Os Camargos: Remanescentes de quilombos vivem em estado de pobreza extrema

Camargos 4

Por Daniela Jacinto, em Cruzeiro do Sul

No bairro Votocel, separadas da população ali residente por um matagal, moram 15 famílias remanescentes de quilombos. A situação é de pobreza extrema e os descendente do escravo José Joaquim de Camargo vivem ali em um aglomerado de barracos, sem direito à água e luz elétrica, que alguns possuem devido a “gatos”. “Algumas famílias fizeram a instalação de modo irregular porque estamos cansados de pedir e termos esses benefícios negados, apesar do programa Luz Para Todos, do governo, essa luz não chega pra nós”, diz Rosana Vieira Noronha, responsável pela comunidade. Rosana é casada com o irmão de João, tataraneto de José Joaquim.

Rosana consegue sustentar os quatro filhos, uma sobrinha e um irmão vendendo frutas como abacate e banana e ainda catando material para reciclagem. “A igreja também nos ajuda”, conta ela, que já tentou desenvolver um projeto de pesca, mas não conseguiu. “Aqui nada acontece. Estamos esquecidos e ainda separados das pessoas pelo matagal.”

A maioria dos moradores daquele local se reconhece como quilombola, afirma Rosana. “Mas a gente não tem cultura preservada. Nossa atividade é limpar quintal, catar lixo para reciclagem. A gente não tem estrutura, queríamos um barracão para desenvolver um projeto de geração de renda, artesanato…”, diz.

João recorda que seu pai, que morava ali e criou os filhos naquele local, fazia balaio com bambu e paçoca no pilão. “Infelizmente enterraram tudo da nossa tradição”, lamenta João.

Ele lembra que desde 1979 ia com o irmão pegar documentos na Cúria Diocesana de Sorocaba. “A gente ia para Piedade, Sarapuí, percorríamos os cartórios. Agora se tivermos o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) nas mãos, as coisas começam a fluir”, diz.

Ainda de acordo com João, muitas informações foram obtidas com a ajuda do pesquisador Sílvio Vieira de Andrade Filho, autor do livro Um Estudo Sociolingüístico das Comunidades Negras do Cafundó, do Antigo Caxambu e de seus Arredores. “Ele inclusive tem documentos que não temos e foi com o Sílvio que obtivemos informações da nossa árvore genealógica”, comenta João.

A maior mágoa da comunidade é não ter o reconhecimento histórico e ser proprietária de terras que estão invadidas. “A gente aqui é rico e vive como pobre”, reclama Rosana, que lembra que tem 16 pedreiras instaladas nas terras dos Camargo.

A responsável pelo quilombo do Votocel afirma que o povo ali está cansado de sofrer. “Entra ano, sai ano são só promessas. A gente aqui sofre discriminação e por isso consegue nem emprego, vivemos de sobras”, diz ela. Com o que Rosana e os outros moradores mais se preocupam é com a falta de iluminação nas ruas, o que torna o local perigoso para as crianças e principalmente para os adolescentes que estudam à noite. “Meu filho chega depois das 23h… Além da falta de iluminação, nós abrimos um caminho no meio do mato para as crianças terem acesso mais fácil para irem à escola. Os políticos vêm aqui só em época de eleição, pedir voto e fazer promessas. A gente pediu tanta coisa, mas nunca conseguimos nada, nem mesmo temos vagas garantidas em creches”, diz.

O local, por ficar próximo a um matagal, está cheio de cobra, escorpião e caramujos. As crianças, conta Rosana, vivem picadas por carrapatos. “Quando conquistarmos o reconhecimento e tivermos o RTID, o que a gente quer primeiro é que a comunidade seja atendida pelos órgãos responsáveis. Enquanto não tivermos o RTDI nas mãos, as políticas públicas não chegarão a nós”, dizem Rosana, o cunhado João e os primos Luiz e Edson (também tataraneto de José Joaquim de Camargo).

Como é feito o reconhecimento

As comunidades quilombolas são grupos étnicos – predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana -, que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias. Estima-se que em todo o País existam mais de três mil comunidades quilombolas.

O Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Em 12 de março de 2004, o Governo Federal lançou o Programa Brasil Quilombola (PBQ) como uma política de Estado para as áreas remanescentes de quilombos. O PBQ abrange um conjunto de ações inseridas nos diversos órgãos governamentais, com suas respectivas previsões de recursos, bem como as responsabilidades de cada órgão e prazos de execução.

É a própria comunidade que se autoreconhece “remanescente de quilombo”. O amparo legal é dado pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, cujas determinações foram incorporadas à legislação brasileira pelo Decreto Legislativo 143/2002 e Decreto Nº 5.051/2004. Cabe à Fundação Cultural Palmares emitir uma certidão sobre essa autodefinição.

Com base na Instrução Normativa 57, do Incra, de 20 de outubro de 2009, as comunidades interessadas devem encaminhar à Superintendência Regional do Incra do seu Estado uma solicitação de abertura de procedimentos administrativos visando à regularização de seus territórios. Após sair a documentação, a fase seguinte do processo administrativo corresponde à regularização fundiária, com desintrusão de ocupantes não quilombolas mediante desapropriação e/ou pagamento de indenização e demarcação do território. O processo culmina com a concessão do título de propriedade à comunidade, que é coletivo, pró-indiviso e em nome da associação dos moradores da área, registrado no cartório de imóveis, sem qualquer ônus financeiro para a comunidade beneficiada.

 

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