Dom Pedro Casaldáliga: Uma visita de ‘turista’

Por Aray P Nabuco*

Um turista que chega ali talvez pergunte por um bom ponto de pesca, cachoeira ou artesanato indígena dos karajá e xavante. Mas quando cheguei a primeira vez em São Félix do Araguaia (MT) nenhum desses passeios típicos da cidade me preocupava. Quis logo visitar seu morador mais conhecido e começava com um problema a menos: não precisaria de guias, centros de informação ao turista, nem cicerones. Não lembro bem, mas na época, lá pelos fins de 1990, havia um conflito indígena pelos diamantes das terras dos cinta-larga e escalei esta minha desculpa para a visita a dom Pedro Casaldáliga. Confesso que, mais ou menos, menti.

Qualquer um na rua, que seja morador de São Félix, sabe onde Casaldáliga mora na cidade de pouco mais de 10 mil habitantes e que devido à grandiosidade de seu trabalho e generosidade de seu pensamento entrou para a vida nacional, para o noticiário e parecia bem maior do que é. Casaldáliga encarna de certa forma o espírito de Félix, cristão que negou a confortável fortuna da família, foi perseguido, preso e torturado e usou a única pequena propriedade que lhe restou para plantar e distribuir aos pobres. Foi batizada com o nome do santo pelos colonos ‘brancos’, como proteção contra os ataques dos índios, os xavante na mata dentro e karajás, que habitam as margens do Araguaia ‘desde sempre’, pois para eles, sua nação emergiu das profundezas do rio. Mas hoje, certamente, Félix estaria ao lado de Casaldáliga para defender os índios dos ataques dos colonos.

Visita

Informaram que a casa do bispo era ao lado da igreja. Um imóvel simples, muito simples e pequeno, que também não se podia dizer novo, na rua principal que saía do píer às margens do Araguaia. Me apresentei como jornalista – que sou de fato -, destrinchei minha desculpa da entrevista e ele, gentilmente, convidou a entrar – podia duvidar diante de tantas ameaças que já sofria na época e de um sujeito de boné cata-ovo, camiseta, bermuda e bota, apesar do disfarce do bloquinho de papel e caneta na mão.

Entramos pela cozinha, por um corredor ao lado da casa, onde um morador esperava o ainda bispo da Prelazia de São Félix com um cacho de bananas pego naquela hora na mata para oferecer-lhe; aceitou, seria uma ofensa não aceitar e, para mim, começava ali a lição de entender o que ele significava para os comuns, o respeito e solidariedade que sua pessoa suscitava. Na casa, que já não lembro tão bem, mas lembro que não vi um traço de excesso, de usura; os móveis eram bem usados, em bom estado, comuns. Numa prateleira, algumas drusas de quartzo, certamente não para atrair duendes; é um minério bonito e comum nas vizinhanças de Goiás e Tocantins.

Convidou-me ao outro cômodo, tipo a sala; onde havia o que deduzi ser sua escrivaninha: uma cadeira diante de uma mesinha pequena de madeira escura com uma máquina de escrever. Talvez fosse dali que ele emanava suas ideias humanitárias, libertadoras, registrava sua luta em favor de pequenos agricultores, indígenas e ribeirinhos desterrados, acrescentava experiências à Teologia da Libertação, que adotou, compartilhava as atitudes e posturas que o tornaram um fundamento na luta contra as opressões. O Félix de São Félix, que rezava na nave de sua igreja em frente a uma cena do Calvário com tipos negros, caboclos, ribeirinhos e índios, que agora são atacados por fazendeiros, como o Cristo foi pela elite poderosa de sua época.

Devido às suas ‘perigosas bombas de solidariedade’, um insulto aos interesses financeiros e latifundiários, Casaldáliga foi retirado da cidade por juras de morte, que recomeçaram na semana passada, quando começou a operação de forças policiais para a saída dos invasores das terras xavante. Não se sabe que tipo de ser humano é capaz de puxar o gatilho contra o pastor dos pequenos no rebanho social, um octogenário senhor franzino, de cabelos de metal, mobilidade auxiliada por bengala e já obrigado ao silêncio pela própria igreja para a qual dedicou sua vida. Mas sabemos que eles existem e que quase sempre continuam livres, à revelia da Justiça. Basta o que aconteceu a Dorothy Stang.

Caros Amigos

Tive vergonha de confessar a dom Pedro Casaldáliga o desejo de apenas conhecê-lo, de vê-lo pessoalmente e por isso achei que precisava da desculpa da entrevista – aventei comigo mesmo negociar a publicação do material em Caros Amigos e assim, meu álibi para o encontro com ele estaria salvo; mas não deu mesmo; estava a trabalho, navegando pelo Araguaia e só voltaria a uma cidade 15 dias depois; não havia a internet e a facilidade de e-mail, nem celulares 3G, e o assunto da hora ficou para trás. Hoje, penso que não precisava de qualquer desculpa para uma aproximação, era só ‘chegar chegando’, como dizem, e ele também receberia, como pacientemente fez comigo.

Dom Pedro Casaldáliga provavelmente nem se lembre do sujeito de cata-ovo que roubo-lhe pouco mais de 1 hora de conversa e entrevista. Desculpe, dom Pedro; turistas se contentam com monumentos de concreto e paisagens; jornalista, quis conhecer aquele que faz da sua vida um monumento para a humanidade.

*Aray P Nabuco é jornalista e editor executivo do site de Caros Amigos.

http://carosamigos.terra.com.br/

Comments (2)

  1. Em 1984, decidi que ia a prelazia de São Félix do Araguaia conhecer Dom Pedro!
    Foi divino acompanhar a atividade e ficar perto de uma pessoa tão simples e maravilhosa.
    Trocamos algumas cartas!
    Tenho todas bem guardadas

    Foram dois dias de muita emoção.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.