Marcos Terena: “A carta resposta de um Terena que faz respeitar sua origem”

Tania Pacheco – Combate ao Racismo Ambiental

Ontem publicamos um texto – Associação Estadual dos Direitos das Comunidades Indígenas do MS: caminhando de mãos dadas com a Famasul e o agronegócio” – sobre Danilo de Oliveira, um índio terena (com minúscula) que é presidente da Associação Estadual dos Direitos Indígenas de Mato Grosso do Sul. Responsável por uma denúncia na Assembléia Legislativa de que parentes indígenas estariam comprando armas no Paraguai para usar contra fazendeiros, ele considera a agricultura familiar ultrapassada, defende o agronegócio como solução para os povos indígenas e é ligado ao Presidente da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul) e aos ruralistas, com os quais considera que os indígenas devem caminhar lado a lado.

A divulgação da matéria levou a um comentário de Pedro Pulzatto Peruzzo, relembrando carta de Marcos Terena ao Jornal do Brasil, publicada em 26 de julho de 1990, em reposta à nota de um colunista, afirmando que o líder indígena estaria procurando emprego. Segundo a coluna, Marcos Terena acabara de ser demitido da Funai, onde exercia a função de piloto, “mesmo não tendo frequentado avião senão como passageiro, e mesmo assim tremendo de medo”.  Ao acrescentar um link para um blog no qual a carta foi publicada em 2008, Pedro Pulzatto Peruzzo escreveu “Aqui está a carta resposta de um Terena que faz respeitar sua origem”. Um título perfeito para este post. 

Carta de Marcos Terena ao JB: Brasília, julho de 1990.

Senhor Jornalista: Sou um dos 240 mil índios brasileiros e um dos seus interlocutores junto ao homem branco, e como tal tenho que acompanhar o raciocínio, os pontos de vista e as observações relativas às nossas questões. Por isso, sou assíduo leitor do JORNAL DO BRASIL, inclusive assinante, por considerá-lo veículo conceituado e aliado da verdade na formação da opinião pública nacional.

Quando tinha ainda nove anos, fui levado a conhecer o mundo, a civilização do homem branco. Era preciso ler, escrever e falar o português. Um dia, a professora me pôs de castigo, não sabia por quê, mas obedeci. Me colocaram de joelhos e fui proibido de sair para o recreio. Fiquei olhando para o quadro-negro e de costas para a sala. Quando meus colegas entraram, todos morreram de rir. Não sabia o motivo, mas sentia-me orgulhoso por fazê-los felizes. Eles riam porque havia descoberto meu segredo: meu sapato não tinha sola, apenas um grande buraco, amarrado por pequenos pedaços de arame. Naquele momento, porém, sem querer, acabei descobrindo um dos segredos do homem civilizado: suas crianças não eram apenas crianças. Uma palavra, apenas uma palavra as separa uma das outras: pobreza.

A relação com esta sociedade foi muita dura, doída mesmo. Por isso, um dia quando me chamaram de “japonês”, decidi adotar essa identidade, e fiz isso por 14 anos. Depois de concluir o científico, fui aprovado nos exames intelectuais, físicos e psicológicos da Força Aérea Brasileira, onde aprendi a pilotar e a sonhar com um futuro que me possibilitasse comandar um dos grandes Boeings que cruzam os céus do Brasil, muitos deles pilotados hoje por ex-colegas. Há doze anos, porém, ao chegar a Brasília, conheci a Funai e descobri que era “tutelado”. Conheci também grandes chefes indígenas que falavam de suas lutas pela demarcação de suas terras, uma linguagem que eu não conhecia. Chefes como Kretan dos Kaingangues, já assassinado, Marçal Guarani, também já assassinado, Megaron Txucarramãe, Mário Xavante. Eles me pediram: explica-nos a lei. Expliquei e fui acorrentado. Pelos índios, como irmãos. Pela Funai como subversivo da ordem e dos costumes.

Entre voltar a ser branco e continuar piloto, e voltar a ser índio, mesmo sendo subversivo, optei pela volta às minhas origens e me senti um verdadeiro filho pródigo. Sabia ler, escrever, falar o português, o espanhol e interpretar o inglês, o francês. Sabia analisar a situação política, econômica e social do nosso país. Por isso não pude ser enquadrado como o índio padronizado na cabeça dos dirigentes do órgão tutor, e como castigo vi por três anos ser impossível pilotar mesmo nas aeronaves do órgão, pois, segundo eles, era impossível admitir um índio pilotando. Afinal, o índio era incapaz perante a lei.

Há seis anos consegui que o Ministério da Aeronáutica desse um parecer favorável ao meu brevê. Com isso, provei ao meu tutor que, mesmo sendo índio, estava apto para as atividades aéreas, e me tornei, com orgulho, o primeiro comandante indígena. Enquanto isso não se definia, pude sentir de perto, com outros patrícios, o que é coragem, o que é confiança mútua, o que é solidariedade, e, por isso, um dia decidi e fundamos o único movimento indígena do Brasil: a União das Nações Indígenas.

Hoje, porém, descobrimos, depois de ver muitos de nossos irmãos dizimados, ao largo de mais de quatro séculos, que não podemos caminhar sozinhos. É preciso descobrir aliados junto à sociedade de 140 milhões de brasileiros, para a nossa causa, para a sobrevivência de nossos 180 povos.

Foi com profunda tristeza que, no último dia 26, li e reli uma nota na coluna de Zózimo intitulada: “Procura-se”. Meditei muito sobre ela e, por isso, decidi escrever esta carta. Farejo nas entrelinhas do texto o mesmo odor deixado pelas ratazanas da Funai. Elas são covardes, incompetentes e, infelizmente, induziram o editor a acreditar nas suas meias verdades. Nenhum piloto foi demitido da Funai, nem mesmo aqueles que faziam vôos clandestinos e de interesse pessoal do presidente do órgão e seus assessores. Não existe nenhum cacique à procura de emprego. Não existe nenhum piloto de avião chamado cacique Marcos Terena -, ou se é cacique, ou se é piloto.

Talvez a fonte quisesse se referir de forma invejosa, e até mesmo preconceituosa, à minha pessoa, porquanto sou o único piloto-índio do Brasil, dificilmente escalado para vôos da Funai, por isso mesmo no nível mais baixo entre os demais pilotos, o nível 8.D. Não vejo mal algum em ganhar os citados 120 mil cruzeiros, desde que seja dignamente, com o suor de nossos rostos, como recomenda a Bíblia. Estamos levantando todos os vôos clandestinos da Funai paralelamente com o TCU e pretendemos nomear esses parasitas da nação, pois muitos deles empregaram no órgão esposas e afilhados que nem precisam comparecer ao local do trabalho, a não ser no dia do pagamento. Não somos caçadores de marajás, mas quem fez isso em nome do índio deve, no mínimo, pagar por essa falta de lealdade com os primeiros moradores dessas terras.

Não fui demitido, apenas colocado em disponibilidade. Não é a primeira vez que isso ocorre. Era previsível, pois as pessoas que estão elaborando essa listagem são as mesmas que, no governo Sarney, diminuíram as terras indígenas, fizeram contratos ilegais de madeiras, permitiram a entrada de garimpeiros em área como a dos Yanomamis. Não houve nenhum critério para essa seleção; por isso estamos aqui e eles continuam lá. No meu caso pessoal, o critério é de cunho exclusivamente político, pois estou sempre os questionando pessoal e publicamente, até que um dia a justiça se faça.

Quando menino, meus antepassados me ensinaram a temer apenas o Ituko-óviti, o grande criador da natureza. Nunca tive medo de morrer, caminho natural de todos nós. É apenas uma questão de tempo. Na Funai como piloto, sempre me escalaram para vôos conflituosos, pois outros pilotos temiam os índios. Foi assim com os Krahôs no norte de Goiás, quando eles prenderam alguns federais: como os Apinajés no Bico do Papagaio, quando eles queriam suas terras e brigaram com os posseiros e o temido Getat; com os Guajajara no Maranhão, com os Kaiapós no sul do Pará, com os temidos Txucarramãe em Bang-Bang, no Mato Grosso. Também transportei índios doentes, gasolina, gás de cozinha etc.

Talvez por isso, em plena campanha presidencial, Marcos Coimbra, atual secretário-geral de Collor de Mello, tenha me pedido sugestões para a questão indígena, embora soubesse que eu era PT. Talvez por isso, os índios americanos solicitaram minha presença para ajudá-los na conservação de seu território, junto ao Congresso Americano.

Nunca tive medo de mostrar a minha cara, muito menos de morrer, ou de entrar num avião… Aliás, a bem da verdade, em dois momentos de minha atividade aviatória, fiquei com medo. Primeiro quando fui escalado para fazer vôos para o litoral brasileiro nos fins de semana, levando assessores e secretários para tomar sol, na época do atual candidato ao Senado e ex-presidente da Funai, Romero Jucá Filho. E, em seguida, quando pilotei aviões para Imperatriz e Montes Claros, levando o então presidente da Funai e atual diretor de administração do Ministro Cabrera, Íris Pedro de Oliveira, e seus familiares, para passar os fins de semana em suas fazendas. Agora, quem autorizou esse tipo de missão não está em disponibilidade, e provavelmente não será demitido. Essa é a nossa história.

Não guardo rancor pela nota. Pelo contrário, foi uma oportunidade de fazer valer a nossa voz como índio, como funcionário público e pessoa preocupada na busca de novos aliados a nossa causa. Gostaria que Zózimo Barroso se inteirasse dessas informações rápidas e soubesse da minha vontade de tê-lo como amigo. Talvez um dia vocês do JORNAL DO BRASIL possam conhecer uma de nossas aldeias, e gostaria inclusive de estar pilotando a aeronave que os fosse levar, esclarecendo que são vôos segundo padrões da selva: pista no meio da mata, pista curta, um verdadeiro programa, ou melhor, vôo de índio!”

Marcos Terena – Piloto de Funai em disponibilidade.

Link da Carta: http://biakushnir.wordpress.com/2008/03/18/voo-de-indio-marcos-terena/

Comments (1)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.