A Constituição Federal, que faz 25 anos, é muito jovem para morrer, por Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Quando setores contrários às propostas presentes no Terceiro Programa Nacional dos Direitos Humanos começaram a dar faniquitos em público, em 2010, achei o fato extremamente instrutivo.

As críticas colocaram, lado a lado, setores da igreja, dos militares, do agronegócio e da mídia, que têm em suas fileiras alguns dos maiores bastiões do conservadorismo e do atraso. Lembram muito aqueles microcosmos de poder do Brasil profundo, presentes nas obras de Dias Gomes: o padre, o delegado e o coronel, tomando uma cachacinha na (ainda) Casa Grande e discutindo sobre os desígnios do mundo.

Com tanta atitude arbitrária e antidemocrática do governo federal para ser criticada, foram pinçar logo o PNDH, que é um exemplo de construção coletiva e participação direta – montado com a participação de milhares de pessoas, centenas de delegados e dezenas de conferências em todo o país – e um alento de civilização em nosso país de mentalidade tão tacanha. Participação que está presente, por sinal, logo no artigo primeiro, parágrafo único da Constituição: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Imagine só, onde já se viu duas pessoas do mesmo sexo se desejarem e desejarem ter os mesmos direitos dos heterossexuais? E as mulheres pobres que fazem aborto, então!? Querem se ver livres da cadeia!? E, o pior de tudo: tirar os crucifixos e os santinhos de estabelecimentos públicos, como tribunais e parlamentos!? O que esse país pensa que é? Laico!?

Os verde-oliva, por sua vez, bufaram com a criação da Comissão da Verdade, por mais que sua implantação e atuação, até o momento em que escrevo estas linhas, esteja sendo apenas um simulacro do que se pretendia. Os milicos consideram o programa “insultuoso, agressivo, revanchista”. Fiquei esperando para ver se também não diriam “subversivo, antipatriota, comunista, feio, bobo, chato…” Querem ter o direito de continuar batizando ruas, praças e viadutos com os nomes de açougueiros que trouxeram muita dor nos anos de chumbo – uma das propostas era acabar com essa pouca vergonha. Mas isso é perfumaria comparado com o desejo de militares pró-silêncio de manter no anonimato as atrocidades e os nomes de muitos desses carniceiros, que guardam a memória do que aconteceu com desaparecidos políticos.

E o então ministro da Agricultura também trouxe abobrinhas da horta: “O decreto [do programa] aumenta a insegurança jurídica no campo. Da forma que está colocado, ele traz esse preconceito implícito em relação à agricultura comercial ou ao agronegócio, como também aumenta a insegurança jurídica que nós já temos em função de várias outras questões.” Ele está certo! Afinal, com tantos indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais, comunidades de fundo de pasto, caiçaras, ribeirinhos que foram expulsos de suas terras e estão querendo voltar, muitos latifúndios vivem mesmo uma grande sensação de insegurança. Cadê os direitos humanos para os humanos direitos? Por que só discutem direitos humanos para essa gente parda, rota e suja? Cadê os direitos humanos de quem ganha tutu na base da exploração de terras públicas ou da especulação fundiária? Cadê os direitos humanos das usinas de cana que usam trabalho escravo e, pobrezinhas, se veem vítimas de boicotes do mercado maldoso?

Por fim, a imprensa tinha o dever de trazer à tona todas as críticas ao plano, fazer ponderações, levantar debates. Era um plano de propostas e não os “Dez Mandamentos”. Cabiam o contraditório e eventuais mudanças, como acabou ocorrendo. Mas parte da mídia misturou editorais e reportagens; aí o caldo desandou. Além disso, houve veículos de comunicação que só entraram no tema a reboque das manifestações de setores da sociedade e não como pauta própria.

Se todo lançamento de PNDH gerasse um debate nacional sobre os direitos humanos em um país que tem vergonha de defender direitos humanos, acharia melhor termos um programa por ano. Pois, como saldo, o projeto permitiu efetivar direitos e possibilidades já previstos na Constituição Federal.

Promulgada em 5 de outubro de 1988, ela não é perfeita; longe disso. Mas, olhando para trás, é incrível como os legisladores conseguiram que o respeito aos direitos humanos estivesse presente no texto final como está. Não temos sido competentes para por em prática muita coisa que está lá dentro, seja pela falta de regulamentação, seja pelo não cumprimento da letra escrita. Mas, aí, já é outra história.

Ou seja, o problema da Constituição não é estar ultrapassada. Foi nunca ter sido efetivada.

Presenciei nobres parlamentares defendendo uma revisão profunda da Carta Magna para a remoção de determinados entraves que impedem o desenvolvimento desta nação. Leia-se como “entraves” os instrumentos para proteger minorias, por exemplo, em nome de um suposto “bem-estar” da maioria.

Não sei se é ignorância ou má fé de quem tem aspirações políticas maiores e quer surfar com a falta de informação alheia, mas foram questionadas cláusulas pétreas, que não podem ser mudadas, nem que a vaca tussa. Como se o caso fosse de escolher a cobertura da pizza da noite de sábado… Liberdade, dignidade, função social da propriedade. Em nome das necessidades políticas e do mercado, tudo pode ser adaptado.

Muitos setores querem retalhar a Constituição ao seu interesse. E alguns fazem guerra aberta contra ela no dia-a-dia. Com a diminuição de sua autonomia real frente ao Poder Executivo, os parlamentares foram concentrando sua atividade no ato de fazer emendas à Constituição. Matérias infraconstitucionais estão sendo alocadas dentro da Carta Magna a torto e direito.

As discussões mais amplas envolvendo o assunto versam sobre alterar a representação política e o processo eleitoral, incluindo aí seu financiamento. Ou o sistema tributário brasileiro, com a desoneração de algumas áreas. Na esteira desses debates, inserem-se outros. Lobistas que sussurram nos corredores do Congresso Nacional, cutucam daqui e dali, visando a mudanças que diminuam a proteção ao trabalhador. Outros pressionam pela revisão das regras na área fundiária, reforçando a necessidade de se garantir o direito de propriedade mesmo sem função social. Isso sem contar os que querem alterações profundas para que a concentração midiática continue sendo um dos pilares de nossa democracia. Noves fora, grupos religiosos que sonham transformar o país em uma teocracia, proibindo a interpretação do Supremo Tribunal Federal a favor dos direitos já previstos em 1988.

Do outro lado, parte dos políticos, sindicatos, organizações e movimentos sociais tentam proteger direitos ou fazê-los existir além do papel.

No atual contexto, e por mais profunda que seja sua crise de legitimidade, ninguém foge da democracia representativa. Nem a extrema esquerda, nem a extrema direita. E, por mais que a Constituição tenha virado uma colcha de retalhos, segue sendo de vanguarda em um país que, nem de longe, e apesar das conquistas, conseguiu efetivar direitos fundamentais.

A Constituição de 1988 foi um compromisso de equilíbrio, um pacto político que criou regras de convivência entre grupos e classes sociais. O discurso de uma nova e abrangente Assembleia Constituinte, que vez ou outra volta com força ao Congresso, significa repactuar a sociedade. Mas para quê repactuar uma sociedade que não conseguiu colocar em prática o que propôs?

Estamos diante dos desafios propostos por aquele texto sem a devida coragem de enfrentá-los. E não apenas isso.

Ao mesmo tempo em que a Constituição faz um quarto de século, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 65 anos. Muitos criticam a Declaração, afirmando que é um documento com uma visão por demais ocidental de mundo, que não traz respostas para uma ideia global de dignidade, coletiva e individual ao mesmo tempo. E não traz mesmo. Mas se, apesar dos avanços, Estados e sociedades ainda não conseguiram fazer com que o documento deixasse de ser um belo protocolo de intenções para se transformar em prática cotidiana, imagine-se como seria se não tivéssemos nem esse pacote mínimo para usar como referência.

O mundo, ainda em choque com os horrores da Segunda Guerra Mundial, produziu a Declaração. O Brasil, ainda olhando para as feridas de 21 anos de ditadura militar, sentou-se para escrever uma Constituição. É depois de grandes momentos de dor que estamos mais abertos para olhar o futuro e desejar que  sofrimento igual nunca mais se repita. Desde então, não vivemos uma guerra como aquela entre 1939 e 1945, muito menos um período de exceção quanto 1964 e 1985. Acabamos nos acostumando. E esquecendo. E banalizando.

A Constituição continua sendo norte e farol. Herdamos um texto da geração de meus pais e, agora, precisamos mostrar isso à de nossos filhos, sob o risco de que o espírito presente em 1988 se perca por desconhecimento da própria história. O problema é que parte da geração que ajudou a escrever aquele texto esqueceu por completo dos debates que levaram até ele, em nome da governabilidade e do poder. Como defender, portanto, junto a muitos que, agora, tomam as ruas insatisfeitos (mas sem saber exatamente com o quê), que não precisamos reinventar todas as regras, mas tirá-las do papel?

Comments (1)

  1. ISTO MESMO. VAMOS TIRAR A CONSTITUIÇÃO DO PAPEL. QUE EXISTA UMA COMISSÃO DA VERDADE MAS QUE NÃO IMPERE UMA DEMOCRACIA DE MENTIRA

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