Um Homem; um pescador; uma história e o retrato do Brasil

Foto: Sarah Freeman
Fotos: Sarah Freeman

Por Maíra Irigaray*, em Eco Reserva

Em pé no antigo terreno de sua casa, sob os escombros da mesma e segurando duas mangas em suas mãos; caídas de uma árvore de seu antigo quintal, Hélio não pode conter as incontroláveis lágrimas:

“Está aqui na mão o fruto da história; está aqui na minha mão. Eu acho muito doído. Eu não tenho mais vontade de voltar aqui. Quando eu começo a lembrar do tanto que eu lutei pra chegar até aonde nós chegamos e ver um monstro desse chegar e destruir tudo bem rapidinho e a gente não ter o direito de falar; a gente não ter direito de agir.”

Élio Alves da Silva; um homem; um pescador e uma triste história que traduz hoje com clareza o retrato em preto e branco do Brasil desenvolvimentista e desumano. Mesmo achando que não tinha o direito de falar, Élio falou e eu, eu nada mais faço do que contar a sua história para que o mundo conheça a sua voz como eu conheço.

A comunidade de Santo Antônio onde Élio viveu por 32 anos ficava no km 50 de Altamira, Pará. Ali Hélio construiu uma vida em comunidade e em família. Todos os dias de manhã ele pescava. Às vezes chegava a pescar até 60 kg de peixe em um dia. Da sua casa até a beira  do rio, de fato eram 15 minutos de caminhada; mas Hélio chegava a demorar duas horas, entre as paradas na casa dos vizinhos para um bate babo e o cafezinho. Coisas que só quem vive em comunidade pode entender. “Quando chegou a Norte Energia mudou toda a nossa história. Eles chegaram fizeram o que bem quiseram. Eles desapropriaram as 60 famílias; acabaram com a nossa comunidade; acabaram com nosso sonho. Tudo que construímos em 32 anos acabou em um ano”.

elio-comunidadeEu conheci a Comunidade de Santo Antônio quando ainda esta intacta. Ali com todos nos reunimos e discutimos seus direitos. A população parecia estar convicta de que não queriam sair de suas terras. Um ano depois, assisti a remoção e destruição de muitas famílias e casas. Foi triste de se ver. Até o cemitério estava tomado pela Norte Energia, com sua marca em vermelho em cima das cruzes. Como pode ser que nem os defuntos pudessem descansar em paz? Nesta mesma época Élio ainda seguia ali, resistindo. Fomos até a beira do rio, que já estava lameado e Élio confessou tristemente que já não podia pescar nem 5 kgs de peixe. Os peixes estavam morrendo e na mesa do pescador começou a faltar comida… Ainda assim, Élio entre outras 5 famílias, incluindo sua filha, seguiam resistindo.

Foi então que no dia 13 de junho de 2012, decidiu-se festejar com mais de 300 pessoas o dia de Santo Antônio; o santo contra as causas perdidas e o fato consumado. Porque na vila de Santo Antônio, nos últimos 40 anos, se festejou esse dia; que naquele ano seria silenciado por Belo Monte. A festa se tratava, pois, de um ato mais que simbólico. Era a resistência clara à esta forma grosseira e abusiva de “desenvolver”.

Teve caminhada com o mastro do Rio até a entrada da Vila, teve a missa, teve lágrimas, jantar, e noite enluarada… “Foram quatro dias de desabafos, debates e ação. Para os atingidos por Belo Monte, o encontro ofereceu alento por terem quem os ouvisse. Para os participantes de outras regiões, foram momentos duros ao serem confrontados com a realidade dos impactos da usina”. Ali celebramos a vida como ela é, dentro da simplicidade do que se pôde fazer, sentimos a felicidade encher os corações daquelas pessoas que um dia ali fizeram história…

A Norte Energia e o Governo não podiam deixar barato tal ato de resistência. Rapidamente depois do histórico evento, as seis famílias foram rapidamente removidas. Élio acabou conseguindo comprar uma casa muito longe da cidade, da sua filha e do rio… Foi assim que este grande pescador de peixes começou uma nova e triste etapa de sua vida; tentando não ser “pescado” pela solidão. Na época, quando lhe falei, Élio desabafou: “com a indenização que ganhei pude comprar apenas uma casa longe do rio, mas me senti muito sozinho. De manhã cedo eu me levanto não tem pra quem eu dar bom dia. Na hora do almoço sento sozinho na mesa não dá nem vontade de comer. Até coloquei a tv no quarto pra não me dar ao trabalho de ficar andando na casa. A cama está com um buraco de tanto que eu rolo nela. Eu estou com medo de uma depressão. Eu estou perdido… Nunca me vi na situação que eu me vi esse ano.” Mesmo triste; ele encerrou seu depoimento com um sorriso dizendo: “estou naquela fase que até se contar pro burro na carroça ele chora.”

elio-3Apesar das brincadeiras a tristeza de Élio era transparente e vai muito além do que vive na pele; seu Élio sente a dor do rio; da comunidade e da destruição: “essa ferida não cicatriza mais porque é uma ferida muito profunda. Não cicatriza nem na natureza, nem na mente da gente”. “Quem acha que Belo Monte é um projeto bom é porque não conhece esse lugar e não sofreu nem 1/3 do que eu sofri e ainda sofro. Pra nós não traz nada de bom.”

Em 2013, depois de não conseguir encarar a solidão, Élio deixou a sua casa para morar de favor na cidade de Altamira e trabalhar como pedreiro. Assim, nos reencontramos. Resolvemos ir “pescar” no rio; falar sobre a vida; recordar… Fomos até a comunidade de Santo Antônio. Ali, sob os escombros, as lembranças pareciam uma avalanche de emoções. Recordando os tempos de glória; os dias de luta; sorrimos por um instante. Mas o silêncio e a dor eram inevitáveis… “Eu ainda não vi ninguém que morava nesta comunidade que tenha saído e que esteja com um sorriso de dentro pra fora. Acabou todo o sonho que as pessoas tinham; tudo o que se trabalhou acabou.  A nossa comunidade nós construímos com as nossas próprias mãos. Foi em mutirões; nós não tivemos ajuda de ninguém. Hoje eu não tenho nem vontade de vir aqui, pra ver tudo isso destruído. É muito triste; me dá vontade de chorar”.

Então Élio chorou; e eu chorei com ele…

Resolvemos seguir adiante para o nosso planejado dia de pesca. Já navegando o Rio Xingu em baixo de chuva, naquela imensidão, ao contemplá-lo, Élio sussurrou: “Esse rio pra mim ele foi meu pai; ele foi meu tudo. Daqui eu tirei  a minha sobrevivência; daqui eu tirei a minha alegria; daqui eu tirava tudo. Eu nunca abusei desse rio; eu sempre desfrutei dele com o maior respeito”.

As palavras de Élio me fizeram pensar nas coisas que a gente normalmente não pensa… Seu amor e respeito pelo rio Xingu eram inspiradores… Ali, senti com ele esse amor e por um segundo sentimos como se o tempo tivesse parado…

Apesar do cansaço aparente em seu rosto, das lágrimas e da dor; eu estava diante de um guerreiro pescador; isso estava claro: “Eu sou um lutador e jamais eu vou baixar a minha cabeça diante dessa situação. Enquanto tiver uma pessoa do meu lado que queira lutar, eu vou continuar lutando, aconteça o que acontecer. Eu não tenho medo de ser preso; eu não tenho de morrer; mas se eu for preso ou morrer amanhã, pelo menos será com a certeza de eu morri lutando por algo que é o meu direito, o direito da minha família e de todos que moram aqui.”

Antes de partir pedi para que deixasse registrada a sua mensagem para o mundo. Sem ilusões Élio humildemente falou: “a minha mensagem para o mundo é que alguém faça alguma coisa a nosso favor. Que alguém assopre no ouvido desse governo brasileiro pra ele lembrar que aqui existem pessoas; aqui existem cidadãos que precisam e amam esse rio.”

*Maíra Irigaray é advogada Internacional de Direitos Humanos e Meio Ambiente. Mestre em Direito Comparado pela Universidade da Florida. Atualmente Coordenadora de Campanha de reforma das Instituições Financeiras Internacionais para a Amazon Watch e Coordenadora da Frente “Bancos” para o Movimento Xingu Vivo para Sempre.

Comments (3)

  1. o meu salario,é lé vai,paga salario, de barrageiro, tenho, filhos, pada,é estudo, valeuuuuuuuuuuuuu

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