O dia em que Chico Buarque virou Geni

O linchamento de Chico não preocupa. Mas e as outras Genis que são apedrejadas todos os dias?
O linchamento de Chico não preocupa. Mas e as outras Genis que são apedrejadas todos os dias?

Perplexos com apoio do compositor a Genoino, entre refletir e linchar, leitores escolhem o caminho fácil das pedras. Noves fora, Juca Kfouri e Beth Carvalho assinaram; adesões passam de 7 mil

por João Peres, da RBA

Raras vezes se vê uma notícia perdida neste mundo de sobreinformação causar tamanha perplexidade. A informação da RBA de que o compositor e escritor Chico Buarque aderiu ao abaixo-assinado em defesa do deputado José Genoino, réu da Ação Penal 470, o mensalão, expôs na internet uma enxurrada de sentimentos que falam muito sobre como os brasileiros enxergamos os políticos e desconfiamos do funcionamento das instituições democráticas – por consequência, da democracia em si.

Entre os quase 300 comentários feitos até ontem apenas em torno da reportagem da RBA, desconsiderando manifestações publicadas em outras páginas, xingamentos dominam, seguidos por elogios à atitude do cantor. Nas manifestações negativas reside o objeto digno de análise. Seria de se imaginar que a postura de Chico Buarque levasse a uma reflexão simples, banal: se ele está apoiando Genoino, não seria bom que eu tentasse entender o porquê?

O propósito da lista organizada por amigos do deputado não é outro que não esse: o de mostrar que, pelo respaldo social de que goza frente às acusações que recebe, o ex-presidente do PT talvez devesse ter recebido do Supremo Tribunal Federal (STF) outro tratamento. Sendo tarde para reverter a condenação, ao menos no todo, trata-se de um desagravo, na visão destes apoiadores, a alguém que recebeu uma pena injusta e que precisa ter sua honra resgatada.

Entre a reflexão e o linchamento, toma-se o caminho fácil das pedras nas mãos.

Os comentários começam com perplexidade: “Isso não é possível.. Um cara com o intelecto do Chico não faria uma bobagem dessa…”

Transformam o compositor em vítima da desinformação: “Ô Chico, até tu entrou nessa. Espero que sua fama de “pé frio” se confirme. Fala sério!”

Partem para a difamação: “Pilantra. O pai fundou o PT, a irmã tinha cargo… entre outras coisas. A falsa esquerda que se deu bem na ditadura.”

Chegam ao melhor “eu já sabia” de que se tem notícia: “Lógico! Ele foi um dos apoiadores dessa corja. Gostava muito do Chico. Hoje não gosto mais.”

Vão à explicação sociológica: “O cara é talentoso, mas com certeza o sangue burguês fala mais alto nessas horas. Nenhuma decepção!”

E apelam à antropologia e à biologia: “Ótimo compositor, mas péssimo ser humano. Eu já conhecia esta faceta quando mostrou-se contra a ditadura na época. Nos livramos da ditadura e ganhamos José Dirceu, Dilma, Lula, Delubio, José Genoino, etc…. Ou seja, trocamos 6 por 15 dúzias”.

Ao observar o comportamento exposto em redes sociais, sempre é bom manter um pé atrás, mas, neste caso, conversas à mesa do bar, no almoço de domingo e nos ônibus da vida estão aí para mostrar que os comentários colocados neste microcosmo não estão isolados neste mundo. Não é de hoje que se debate sobre a tendência de generalizar a política – ou melhor, os políticos, sempre entendidos como aproveitadores profissionais, incapazes de ter contato com a realidade e insensíveis. Embora a visão não seja desprovida de fundamentos, a extrapolação desta visão é que é um problema, com impacto direto em nossa vida democrática.

Não é de se surpreender com o linchamento porque os comentários sobre a posição do compositor nada mais fazem que reproduzir o senso comum acumulado ao longo de décadas, e contemporaneamente tornados públicos de forma instantânea pela internet. É mais fácil andar com a manada do que parar para pensar.

Juca e Beth assinaram ontem o documento que vem sendo também chamado de abraço-assinado
Juca e Beth assinaram ontem o documento que vem sendo também chamado de abraço-assinado

O que Chico fez foi emprestar seu prestígio para promover um convite a seus admiradores: vamos refletir se a chamada “opinião pública” está sendo justa com o deputado? A lista pró-Genoino tem apoios como os do escritor Fernando Morais, do cineasta Toni Venturi, da psicanalista Maria Rita Kehl. Muito à esquerda? Citemos Nelson Jobim, ex-ministro do STF e dos governos FHC e Lula.

A propósito, a carta intitulada “Nós estamos aqui” ultrapassa a casa da 7 mil assinaturas, entre elas as do jornalista Juca Kfouri e da cantora Beth Carvalho.

São chamamentos à reflexão. Não é preciso concordar com os apoiadores do deputado petista, mas não é construtivo, pessoal e socialmente, rasgar o convite sem lê-lo. Dá trabalho, é verdade, formar uma opinião sólida e consistente, e às vezes é preciso perder amizades para defendê-la – Chico que o diga. Mas é melhor para a democracia do que o senso comum. A ojeriza pela vida política, senso comum, é o que facilita o sequestro da mesma por poucos grupos econômicos que conseguem ditar as ordens no país e no mundo.

Isso leva a uma questão maior, que é a vulnerabilidade de nossa democracia. Uma população que acredita piamente em uma história, sem contestá-la, é uma população fácil de dominar. Assim como o admirador de Chico não deve confiar de olhos fechados no que ele está a dizer, tampouco deve ter como verdade inconteste aquilo que é divulgado por uma emissora que apoiou um golpe e uma ditadura, que manipulou uma eleição presidencial e que de lá para cá desestabilizou outras tantas, sem entrar na seara econômica, nas manifestações de junho e nos direitos sociais.

Chico paga o preço de ser bem resolvido: ele é feito pra apanhar, ele é bom de cuspir, mas não dá seu prestígio pra qualquer um, maldito Chico. Frente à perplexidade, é mais fácil culpar o outro do que tentar entender se estamos errando ou não. O que preocupa não é essa nossa Geni, calejada pela vida, rica e de reputação – e que não vai morrer por um linchamento de redes sociais. Preocupa saber que todos os dias milhares de Genis sofrem com essa linha de intolerância ao outro, tão natural na sociedade brasileira: ateus, prostitutas, presidiários, gays etc. O caminho em que as pedras ficam no chão é árduo. Mas é melhor para todo mundo.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

Comments (4)

  1. Não acredito no intelecto do Chico, em tempos normais, pois só faz mucicas de protesto em tempos ruins, o que revela uma personalidade maníaco/depressiva. Provavelmente, deve estar querendo a instabilidade institucional para arrumar inspiração e voltar a compor, pois vive em Paris como um bom capitalista e está enxergando uma volta do país a ditadura, para satisfação de seu inconsciente sombrio. Se ele tivesse uma honestidade filosófica, mudaria para Cuba. Por onde andou nos últimos trinta anos? De repente aparece com estas! Acredito que quis causar um ambiente para aparecer somente, pois tenho certeza que se sente como um macaco que caiu do galho!

  2. Minha mãe desde pequna ensinou..filha..quando o mundo está contra voce, pare e reflita, talvez seja voce que tenha que mudar. Uma lista de 7 mil pessoas de nome, passado, ideologia política e pública sem mudanças, eu apoio, precisamos refletir, eles fizeram a história, nós a estamos lendo somente. Chico nunca Geni, sempre Chico e todos os outros, e as Genis verdadeiras, meu abraço fraterno de solidariedade pelo que passam, pelo o que querem realmente ser, pelo o que são!

  3. Muito lúcido. Pelo que se tem visto, nessa época em que crescem os indícios de que caminhamos para a barbárie, muita gente já não respeita nada nem ninguém, sequer se respeita. No anonimato das redes sociais, o julgamento sumário, irrefletido e muitas vezes grosseiro revela uma compreensão pobre da vida humana. Um artista como Chico, que além da obra reconhecida teve uma atuação política tão digna em plena ditadura, que muitos nem sabem direito o que foi, merece que se pare para pensar no que diz, mas isso esse pessoal não aprendeu.

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