Uma história de vidas que não terminou no Araguaia

“Ai de quem crê no acaso e em coincidências e não decifra o encontro que buscavam nos íntimos anseios”.

Por Merces Castro

A virada do ano chegou e nos preparávamos para ir ao Chile como de costume. No entanto, fortes dores abdominais acabaram me levando ao hospital e uma intervenção cirúrgica de urgência se fazia necessária. O médico chamado para o atendimento, após os procedimentos de praxe, disse me reconhecer de uma reportagem sobre a guerrilha do Araguaia publicada pela Gazeta do Povo.

Com a cirurgia marcada, outra grande surpresa: o ex-guia Zeferino de Almeida, que presenciara a execução e enterrara os corpos de dois guerrilheiros na Fazenda Matrinxã, hoje Rainha do Araguaia, ao saber da cirurgia mandou uma neta para me ajudar nos afazeres domésticos. A garota trouxe uma carta do avô contando detalhes da execução, jogando por terra cerca de 60% do conhecimento adquirido sobre os eventos das mortes de cinco guerrilheiros naquela área (acho que ele pensou que eu iria morrer).

No dia da cirurgia alguns membros da equipe se dirigiram até mim e me beijaram a testa dizendo: “Estamos com você”. Um pouco mais emocionada, uma jovem senhora se aproximou e falou ao meu ouvido: “Papai e o Paulista estão aqui…” Meio grogue e imaginando estar delirando, dormi.

-Acabou? Perguntei ao acordar. O médico cirurgião me beijou a testa e respondeu: “Está tudo em paz, a energia do local foi bárbara”.

Passadas 24 horas, o médico foi me dar alta e contou que sua esposa, que estivera na cirurgia, gostaria de estar ali para conversar comigo, mas que ele como médico a desaconselhara. Durante a conversa, contou que no início dos anos 70 a família da esposa dele morava em Maringá, e ela tinha cerca de sete anos quando tiveram a casa invadida e o pai, militante do PCB, caiu na clandestinidade.

Com o partido desarticulado, Czar, esse o codinome do fugitivo, beirando os sessenta anos, seguiu de ônibus rumo ao Nordeste, passando por várias cidades.

Nesse mesmo período, meu irmão Raul tinha saído do Rio de Janeiro indo esconder-se em uma fazenda do PCdoB, em Camacã/BA, onde era conhecido por Paulista. Foi acompanhado de outro militante que se identificou como Carioca… (doc. militar anexo).

Em um dia qualquer, numa dessas voltas que a vida dá, Czar, Paulista e Carioca se encontraram na feira da cidade. O nordestino e comunicativo Paulista (Raul) notando o retraído paranaense lançou a primeira senha que falava em livraria. De outra legenda, Czar nada entendeu, mas intuiu que aquele jovem gaiato tinha algo a dizer-lhe.

Algum tempo de conversa franca foi suficiente para Czar ser convidado para seguir para a fazenda. Todas as vezes que Czar agradecia o apoio, Paulista respondia que fazia pela causa, pois para ele gente e merda eram a mesma coisa. Segundo narrou aos filhos anos depois, Czar jamais conhecera alguém tão solidário e com tanto amor ao próximo, apesar daquelas afirmações.

O velho militante que anos antes estivera na União Soviética, passou a ser protegido por jovens idealistas que mesmo não comungando com suas estratégias de luta, tinham seu mesmo objetivo: Um país melhor.

Passaram-se alguns meses até a “queda” de um militante. Tiveram apenas poucas horas para a debandada até a chegada da Polícia. Carioca fugiu para São Paulo, enquanto Czar e Paulista seguiram para Imperatriz/MA, passando por Fortaleza.

Já em Imperatriz, Paulista providenciou dinheiro e uma passagem de ônibus para Anápolis, onde um contato de codinome Sartre, o esperaria com um livro de Teologia à mostra e passaporte. Czar cruzou a fronteira com o Paraguai andando, chegou a Buenos Aires e embarcou para a Europa, sempre falando espanhol.

Paulista, o garoto com uma enorme cicatriz no tronco, que dizia que ser fruto de uma briga de faca para impressionar seus interlocutores, mas que o médico Czar sabia ser uma cirurgia, tomou rumo ignorado. Sabemos hoje que Paulista, agora Raul, seguiu para a Gameleira acompanhando João Amazonas.

Anos depois, numa matéria da Gazeta eu falava das buscas no Araguaia. Lendo o jornal, o velho militante identificou na foto o jovem idealista que não era carioca e sim cearense. Já debilitado, mostrou a reportagem à família e contou sua história na clandestinidade.

Tenho orgulho em saber que meu irmão (Paulista/Raul/Téo) foi um dos que lhe prestou apoio incondicional, dentro do que as condições rurais permitiam na ocasião, inclusive forçando-o a tomar litros de chá de aroeira. Czar nunca esqueceu aquele jovem revolucionário aguerrido e brincalhão que muito o havia ajudado em um momento difícil.

Na equipe que me acalentou estavam “coincidentemente” cinco médicos, todos filhos do Czar, incluindo aí um agregado, justamente o cirurgião, seu genro. Quem sabe o próprio Czar e o Paulista/Raul também estivessem PRESENTES.

Eu aprendi que quando se adentra ao inferno vários tentáculos como falcatruas, maldades, maledicências etc., tentam nos impedir de alcançar nossos objetivos. Mas naquele momento identifiquei: fui amparada por braços amorosos dos que lutaram…

Esta situação de acreditar no imponderável responde à questão de me afastar ou não do Araguaia, por estar muito decepcionada e precisar de gás novo para encarar a lama que se transformaram as buscas. Em alguns dias estarei novamente nas terras do Araguaia, honrando estes caras incríveis que abdicaram da sua própria existência por um sonho coletivo e bom.

Penso em quantas histórias magníficas e surpreendentes teríamos, caso o estado brasileiro desse condições para pesquisadores técnicos, abnegados e decentes para ouvir e contar exemplos de luta e solidariedade ainda ocultos pelo descaso e desinteresse do estado brasileiro.

Comments (2)

  1. Concordo plenamente com você. Tanto que a classificação que este blog dá a respeito de tudo isso é “Direito ao Conhecimento”. Não só de sabermos o que de fato aconteceu, do ponto de vista da História e da memória deste País, como onde estão nossos mortos, como se foram, quem os matou… Inclusive para que nada disso se repita (embora parte continue a acontecer nas delegacias, nas “batidas policiais” etc).

  2. Nós todos, temos direito ao conhecimento do que realmente aconteceu com todas essas pessoas que deram suas vidas pelo mesmo ideal: a construção de um país melhor, com mais igualdade, um país solidário. Quanto perdemos com as “botas” dos militares sobre o Brasil… E continuamos perdendo com os que rezam na mesma cartilha…

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