São Jorge, Santiago Matamoros ou São Tiago de Compostela?

Tania Pacheco – Combate Racismo Ambiental

Publicamos ontem a foto da imagem ao lado, de São Jorge, tirada do altar da igreja de uma comunidade quilombola do Amapá (Mazagão Velho), na qual ele é representado matando um negro caído. Ante o espanto da pessoa que inclusive quis documentar o fato, a explicação ingênua da responsável pela igreja foi “é negro, mas é muçulmano. Então São Jorge devia matá-lo”.

Esta manhã encontrei um comentário a respeito, de Paulo Eduardo:

“Uma pequena correção: na verdade, a imagem em pauta não representa “São Jorge” mas certamente é uma representação de São Tiago; ou, como se diz em castelhano ‘Santiago Matamoros’. Na iconografia de São Tiago ‘Matamoros’ tradicionalmente o ‘mouro’ é negro. Francamente, não vejo nada de racista nesta iconografia mas parte de uma tradição quase milenar”.

Mais curiosa do que duvidando, fui em busca da ajuda do nosso atual “Aurélio’. E aí confesso meu espanto, menos ante a foto da imagem abaixo e muito mais ante sua história, que na minha total ignorância eu desconhecia por completo.

A figura a cavalo, brandindo sua espada contra mouros nesse quadro anônimo do século 18, é, de fato, Santiago Matamoros, nome pelo qual ficou conhecido o apóstolo São Tiago Maior ao lutar ao lado dos cristãos na Batalha de Clavijo, em 23 de maio de 844! O mesmo São Tiago que aqui no Brasil até onde sei nos chegou numa representação bem mais pacífica e nada beligerante, caminhando com seu cajado no caminho de Compostela!

Agradeço a Paulo Eduardo pelo importante esclarecimento, que faço questão de socializar de imediato. Por outro lado, não consigo entender de todo esse sincretismo que agora transpõe fronteiras, culturas e tradições. Vejamos…

Ao examinar a imagem desse Santiago Matamoros eu jamais a associaria com um santo, mas, sempre, com um rei guerreiro, mesmo estranhando o detalhe dos curiosos pés descalços, que aliás inexistem nas outras representações que dele encontrei, como a da imagem abaixo e à direita. Nela, novamente, o que temos é o que poderíamos chamar, no mínimo, de “um guerreiro de alta estirpe”, destruindo os infiéis com sua espada. Já a imagem do município de Mazagão, Amapá, me parece bem diferente.

Para começar, uma auréola demarca bem sua identidade; as próprias roupas e feições me parecem distantes da realeza presente nos dois quadros; finalmente, em nenhuma das dezenas de representações de Santiago que vi na internet ele postava uma lança! Em todas, a espada era sua companheira. E apenas numa delas os mouros – sempre vários – eram representados como negros.

Provavelmente não descobriremos nunca como se deu essa inegável mistura de São Tiago e São Jorge, do dragão e dos mouros. Assim como dificilmente saberemos como a imagem foi parar exatamente num quilombo no meio do Amapá.

Paulo Eduardo tem razão em mais um ponto: de alguma forma o conhecimento da tradição perdurou, ainda que de forma “miscigenada”. Não esqueçamos da singela explicação dada ao nosso “fotógrafo” sobre os mouros.

Por outro lado, insisto na minha estranheza. Não esqueçamos que, para a comunidade, era São Jorge que estava no altar. São Jorge que será sempre o Ogum no nosso sincretismo. E aí é mesmo difícil aceitar não só essa apropriação curiosa que transforma espada em lança e reproduz de forma quase perfeita o gesto atribuído a São Jorge ao matar o dragão/mouro (neste caso, um só!), como a aceitação, por parte da comunidade, desse São Jorge/Ogum matador de negros, sejam eles muçulmanos ou seguidores de religiões de matriz africana.

***

Em tempo: tentando descobrir a autoria do único quadro em que os ‘mouros’ eram representados como negros, acabei encontrando um blog de Astúrias, onde se informava que o nome Santiago Matamoros foi abandonado por ser “politicamente incorreto”, e que a imagens a ele referentes foram recolhidas, inclusive a que existia na Catedral de Santiago de Compostela.

Comments (4)

  1. Penso eu que no nosso imenso Brasil existe muitos escultores desformados da Icnografia e que acabaram por esculpir muitas imagens que não condizem com as figuras originais. E levando em conta que o nosso povo humilde e simples por vezes não presta muita atenção ao símbolos das imagens. Por diversas vezes vi São Francisco de Assis sendo venerado na imagem de São Francisco Xavier e Santo Antonio na Imagem de São Benedito e até Santa Luzia nas Imagens de Santa Barbara ou Catarina. E daí vão surgindo muito mais miticismo e crenças que nem mesmo o catolicismo oficial dá conta.

  2. Sem esquecer que, de acordo com as informações, o nome do próprio santo não é mais usado na Espanha, e suas imagens foram retiradas por não serem “politicamente corretas”…

  3. O que me assustou na fala do Paulo eduardo foi o fato dele achar que “Francamente, não vejo nada de racista nesta iconografia mas parte de uma tradição quase milenar”.
    Tradições milenares podem ser assassinas Paulo Eduardo, e não ver racismo na imagem é de uma ingenuidade (ou má fé) sem tamanho

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