Carta Aberta a Francisco Caporal: Sem Feminismo, não há Agroecologia!

agroecologiaHá alguns dias fomos surpreendidas por uma mensagem eletrônica do colega Caporal, tão respeitado entre todas as pessoas que militam em favor da agroecologia, comentando do seu incômodo com a livre utilização que esse termo tem tido no Brasil, e reclamando que se deveria ter mais vigilância epistemológica. Essa reclamação não é nova, Caporal e o saudoso Costabeber já escreveram vários textos sobre esse tema, sempre marcando sua posição de que é importante os conceitos serem apreendidos e utilizados corretamente para não serem desvirtuados. No entanto, duas questões nos incomodaram nessa mensagem, e não devem ficar sem resposta, sob pena de espalhar-se ideias equivocadas sobre o que vem acontecendo em nossas organizações e em nosso campo de atuação.

Em primeiro lugar – e não vamos nos alongar quanto a isso – nos estranha muito a referência feita por Caporal ao texto de Zander Navarro, em que este autor, de forma totalmente desrespeitosa, se refere às lutas de muitos setores sociais por uma agricultura sustentável no Brasil. Nos surpreende porque Caporal, ao chamar a atenção somente para os eventuais erros concentuais sobre a agroecologia (cometidos por pessoas que estão tentando acertar!), comentados no texto, não ressalte também a carga ideológica perversa e intencional com que aquele autor manipula os fatos. Em nossa opinião, Caporal acaba por corroborar, com essa atitude, um texto que deveria ser, no mínimo, contextualizado antes de ser divulgado.

Em segundo lugar, e mais grave para nós, mulheres que militam no campo agroecológico (e homens que nos apoiam nessa luta), é sua afirmação de que “se defendemos que a Agroecologia tem suas bases nas culturas indígenas e no campesinato (historicamente patriarcal e machista)”, a frase “não existe agroecologia sem feminismo” não se sustentaria. Nos ficou a impressão de que talvez Caporal esteja sofrendo da mesma confusão conceitual que atribui aos demais. Talvez não esteja claro para ele o que o termo feminismo quer dizer. Perdoem nossa pretensão, mas vamos tentar ajudá-lo nessa tarefa.

Feminismo, Caporal, é uma teoria crítica, um marco interpretativo, que nos permite dar visibilidade a aspectos do relacionamento opressivo entre os homens e as mulheres que de outra forma (em outros paradigmas) não seriam significativos ou seriam considerados normais. Quais seriam os pressupostos do feminismo enquanto teoria crítica? Fundamentalmente, o reconhecimento de que a realidade social se estrutura através de um sistema sexo-gênero, cuja expressão visível é a dominação das mulheres pelos homens. Tal realidade não é apenas uma construção sócio-histórica; é também uma ordem simbólica, uma forma de ver a realidade, de aceitar como normal uma situação que pelos parâmetros gerais da sociedade não seria aceitável, porque é opressiva.

A crítica feminista procura denunciar esses fatos, ao mesmo tempo analisando o passado e tentando construir uma utopia para o futuro. A teoria feminista por ser crítica (não legitimadora da ordem social), tem a obrigação de questionar os sistemas de pensamento existentes à luz dos pressupostos destes mesmos sistemas, mostrando as suas incoerências – no caso do feminismo ocidental moderno, mostrando que não existem direitos e liberdades iguais para todos, pois na verdade esses direitos são negados ou dificultados sistematicamente para uma parcela da população, no caso, as mulheres. Poderíamos também falar de outras opressões, mas não vem ao caso no momento.

Assim, concordamos com você quando diz que as culturas indígenas e o campesinato historicamente tem sido patriarcais e machistas. A questão que se coloca é a seguinte: a agroecologia quer continuar cega a essa situação? Quer aceitá-la como normal? Seria possível transformar a realidade do ponto de vista do paradigma produtivo e ambiental, sem mudar essas relações entre os homens e mulheres? Sem considerar a desigual distribuição dos recursos produtivos, a desigual divisão sexual do trabalho, o não reconhecimento da contribuição que as mulheres trazem aos conhecimentos tradicionais sobre a gestão ambiental, dadas por suas práticas, marcadas pelas atribuições de gênero? Não reconhecer que as mulheres, por serem cerceadas em sua autonomia pessoal, são impedidas de participar como cidadãs de muitas das atividades concernentes ao desenvolvimento rural?

Se a agroecologia quer ser coerente em seus propósitos de redesenhar os agroecosistemas levando em consideração todas as dimensões que você e Costabeber explicitam em seus textos – incluindo a dimensão de gênero, como vocês citam inúmeras vezes – ela terá que ser feminista, sim. Porque vai ser necessário agregar ao conjunto de conhecimentos que já são utilizados (como os que vêm da ecologia política, da educação popular, da agronomia, da ecologia, etc.) os referenciais teóricos trazidos pelo feminismo, que permitem explicitar e combater as formas como a opressão de gênero se manifesta. Talvez você não concorde com isso. Talvez você ache que abordar as relações de gênero seja simplesmente reconhecer que homens e mulheres situam-se em posições diferenciadas em nossas sociedades, e tudo bem. Talvez você pessoalmente não seja feminista, ninguém pode obrigá-lo. Mas reconheça que a agroecologia que você defendeu até agora: crítica, transformadora, que prima por uma visão ética de justiça social e ambiental, ou será feminista ou não será. Permanecer nesta posição de invalidar todas as iniciativas concretas que se está fazendo no intuito de construir essa utopia só pode levar ao imobilismo e à aceitação do status quo.

Por isso, continuaremos a repetir: “Não existirá agroecologia sem feminismo.”

Em 17 de dezembro de 2013.

Assinam:

1. Adreanne Bem – Aluna da UAST/UFRPE
2. Ana Elizabeth Siqueira – Assessora de Gênero do Projeto Gente de Valor/CAR/BA e mestranda do PPGNEIM/UFBA.
3. Ana Luiza C. B. Meirelles – Centro Ecológico
4. Ana Paula Lopes Ferreira – Coordenadora de Direito das Mulheres da Actionaid Brasil e Doutoranda de Agroecologia da UCCO.
5. Andréa Alice da Cunha Faria – Profa Departamento de Educação UFRPE e Doutoranda em Educação PPGE/UFPB.
6. Audejane Kelle – Aluna da UAST/UFRPE
7. Auxiliadora Aparecida Feital – Equipe técnica do CTA
8. Célia Varela Bezerra, feminista, ativista de direito humanos – secretária geral da FIAN Brasil.
9. Clara Soares De Freitas Guimarães – Estudante de Agronomia na UFV.
10. Claudenir Fávero- Professor, Departamento de Agronomia/FCA-UFVJM Núcleo de Agroecologia e Campesinato
11. Conselho Pastoral dos Pescadores Regional Nordestes – CPP/NE
12. Daniel Carvalho – Coordenador Geral da Associação de Pós-Graduandos/as da Universidade Federal Rural de Pernambuco.
13. Daniela Egger – Professora UERJ
14. Diana Mores – Educadora do Centro Nordestino de Educação Popular
15. Dora Feital – Projeto Mulheres e Agroecologia, CTA-ZM
16. Elisabeth Cardoso – CTA-ZM
17. Eliziana Vieira de Araujo
18. Emma Siliprandi – Pesquisadora Unicamp/FAO-RLC
19. Fabiana Silva – Professora, Universidade Federal de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada, Núcleo de Estudos, Pesquisas e Praticas Agroecológicas do semiárido – NEPPAS
20. Fatima Aparecida G. Moura (Cidinha) – Coordenadora Regional FASE MT
21. Graciete Santos – Casa da Mulher do Nordeste
22. Gema Galgani S. L. Esmeraldo – Profa. Universidade Federal do Ceará – Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Idade e Família/NEGIF/UFC
23. Glauco Regis Florisbelo – Equipe técnica do CTA e membro da coordenação da AMA
24. Islandia Bezerra – Universidade Federal do Paraná, Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional
25. Joao Amorim – Professor, Universidade Federal de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada, Núcleo de Estudos, Pesquisas e Praticas Agroecológicas do semiárido – NEPPAS
26. José Nunes da Silva – Membro do Núcleo de Agroecologia e Campesinato e Coordenador do Centro de Formação em Economia Solidária do Nordeste (SENAES-MTE/UFRPE).
27. Kellen Maria Junqueira – pesquisadora Laboratório TerraMãe/Feagri/Unicamp
28. Laercio Ramos Meirelles – Centro Ecológico
29. Laeticia Jalil – Professora, Universidade Federal de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada, Núcleo de Estudos, Pesquisas e Praticas Agroecológicas do semiárido – NEPPAS; coordenadora do GT- Gênero da ABA
30. Laura De Biase – doutoranda do Programa de Pós-graduação em Geografia Humana da FFLCH/USP
31. Letícia Tura – Diretora da FASE
32. Lilian Telles – GT Mulheres da ANA
33. Lorena Morais – Professora, Universidade Federal de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Serra Talhada, Núcleo de Estudos, Pesquisas e Praticas Agroecológicas do semiárido – NEPPA
34. Lúcia Félix – Movimento de mulheres trabalhadoras da Paraíba e Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste.
35. Maitê Maronhas – militante Marcha Mundial das Mulheres
36. Marcelo Casimiro Cavalcante – Zootecnista e Prof. Universidade Federal Rural do Pernambuco (UFRPE)
37. Maria Emília Pacheco – FASE e Núcleo Executivo da ANA
38. Maria Virginia Almeida Aguiar – Professora, Universidade Federal Rural de Pernambuco
Departamento de Educação, Núcleo de Agroecologia e Campesinato, Extensão Rural
39. Marli Almeida – Rede de Mulheres Produtoras do Pajeú
40. Michelly Aragão Guimarães Costa, Mestranda PADR/UFRPE
41. Osvaldo Heller da Silva – Professor, Universidade Federal do Paraná
42. Priscila Daniele Ladeira – Equipe técnica do CTA
43. Rita Teixeira – MNEPA
44. Roberta Meneses – Aluna da UAST/UFRPE
45. Sara Deolinda Pimenta – assessora CONTAG
46. Vanecilda Sousa – Aluna da UAST/UFRPE
47. Vanessa Schottz – FASE e doutoranda CPDA-UFRRJ
48. Casa da Mulher do Nordeste
49. Centro Feminista 8 de Março
50. Centro Nordestino de Medicina Popular
51. Conselho Pastoral dos Pescadores Regional Nordestes – CPP/NE
52. CTA – Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata
53. FASE – Solidariedade e Educação
54. GT Mulheres da ANA
55. Marcha Mundial de Mulheres
56. Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense – MNEPA
57. Movimento de Mulheres Trabalhadoras da Paraíba
58. Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste
59. Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas
60. Rede de Mulheres Produtoras do Pajeú

Comments (1)

  1. O texto peca por ainda estar preso `a armadilha de que nao existe pensamento critico sem o feminismo. Essa associacao esta cada vez mais sendo discutida e questionada, não apenas por teorias que reconhecem que a seleção histórica dos papeis de gênero na depende de uma estrutura exclusivamente “patriarcal”, como também teorias que reconhecem coincidências ideológicas fundamentais entre o tradicionalismo e o feminismo – nomeadamente, fundadas sobre o ginocentrismo. Sobre o assunto, ler Young: Humanismo, ginocentrismo e politica feminista.

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