Uma sepultura para Teodoro Recalde

Nota: esta reportagem é de novembro de 2012, e minha primeira reação quando ela foi enviada por Vanessa Rodrigues foi não publicá-la. Mas decidi lê-la, e, além de bem escrita, a realidade infeliz é que nada mudou desde então. Então, aí vai o ótimo mas lastimável texto de Renan Antunes de Oliveira, fechando esta noite de domingo. Antes que alguma outra morte anunciada aconteça! TP.

O fazendeiro Fermino Aurelio Escobar, que queria deixar Teodoro “apodrecer na estrada”

A Pública – Por Renan Antunes de Oliveira

Assassinado a golpes de facão por jagunços, o índio guarani-kaiowá foi perseguido além da morte: um fazendeiro queria deixá-lo apodrecer na beira da estrada, nos grotões do Mato Grosso do Sul

Me contaram que cinco indiozinhos esperavam pelo pai na aldeia Y’poi, ao cair da noite em que o mataram, a terça-feira 27 de setembro de 2011.

Teodoro Recalde saiu ligeiramente bêbado de um boteco em Paranhos, cidade na fronteira do Paraguai. Disse a companheiros de trago que queria “voltar pra casa mais cedo” porque levaria pão e refrigerante para os filhos.

Talvez o álcool tenha feito este índio guarani kaiowá de 33 anos ignorar os jagunços que ainda hoje cercam sua aldeia – ela fica num lote ocupado pela tribo em 2009, dentro da fazenda São Luiz, no Mato Grosso do Sul.

O bloqueio já dura três anos. A ordem do cerco é do dono da fazenda, dom Fermino Aurélio Escobar, de 80 anos. Ele já tentou sem sucesso expulsar os kaiowá pela força e pela fome, enquanto busca obter uma ordem judicial de despejo.

Para voltar o índio deveria ter esperado a escuridão da madrugada e usar uma rota protegida por baixadas e riachos, cortando caminho com cautela pela fazenda vizinha, a Cabeça de Boi.

Tanto esforço para se chegar numa aldeia pra lá de miserável. É composta por meia dúzia de barracos de plástico. Não tem luz nem água.

Está fincada numa nesga de mato inservível para pastagens – a fazenda São Luiz que a cerca é do tamanho de dois mil campos de futebol, com mil cabeças de gado gordo.

O CRIME

“O melhor caminho para a Y’poi seria cruzar a fronteira para o lado paraguaio, aumentaria a caminhada em quatro quilômetros, mas evitaria os jagunços”, ensina o cacique Anastácio Peralta. “Nosso irmão deveria ter sido cuidadoso”, lamenta.

Ainda no boteco, quando o índio anunciou que tentaria furar o bloqueio, alguém o avisou com um “abre o olho Teodoro”. Sem demonstrar medo ele começou meio trôpego sua última caminhada, na companhia de duas mulheres da tribo – é delas o relato do crime.

Aconteceu quando eles estavam quase chegando na aldeia. Foram descobertos pelos jagunços, liderados por um apelidado “Negão”.

O encontro fatal se deu na rota mais conhecida, a baixada perto do riacho da fazenda Cabeça de Boi.

Montado num cavalo escuro da raça quarto de milha Negão atacou sem aviso. Golpeou o índio com porrete e facão, várias vezes, até deixá-lo sangrando e inconsciente. Em pânico, as mulheres correram para a aldeia.

A AGONIA

Teodoro Recalde agonizou sozinho e morreu em algum momento da quente noite de 27 de setembro de 2011 – na manhã seguinte, quando o corpo foi encontrado, o pão e o refrigerante, que levava para os filhos, tinham sumido.

As mulheres podem ter sido poupadas para contar o que viram e assim infundir terror na pequena aldeia Y’poi – a idéia é fazer com que a tribo abandone a fazenda São Luiz.

Quando elas chegaram com a notícia do crime, lá pelas 10 da noite, o resultado foi oposto – afinal, Teodoro Recalde já era o terceiro assassinado no pedaço.

O cacique Rodolfo pegou o celular e disparou telefonemas, alertando outros índios do crime: “Está acontecendo de novo, mataram mais um irmão nosso”.

KURE! KURE! KURE!

Antes de continuar é preciso contar uma pequena história paralela: a do assassinato em 31 de outubro de 2009 de dois primos de Teodoro Recalde, os professores Rolindo e Genivaldo Verá.

Eles lideraram a invasão Y’poi em 27 de outubro – quatro dias depois morreriam por causa dela, mártires da luta guarani kaiowá.

Os dois primos levaram pra Y’poi 50 indígenas da aldeia Pirajuy, em sua maioria velhos, mulheres e crianças – guiados por seu Mário Verá, de 89 anos.

Quando eles acamparam naquele lote no cocoruto de um morro, o capataz da São Luiz ligou para o patrão Escobar por celular. O pai chamou três filhos, Rui, Evaldo e Fermino Filho, três cinquentões sarados.

Eles acionaram a prefeitura e o Sindicato Rural de Paranhos para pedir ajuda aos vizinhos e organizar o despejo: o lema deles é “um por todos e todos por um”.

No dia seguinte, dois cavaleiros da fazenda São Luiz fizeram o reconhecimento do terreno ocupado. Constataram que os índios estavam desarmados.

O presidente do sindicato e vereador Moacir Macedo circulou pela cidade de megafone contratando peões e jagunços paraguaios para o despejo – por lá, o pessoal primeiro tenta resolver a coisa com sua milícia particular, só se falhar é que vai à Justiça.

O prefeito Dirceu Bettoni participou da logística da batalha que logo aconteceria cedendo um caminhão F4000 branco, da secretaria de Agricultura – transporte para os jagunços.

No sábado 31 de outubro Rui, Evaldo e Fermino Filho se reuniram com Moacir e sua tropa de jagunços num galpão da São Luiz.

O pessoal foi armado com porretes, espingardas e pistolas – com ao menos uma Luger calibre 9mm, a preferida dos nazistas, capricho que mais tarde permitiu aos peritos da Polícia Federal identificar seu dono: Fermino Aurélio Escobar Filho.

A tropa teve churrascada com muita cerveja e cachaça. De barriga cheia, o pessoal descansou um pouco na sombra do galpão.

Lá pelas três da tarde os jagunços já estavam recompostos e receberam a ordem de atacar – por todos os relatos, foi Rui Evaldo Nunes Escobar quem liderou o ataque.

Os jagunços foram até perto do pé do morro, desembarcaram do caminhão da prefeitura e entraram no mato para “atacar a aldeia de forma covarde e violenta”, como mais tarde descreveu o promotor Thiago Luz, do Ministério Público Federal, na denúncia contra os atacantes à Justiça.

A PF ouviu testemunhas: “Eles entraram gritando “kure” (ofensa em guarani, significa porco) enquanto davam tiros para o alto e na direção das pessoas”.

No ataque, “atingiram o idoso Mário Verá com uma paulada” e “alguém acertou um tiro nas costas de Genivaldo”.

Sem nenhuma chance de revidar, os índios debandaram. Depois que os atacantes se foram eles voltaram para resgatar seus feridos. O corpo de Rolindo nunca foi encontrado. O de Genivaldo, furado de bala, seria recolhido uma semana depois no fundo de um riacho.

Denunciados pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário, órgão da Igreja Católica), os assassinatos ganharam repercussão internacional.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região ordenou um cessar-fogo, permitindo a permanência da tribo na aldeia Y’poi até a Funai provar que a terra pertenceu aos guaranis – o processo burocrático começou antes de os índios ocuparem a terra e se arrasta há sete anos.

Lula incluiu a aldeia no Plano Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH), sob supervisão da Secretaria de DH da Presidência da República, mas nos grotões esta medida nada vale.

A Justiça levou dois anos para acolher a denúncia do MPF contra a filharada do velho Escobar. O caso está parado na 1a Vara Federal de Ponta Porã. Os réus estão soltos.

Como o fazendeiro não conseguiu expulsá-los pela força, então proibiu a entrega de cestas básicas aos índios pela Funai. Até hoje o dia a dia da aldeia Y’poi por comida é um jogo de gato e rato.

Para cumprir sua própria lei, os Escobar fecharam a fazenda São Luiz com um cordão de jagunços, entre eles Negão – o que nos leva de volta ao crime de Teodoro Recalde.

O COMPLICADO RESGATE DO CADÁVER

Quando as mulheres deram a notícia do ataque, a tribo não tinha como ir socorrê-lo, nem como resgatá-lo depois de morto.

O cacique da Y’poi fez o que um branco faria: chamou a polícia. Neca. Ele então pediu socorro a padres católicos e pastores evangélicos.

Os padres chamaram “seu João”, o chefe da Funai em Paranhos. Só na manhã seguinte aquele diligente funcionário conseguiu uma equipe para resgate. Com as dicas das mulheres, a polícia chegou ao cadáver.

Morto, Teodoro Recalde era o improvável mártir da hora da causa indígena.

O HOMEM ERRADO

Em vida, ele não era militante-alvo. As lideranças são as mais visadas nos ataques de jagunços.

Ele fazia o tipo desligadão. Fumava muita maconha paraguaia, quase de graça por lá. Tinha levado a família para a Ypo’i por insistência da irmã, uma guerreira quando se tratava de cuidar dos cinco filhos dele.

Passava o tempo todo fora da aldeia, fazendo bicos nos canaviais ou bebendo nos botecos – não era nem um invasor tipo aqueles de exibir arco e flecha para fotógrafos ou cantar gritos de guerra ante câmeras de TV.

O pessoal do CIMI acha que Teodoro Recalde foi morto não só pela ousadia de tentar furar o cerco, mas sim por ter sido confundido com um cacique.

O delegado PF Guilherme Santana, que investiga o caso de terno e gravata naqueles grotões, disse que já viu “muitos casos de assassinato de índios que parecem coisa de jagunços, mas não são, e outros que parecem coisa dos próprios índios, mas que são de jagunços”.

As duas índias moram na aldeia e sabem bem a diferença.

Elas testemunharam contra o jagunço Negão na delegacia da Polícia Civil de Paranhos. Deram detalhes até da cor do cavalo – por lá, as pessoas identificam os animais dos vizinhos assim como na cidade se reconhecem carros nas garagens dos condomínios.

O delegado local não saiu à cata do acusado porque isso seria função da Polícia Federal, que por sua vez só apareceu três dias depois do enterro.

A PF começou no caso devagar quase parando, entrevistando os policiais da delegacia de Paranhos no maior sigilo, para não melindrar os colegas.

Enquanto isto, o jagunço Negão, visto nos botecos da cidade no mesmo cavalo algumas horas depois do crime, sumiu de vez. O cavalo também.

“NÃO QUERO ESTE ÍNDIO VAGABUNDO ENTERRADO AQUI”

A PF patinou na primeira versão dada pelas índias. Os agentes não gostaram porque elas só falavam guarani e eram traduzidas por um cacique que eles consideraram “hostil”: sabe-se lá qual é a guerra dos federais.

Um índio de fora da aldeia foi contratado para interrogá-las. Assustadas pelo desconhecido, as índias ficaram de bico calado.

Um agente da PF disse que “as índias mentem para ajudar na causa deles de retomada da terra”. Pedindo confidencialidade, ele diz ao repórter que “estes índios da Y’poi são matreiros, jogaram ossos de antepassados, desenterrados de outro local, no solo da fazenda São Luiz, para que eles fossem encontrados pelos antropólogos da Funai e assim provar que eram terras ancestrais”.

Com esta linha de investigação, fica fácil fazer um update em 4 de novembro de 2012: o crime de Teodoro Recalde ainda não teve solução.

CAIXÃO DE 800 REAIS

O corpo dele foi para a funerária Pax Vita, de Paranhos, e dali para uma autópsia na cidade vizinha de Ponta Porã. Confirmado, morte por pauladas e facadas.

A Fundação Nacional de Saúde (Funasa) pagou a conta de 800 reais pelo caixão.

No fim do mesmo dia as autoridades liberaram o corpo para o enterro – foi quando começou um drama dentro do drama.

Os índios foram barrados na tentativa de sepultar Teodoro Recalde na Y’poi, a “teko-há”, terra sagrada deles.

Jagunços impediram a passagem do cortejo fúnebre pela São Luiz – fecharam a porteira mesmo com a presença da Funai, da polícia e, última ofensa, ante o caixão.

“Dei a ordem porque eu não queria aquele índio vagabundo enterrado na minha fazenda”, admite sem rodeios o fazendeiro Escobar, pai.

O impasse espantou até os advogados do CIMI, acostumados com tudo. A Funai recorreu à Justiça. Um pedido foi levado com urgência à 1ª Vara Federal de Ponta Porã, a mesma onde corre a ação de despejo da aldeia.

Enquanto se dava a batalha legal, o corpo rolou dentro de uma camionete, sem destino, por 48 horas, até sair a ordem judicial obrigando o fazendeiro a permitir o enterro na Y’poi.

O precedente de sepultamento em terra disputada foi considerado afronta pelos fazendeiros da região, solidários com a decisão do patriarca dos Escobar.

Dom Fermino curvou-se à Justiça, mas não sem resmungar: “Por mim poderiam jogar o corpo na beira da estrada”.

“ESTA TERRA É MINHA”, DIZ O FAZENDEIRO

A história não pode continuar sem que os leitores tenham um breve perfil deste homem.

Ele é muito respeitado no pedaço, se não o mais. Invoca direito ancestral branco: “Herdei tudo do meu pai, Romão, que herdou do meu avô, Miguel”, este um espanhol que segundo vários relatos chegou a Paranhos em 1886, depois que a Guerra do Paraguai quase dizimou os guaranis. Escobar quer deixar tudo para os filhos: “Esta terra é minha”, afirma, com orgulho.

O patriarca conta que “no tempo do meu avô os índios não eram problema”. Ele também gosta de apontar para um ponto atrás de um galpão e dizer “minha mãe está enterrada ali” – dois argumentos usados no processo de despejo dos índios.

O homem chega para entrevista montando um cavalo quarto de milha de pelo claro. É forte, atarracado, muito branco.

Apesar de tantas décadas na região, ainda fica vermelho quando pega sol.

Ele jura que na terra dos guaranis não tinha nenhum guarani: “Nasci aqui em 1932 e não havia índio naquele tempo, estes da Y’poi vieram do Paraguai para me tomar a terra”.

Neste ponto da fala ele gesticula como se estivesse suplicando, franze o rosto, pede compaixão aos interlocutores: “Estes índios estão fazendo minha vida um inferno, outro dia me roubaram uma vaca”!

Escobar se recompõe e avisa: “Assim não posso continuar trabalhando aqui”. Aí ele informa que comprou uma fazenda maior ainda, na Amazônia, supostamente para escapar dos guaranis que lhe roubaram a tal vaca.

Escobar fala o que lhe dá na telha. Para o delegado PF Santana ele disse “me ajude a me livrar deste problema que então eu posso ajudar vocês”, parando segundos antes de oferecer propina ao delegado para despejar os índios.

Sem que ninguém lhe pergunte ele diz que a morte de Teodoro Recalde “foi coisa de briga entre cachaceiros” – já tentando salvar a pele dos filhos.

É que poucos dias depois desta entrevista os três filhos dele seriam acusados pelo MPF do crime contra os professores.

Fácil constatar que por ali só os Escobar têm interesse no despejo da Y’poi, além da provada ousadia de fazê-lo pela força.

NA CASINHA DA FUNAI

O último ato antes do sepultamento de Teodoro Recalde aconteceu na sede da Funai, em Paranhos – nessa  cidade com megaconflitos, ela é apenas uma meia-água. Chove dentro. Com certeza os banheiros do Ministério da Justiça, que dirige o órgão, são mais amplos, mais limpos, mais seguros e mais bem equipados.

O encarregado naqueles dias do enterro era o tal seu João que resgatou o corpo. Ele não disse o sobrenome para não se comprometer – circulava incógnito na cidade.

Temia pela vida e pela reputação: implorou para não sair em reportagens porque queria ser transferido. Ele se queixa que em Paranhos precisa estar em sintonia com a prefeitura e com as autoridades estaduais, estas francamente contra a causa indígena.

“O conflito de interesses paralisa minha repartição”, desabafa – quais serão as qualificações exigidas e como será que alguém é escolhido para o cargo dele são mistérios.

Depois que a Funai obteve a ordem judicial para o enterro, seu João despachou o caixão do índio guarani para a aldeia Y’poi.

Choveu um pouco na manhã daquele sábado, primeiro de outubro de 2011.

A cerimônia foi rápida.

Não teve seu João, nem padre, nem pastor – mas teve pajé.

Os filhos choraram a morte do pai.

Alguém tirou as fotos que ilustram esta reportagem.

Elas mostram que o guarani kaiowá Teodoro Recalde foi para sempre sepultado na sua tekohá, coberto pela terra que nunca lhe pertenceu.

Uma sepultura para Teodoro Recalde

Comments (2)

  1. Sintonia fina, Tania. Pensei a mesma coisa, antes de te mandar. Mas, também achei o texto muito bem escrito e uma historia que só se repete. Poderia ter sido contada hoje, neste momento, que ninguém se surpreenderia.

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