os sete membros da CNV. Eu, como assessora, dar uma opinião nisso fica ruim. Mas é uma pergunta que você pode me fazer depois que acabar a CNV.

As pesquisas vão ser aprofundadas a ponto de dar nome aos “cachorros”, como eram chamados os que mudavam de lado e colaboravam com as forças armadas?
Quem vai dar os nomes é a CNV. Se ela quiser. Mas nós vamos aprofundar e, provavelmente, vamos ter resultados que, após terminar a CNV, serão divulgados, sim. A pesquisa da UFMG contempla essa questão, está investigando e, depois da comissão, vai divulgar o resultado.

A Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo concluiu que o ex-presidente JK foi assassinado. Uma conclusão como essa, que foi criticada e acusada de não ser bem fundamentada, não é perigosa?

É sim. Eu entendo que seria muito importante, talvez, que as informações que podem produzir mídia e serem bombásticas, passem pelo crivo dos jornalistas da comissão e dos historiadores, que podem dizer que falta cruzar informações com alguns documentos. Dizer que determinada afirmação não se sustenta. Ter auxiliares técnicos – historiadores, peritos e investigadores – é fundamental ou então corre-se o risco de soltar uma informação que vai causar conseqüências para a própria comissão. Na CNV, o Pedro Dallari (presidente da CNV) foi muito cuidadoso e muito exigente conosco e com todas as equipes no sentido da comprovação e de cruzar os depoimentos com documentos. Na pesquisa que fiz devem haver mais centros, devem haver mais vítimas, pode ser que uma vítima não tenha morrido lá. São erros que você corrige, mas a pesquisa não pode ser posta em risco.

A maior dificuldade é o acesso aos documentos do Exército?
Enquanto as Forças Armadas não abrirem seus arquivos – e os arquivos existem -, o trabalho do pesquisador é enorme, pois tem que trabalhar no vazio da pesquisa. Contar uma história sobre as quais as fontes oficiais estão ocultas é difícil, pois tem que buscar fontes que não são convencionais, tem que avaliar se são verossímeis ou não, como cruzar as fontes para não ficar com uma versão só. É muito difícil, pois se os arquivos militares forem abertos nós vamos poder comprovar se o que estamos fazendo é correto ou não.

A senhora pode dar alguns exemplos do que estão nesses arquivos?
Os prontuários das pessoas mortas. Quantas páginas a Marinha do Brasil, por exemplo, reuniu de documentos do Carlos Marighella. Isso é importantíssimo, pois nos permite entender quais foram os procedimentos de monitoramento dos opositores do governo e como as Forças Armadas pensavam. Quais são os códigos que foram utilizados para mensagens que tratam dos opositores do governo? Quais são os relatórios que foram feitos sobre os opositores do governo por elementos infiltrados? Quais os tipos de infiltrados que existiam? Existiam infiltrados que eram militares, mas tiveram outros que eram de esquerda e outros que entregaram por dinheiro. Nesses arquivos estão os contratos, relatórios e, além do que, nesses arquivos informam onde estão os corpos. Quem morreu, em qual circunstância e onde foi enterrado. E se não foi enterrado o que aconteceu. Esses arquivos são da maior importância.

O golpe completou 50 anos e o assunto está sendo discutido em todo o país. Não seria o momento ideal para que os arquivos sejam abertos?
Tem de ser. Como se diz aqui em Minas: tem de ser. A nossa democracia só vai se completar o dia que o poder militar obedecer o poder civil. Aqui é a historiadora falando. Tem que abrir os arquivos e parar com essa conversa de que os arquivos não existem. Eles existem sim! E se foi destruído eles têm que mostrar o termo de destruição. E se não mostrarem um termo eles cometeram um crime.

Os documentos podem reabrir de vez o debate sobre a revisão da lei da anistia?
Os documentos não. A medida que o país saiba as atrocidades que foram cometidas o país está discutindo. Esse assunto entra na pauta. A presença desses documentos não altera, na minha opinião, a correlação de forças. A importância desses documentos para mim, como historiadora, não é se vai punir ou não. A importância é que conta a história do país e eu acho que país tem o direito de conhecer a história. O país precisa desses documentos para conhecer a história. Se vai punir ou não essa não é a discussão do historiador, mas da sociedade brasileira.

Quando será entregue o relatório final com a descrição mais detalhada dos centros clandestinos de tortura e morte?
Começamos a fazer pesquisa em que trabalhamos primeiro a questão da tortura. A primeira conclusão foi de que a tortura como uma prática de interrogatório nos quartéis começa em 1964. E isso é uma descoberta. A pesquisa demonstrou que a tortura é uma estratégia usada pelo regime militar desde 1964 nos quartéis.

Após o AI-5, em dezembro de1968, passou a ser praticada com mais requinte de crueldade?
A tortura entra nas forças armadas a partir de três eventos internacionais: as guerras da Indochina, Vietnã e Argélia. É usada como técnica de interrogatório dentro dos quartéis. Quando se pensa em sadismo ou crueldade é como se você dissesse: “Ali tem meia dúzia de pessoas sádicos e, por essa razão, eles estão torturando”. Não. É uma técnica de interrogatório.

As técnicas de tortura usadas no Brasil durante a ditadura foram importadas?
A ideia de que a tortura é útil para extrair informações de opositores políticos é importada. É testada, principalmente, na Guerra da Argélia pelo exército francês. Mas, ela também tem adaptação nacional. Existem determinadas técnicas de tortura que são importadas do exército inglês, que foram usadas na Irlanda. Como uma câmara, que chamavam de geladeira, onde a temperatura aumentava e diminuía e você perdia a noção do tempo, se era o dia ou noite. Já o pau de arara é uma operação brasileira.

A partir dessa pesquisa vocês chegaram ao centros clandestinos de tortura?
Começamos a identificar que havia uma diferença. Aquilo que parecia existir só no caso da Casa da Morte, em Petropólis, fazia parte de uma política. Começamos uma pesquisa para CNV sobre os centros clandestinos. É uma pesquisa que puxa a outra, que puxa a outra, igual a história das mil e uma noites.

E quando ela será concluída?
Já temos mais detalhes sobre a fazenda 31 de março em São Paulo. Eu não sei nada sobre o sítio (Ribeirão das Neves), mas os meninos acham que dá para levantar. Não tenho informação sobre o sítio de Uberlândia. Uma vez divulgado o relatório parcial há a expectativa de que as outras comissões da verdade nos ajudem. Ou então os jornalistas. Se a comissão estadual da verdade pudesse nos ajudar seria uma beleza. A CNV, por mais que as equipes sejam boas, não vai dar conta de ver tudo no espaço de tempo que ela tem.

E a pesquisa que mostra quais foram as unidades do exército em que foram praticadas tortura?
Vimos que havia um mecanismo de tortura e estratégia das forças armadas que indicavam uma estrutura de inteligência de repressão mais complexa. O próximo passo foi tentar entender os desaparecimentos. Fizemos mapeamento dos quartéis onde foi praticada tortura, de 1969 até 1976. Porque nessa pesquisa não aparecem as delegacias de polícia? Porque queríamos entender os quartéis. Por isso a delegacia de furtos e roubos não entrou. É lógico que houve tortura lá. Mas a novidade é o quartel.

Quais foram as fontes principais?
Os depoimentos da Comissão Estadual de Direitos Humanos e da Comissão de Anistia. Só usamos depoimentos prestados ao estado. Na hora que o sujeito faz um testemunho para o estado brasileiro tem um peso muito grande, pois o estado reconheceu que ele falava a verdade, tanto que concedeu a indenização. Se o estado reconhece que ele está falando a verdade e paga a ele uma indenização o estado reconhece que houve tortura nesses quartéis. Então eles tem que ser investigados.

Qual o principal legado da CNV na sua opinião?
Os documentos. A quantidade de documentos que a CNV está colocando dentro do arquivo nacional e preparando as condições para que eles venham a tona. Esse é um grande legado. Contribuir para que um tema da história recente do país seja discutido é uma coisa muito importante. Estimular que a sociedade saiba mais, se interesse sobre isso é muito importante. Talvez uma outra é quando a CNV contribui para que a discussão seja feita para um número maior de pessoas. Cada vez que discutimos a ditadura nós vamos ter que pensar na democracia.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

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