CAI/ABA entrega ao Ministro da Justiça documento a respeito da minuta de nova portaria regulamentadora do Decreto 1.775/1996

ABAO documento, datado de 10 de dezembro de 2013, foi encaminhado para José Eduardo Cardozo com cópia para Maria Augusta Assirati, presidente da Funai. Leia abaixo:

Prezado Sr. Ministro,

A Comissão de Assuntos Indígenas da Associação Brasileira de Antropologia/ABA, em conformidade com o acordado em reunião realizada no último dia 24 de outubro com seus representantes e V. Ex.ª, com a presença da Presidenta da FUNAI e da Assessoria Indigenista do Ministério da Justiça, vem através desta manifestar sua opinião, encaminhando-lhe aqui, à guisa de subsídios, comentários, críticas e sugestões a respeito da minuta de nova portaria regulamentadora do Decreto 1.775/1996, divulgada amplamente pelo MJ no final de novembro em vista da convocação da CNPI em 02/12/2013.

Informamos de início da realização de um encontro de antropólogos e procuradores da República, com a participação de representantes da FUNAI, para discussão sobre os laudos antropológicos (incluindo aqui os Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação de Terras Indígenas) na Universidade Federal da Paraíba, entre os últimos dias 27 e 29 de novembro. Em tal encontro foi manifestada, de modo unânime, uma grande preocupação com as condições para realização do trabalho dos/as antropólogos/as em contexto pericial, em que são trazidas de modo totalmente inadequado para dentro do trabalho de campo posições conflitivas, tensões e práticas que contradizem as premissas metodológicas próprias da Antropologia como área de produção de conhecimento.

Tais condições negativas levam, de fato, quando não a uma paralisação da investigação, pelo menos a uma grave distorção, impondo ao profissional antropólogo imensas dificuldades de obtenção de dados apropriados. Com efeito, o levantamento em campo não pode ser reduzido a uma sequência de depoimentos formais, recolhidos em situações com frequência altamente conflitivas. É necessário ao contrário a existência de um clima de distensão e diálogo, que permita
aos indígenas manifestar-se de forma o mais livre possível, inclusive preservando a variedade de suas formas de expressão e o tempo para isto indispensável, sem o que o antropólogo não pode proceder a uma efetiva escuta de seus interlocutores e encontrar uma relativa unidade na multiplicidade de tais manifestações. Dentre outros instrumentos, o método antropológico centra-se na chamada observação participante, que redunda, entre outros aspectos, na necessidade de os pesquisadores ocuparem um espaço de discrição em campo, procurando não gerar em seus
interlocutores qualquer sugestão ou intimidação.

Resultou do Seminário acima referido a demanda de pleno reconhecimento, de parte do mundo jurídico, da metodologia antropológica como conditio sine qua non para realização de nosso trabalho, evocando com isso o princípio de evitar interferências não qualificadas sobre os métodos próprios a uma área de produção de conhecimento – no caso, a Antropologia.

Vemos com grande preocupação um mecanismo que perpetra as condições negativas acima descritas (próprias hoje de situações de perícia judicial), tornando-as extensivas ao trabalho em contexto administrativo (como é o levantamento para elaboração de Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação), nos termos da minuta de portaria regulamentadora do decreto 1775 ora tornada pública.

É em decorrência desse posicionamento que faremos a seguir nossas observações sobre a minuta. Estas centram-se em dois principais pontos: um que diz repeito à composição, competências e atividades da equipe técnica, bem como a suas condições para o trabalho em campo; o outro refere-se a um presumido papel do antropólogo como negociador em relação a limites territoriais.

No que tange ao primeiro ponto, observamos que a equipe para levantamento de dados em campo deve espelhar plenamente a metodologia antropológica anteriormente indicada, sendo ela, portanto, o mais possível discreta, reduzida e objetiva, com as competências específicas sendo rigorosamente observadas. Nesses termos, deve ser composta unicamente pelos profissionais indicados no Capítulo III, em seu Art. 9º, implicando numa substantiva mudança no previsto no §3º do Art. 10, que estabelece que “Os órgãos referidos no inciso III, do caput, […] poderão
indicar representantes para acompanhar e participar das atividades de campo do grupo técnico.” (grifos nossos).

A transformação do Grupo Técnico de Identificação em uma arena de interesses contraditórios é inaceitável para o exercício do trabalho do antropólogo, descaracterizando as condições mínimas de cumprimento de uma atividade científica especializada. O que haveria de “antropológico” em um relatório produzido em tais circunstâncias? A ausência de um embasamento verdadeiramente antropológico não desvirtuaria o próprio processo administrativo de reconhecimento de direitos a uma coletividade etnicamente diferenciada? Recomendamos assim enfaticamente que a redação da portaria seja alterada no inciso III, sendo claramente explicitado que a indicação de representantes para acompanharem os trabalhos do GT não se aplica sob hipótese alguma ao exercício das atividades de campo.

Estas observações levam também a reconsiderar o caráter de excepcionalidade apresentado no Capítulo V (“Disposições Finais”), em seu Art. 29, que estabelece em seus incisos I, II, III e IV, condições em que “a Presidência da Funai garantirá outra forma de acompanhamento dos estudos de identificação e delimitação”, conforme informa o seu “Parágrafo Único”. As condições ali elencadas representam efetivamente a regra e não a exceção, devendo ser enquadradas como constituindo o contexto “típico” de atuação em campo. Trata-se, aqui, de salvaguardar a
integridade e a lisura de todo o processo em seu complexo.

Em relação já ao segundo ponto, observamos que o trabalho do antropólogo é técnicocientífico, visando comprovar ou não a ocupação tradicional, nos termos previstos no Art. 231 da Constituição Federal. Por conseguinte, a orientação do Art. 16, § 2º da minuta, de que “a proposta de delimitação da terra indígena deve ser elaborada procurando minimizar possíveis conflitos ou impactos” não é uma tarefa que cabe ao antropólogo. A delimitação da terra como atividade
técnica deve decorrer exclusivamente da demanda indígena e de sua comprovação, uma vez que é esta que gera o processo. Toda e qualquer demais exigência que implique em realizar negociações e/ou promover conciliações é de natureza política ou jurídica, e não técnico-científica, configurando evidentemente um desvio de função.

Com relação a questões de caráter mais geral sobre a minuta, destacamos a necessidade, no Capítulo IV (“Da identificação e da delimitação da área”) do estabelecimento de prazos, em seus Arts. 23, 24, 25 e 26. Há atualmente uma grande preocupação entre índios e indigenistas quanto à grande quantidade de processos relativos à delimitação e homologação de terras indígenas, enviados pela FUNAI e ainda pendentes de aprovação pelo MJ. Alguns destes inclusive referem-se a áreas de intenso conflito, com graves ameaças à vida e à segurança das comunidades indígenas que ali habitam. Não seria de maneira alguma admissível que todo este conjunto de trabalhos técnicos acumulados fosse descartado e os procedimentos administrativos fossem outra vez reiniciados sob a alegação de adaptar-se à nova portaria. Isto geraria a frustração e o desespero das comunidades indígenas que aguardam urgentemente uma decisão governamental, estimulando as agressões dos inimigos dos índios e apenas exacerbando perigosamente os ânimos.

Por último – mas não menos importante – deve ser salientado que a participação dos indígenas na discussão e elaboração de novas versões da portaria regulamentadora é algo fundamental para o seu sucesso e cumprimento enquanto instrumento normatizador. Os debates na CNPI, instância legítima e transparente para a formulação da política indigenista, devem continuar e produzir resultados pactuados.

É o nosso parecer.

Atenciosamente,
João Pacheco de Oliveira
Pela Comissão de Assuntos Indígenas da ABA.

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