“É com muita alegria que acolhi o convite da ABRASCO para fazer esse prefácio. Tive a oportunidade de conviver com o grupo do Dossiê durante a oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, cujo tema foi Saúde, Sustentabilidade e Bem Viver, que realizamos previamente à Cúpula dos Povos em junho de 2012 na RPPN Fazenda Bom Retiro, em Aldeia Velha, no Rio de Janeiro. Uma das conclusões dessa oficina foi justamente apontar que a luta contra os agrotóxicos era uma temática de grande agregação de movimentos sociais a sociedades científicas como a ABRASCO, e que o que estava em jogo relacionava-se ao futuro que queremos para o nosso planeta a partir da atual crise civilizatória.
Irei focar nesse prefácio, de forma breve, quatro questões principais que servem de contexto para o Dossiê: o desenvolvimento capitalista e os limites de carga do planeta Terra; a tensão entre este modelo de desenvolvimento e os direitos ambientais, em especial o direito à saúde; os impactos do agronegócio brasileiro e a questão dos agrotóxicos, e finalmente a luta contra o fascismo desenvolvimentista.
No limiar do século XXI o desenvolvimento capitalista toca os limites de carga do planeta Terra. Em 2012, diversos recordes de perigo climático foram ultrapassados nos EUA, na Índia, no Ártico, e os fenômenos climáticos extremos repetem-se com cada vez maior frequência e gravidade. Aí estão as secas, as inundações, a crise alimentar, a especulação com produtos agrícolas, a escassez crescente de água potável, o desvio de terrenos agrícolas para os agrocombustíveis, o desmatamento das florestas. Paulatinamente, vai-se constatando que os fatores de crise estão cada vez mais articulados e são afinal manifestações da mesma crise, a qual, pelas suas dimensões, se apresenta como crise civilizatória. Tudo está ligado: a crise alimentar, a crise ambiental, a crise energética, a especulação financeira sobre as commodities e recursos naturais, a grilagem e a concentração de terra, a expansão desordenada da fronteira agrícola, a voracidade da exploração dos recursos naturais, a escassez de água potável e a privatização da água, a violência no campo, a expulsão de populações das suas terras ancestrais para abrir caminho a grandes infraestruturas e megaprojetos, as doenças induzidas pelo meio ambiente degradado dramaticamente evidentes na incidência de câncer em certas zonas rurais mais elevada do que em zonas urbanas, os organismos geneticamente modificados, os consumos de agrotóxicos, etc.
A Cúpula da Terra, Rio+20, foi um fracasso rotundo devido à cumplicidade mal disfarçada entre as elites do Norte global e as dos países emergentes para dar prioridade aos lucros das suas empresas à custa do futuro da humanidade. A articulação entre os diferentes fatores de crise deverá levar urgentemente à articulação entre os movimentos sociais que lutam contra eles. É um processo lento em que o peso da história de cada movimento conta mais que o que devia, mas são já visíveis articulações entre lutas pelos direitos humanos, soberania alimentar, contra os agrotóxicos, contra os transgênicos, contra a impunidade da violência no campo, pela reforma agrária, direitos da natureza, direitos ambientais, direitos indígenas e quilombolas, direito à cidade, direito à saúde, economia solidária, agroecologia, taxação das transações financeiras internacionais, educação popular, saúde coletiva, regulação dos mercados financeiros, etc.
As locomotivas da mineração, do petróleo, do gás natural, da fronteira agrícola são cada vez mais potentes no Sul global e tudo o que lhes surge no caminho e impede o trajeto tende a ser trucidado enquanto obstáculo ao desenvolvimento. De tão atrativas, estas locomotivas são exímias em transformar os sinais cada vez mais perturbadores do imenso débito ambiental e social que criam num custo inevitável do progresso. Por outro lado, privilegiam uma temporalidade que é afim à dos governos. O boom dos recursos não dura sempre, e por isso há que aproveitá-lo ao máximo no mais curto espaço de tempo. O brilho do curto prazo ofusca as sombras do longo prazo. Enquanto o boom configurar um jogo de soma positiva, quem se lhe interpõe no caminho, ou é ecologista infantil, ou camponês improdutivo ou indígena atrasado e, para mais, facilmente manipulável por ONGs sabe se lá ao serviço de quem. A avaliação política deste modelo de desenvolvimento torna-se difícil porque a sua relação com os direitos humanos é complexa e facilmente suscita a ideia de que, em vez de indivisibilidade dos direitos humanos, estamos perante um contexto de incompatibilidade entre eles. Ou seja, segundo o argumento que se ouve frequentemente, não se pode querer o incremento dos direitos sociais e econômicos, o direito à segurança alimentar da maioria da população ou o direito à educação, sem fatalmente ter de aceitar a violação do direito à saúde, dos direitos ambientais e dos direitos dos povos indígenas e afrodescendentes aos seus territórios. Só seria possível mostrar que a incompatibilidade esconde uma má gestão da indivisibilidade, se fosse possível ter presente diferentes escalas de tempo, o que é virtualmente impossível dadas as premências de curto prazo. Nestas condições, torna-se difícil acionar princípios de precaução ou lógicas de longo prazo. Que se passará quando o boom dos recursos terminar? Quando for evidente que o investimento nos recursos naturais não foi devidamente compensado com o investimento em recursos humanos, quando não houver dinheiro para políticas compensatórias generosas e o empobrecimento súbito criar um ressentimento difícil de gerir em democracia, quando os níveis de doenças ambientais forem inaceitáveis e sobrecarregarem os sistemas públicos de saúde a ponto de torná-los insustentáveis, quando a contaminação das águas, empobrecimento das terras e a destruição das florestas forem irreversíveis, quando as populações indígenas, quilombolas e ribeirinhas expulsas das suas terras cometerem suicídios coletivos ou deambularem pelas periferias de cidades reclamando um direito à cidade que lhes será sempre negado. Tudo isto parece um cenário distópico fruto de pensamento crítico treinado para maus augúrios e, acima de tudo, muito pouco convincente e de nenhuma atração para a grande mídia. Neste contexto, só é possível perturbar o automatismo político e econômico deste modelo como é inequivocamente constatável aqui e agora, e conta com movimentos e organizações sociais suficientemente corajosos para o darem a conhecer, dramatizarem a sua negatividade e forçarem a sua entrada na agenda política.
Passo a analisar brevemente uma dimensão do problema que ilustra a turbulência que está a ocorrer na constelação dos direitos humanos, ao mesmo tempo que revela novas possibilidades contra-hegemônicas, como é o caso das questões abordadas pelo dossiê da ABRASCO, que agora apresento. Nesse caso, se qualifica a tensão entre este modelo de desenvolvimento e os direitos ambientais, e em especial o direito à saúde.
O primeiro aspecto diz respeito à agricultura industrial, que no Brasil se designa por agronegócio. Em vários continentes, estamos a assistir à enorme concentração de terra e à transformação de vastos espaços em campos de monocultura alimentar ou agrocombustível, ou mesmo em reserva alimentar de países estrangeiros, como está a suceder na África. No Brasil, este fenômeno ocorre no contexto da reprimarização da economia, da expansão da fronteira agrícola para a exportação de commodities, da afirmação do modelo da modernização agrícola conservadora e da monocultura químico-dependente. Soja, cana-de-açúcar, algodão, tabaco e eucalipto – são exemplos de cultivos que vêm ocupando cada vez mais terras agricultáveis, para alimentar não as populações mas ciclos produtivos vários, ao mesmo tempo que avançam sobre biomas, como o cerrado e a Amazônia, impondo limites ao modo de vida e à produção camponesa de alimentos, e consumindo cerca de metade dos mais de um bilhão de litros de agrotóxicos anualmente despejados em terras brasileiras. Os dados mostram inequivocamente que o processo produtivo agrícola brasileiro está cada vez mais dependente dos agrotóxicos e fertilizantes químicos. Nos últimos três anos o Brasil vem ocupando o lugar de maior consumidor de agrotóxicos no mundo, alguns deles já proibidos em outros países. Em 2010, o Brasil representou 19% do mercado mundial de agrotóxicos, à frente dos EUA, que representou 17%.(1) Confirma-se plenamente a relação entre agrotóxicos e monocultura. As maiores concentrações de utilização de agrotóxicos coincidem com as regiões de maior intensidade de monoculturas de soja, milho, cana, cítricos, algodão e arroz.(2) E estas coincidem, como mostrarei adiante, com a maior incidência da violência no campo.
Os impactos na saúde pública do uso intensivo de agrotóxicos são amplos porque atingem vastos territórios e envolvem diferentes grupos populacionais, como trabalhadores em diversos ramos de atividades, moradores nos arredores de fábricas e fazendas, além de todos nós, consumidores, que consumimos alimentos contaminados. Em todos os espaços ou setores da cadeia produtiva do agronegócio, estão comprovadas intoxicações humanas, cânceres, malformações, doenças de pele, doenças respiratórias, tudo decorrente da contaminação com agrotóxicos e fertilizantes químicos das águas, do ar, do solo. Dois terços dos alimentos consumidos cotidianamente pelos brasileiros estão contaminados pelos agrotóxicos, segundo análise de amostras recolhidas em todas as 26 Unidades Federadas do Brasil, realizadas pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos. A Campanha contra os Agrotóxicos e pela Vida, atualmente em curso e promovida por diferentes associações e movimentos, da ABRASCO à Via Campesina, deve ser saudada pela sua importância nacional e internacional.
Os conflitos associados às monoculturas estão presentes em muitos países latinoamericanos. No Brasil o impacto do agronegócio tem as seguintes dimensões principais: a grilagem de terras dos povos tradicionais e das áreas da reforma agrária; a degradação dos ecossistemas, que afeta principalmente as populações que dependem da sua vitalidade, como indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e agricultores dedicados à agroecologia; a contaminação por agrotóxicos das populações expostas, sobretudo os trabalhadores e moradores de áreas pulverizadas; a violência utilizada contra lideranças e populações que habitam nos territórios cobiçados e buscam defender seus direitos e modos de vida. Por exemplo, o Ceará, no Vale do Jaguaribe, possui um caso emblemático de injustiça ambiental vinculado à fruticultura de exportação. A política de irrigação em desenvolvimento desde a década de 1980 permitiu a instalação de empresas voltadas à exportação de melão e abacaxi, com uso intensivo de agrotóxicos, inclusive por pulverizações aéreas, tendo surgido inúmeros casos de contaminação ambiental, de trabalhadores e da população em geral. Trabalhos realizados pela Universidade Federal do Ceará, coordenados pelo Núcleo TRAMAS, apontam para a existência de mortes diretamente associadas aos agrotóxicos, cânceres, doenças de pele e doenças respiratórias. Os conflitos na região e a luta contra o agronegócio também produz violências, como o caso do assassinato, em 21 de abril de 2010, em Limoeiro do Norte, do agricultor, ambientalista e líder comunitário, José Maria Filho. Vinte e cinco tiros de pistola em resposta às denúncias que ele fazia de que as pulverizações aéreas envenenavam as comunidades, terras, águas e animais. Contudo, sua morte não foi em vão: foi criado o Movimento 21 no Estado para dar continuidade às bandeiras que motivaram – e ceifaram – sua vida.
As áreas de grande concentração da monocultura coincidem com as áreas de maior consumo de agrotóxicos e tragicamente também com as áreas de maior incidência da violência no campo. Conforme dados divulgados pelo CIMI, dos 43 indígenas assassinados neste ano de 2012 mais de 60% ocorreram no Mato Grosso do Sul, confirmando a sua triste estatística de campeão de violência contra os povos indígenas. As ações de reintegração de posse, além de serem um ato de violência em si, propiciam o desencadear de mais violências e mortes. Recentemente, três reintegrações de posse foram expedidas no Estado: Pueblito Kuê-Mbarakay (Iguatemi) Kadiwéu (Bodoquena) e agora Passo Piraju (Dourados).
O agronegócio tem força política – basta ver a Bancada Ruralista – que se repercute em força econômica, de que são exemplos os generosos financiamentos que recebem. E esta dupla força garante a impunidade da violência que provoca no campo, sempre que alguém se põe no seu caminho.
A luta pelos direitos humanos nas primeiras décadas do século XXI enfrenta novas formas de autoritarismo que convivem confortavelmente com regimes democráticos. São formas de fascismo social, como as tenho designado no meu trabalho. Se a voracidade de recursos naturais e de terra deste modelo de desenvolvimento continuar a influenciar os Estados e governos democráticos para, por um lado, fazer tábua rasa dos direitos de cidadania e humanos, incluindo os que estão consagrados pelo direito internacional e, por outro, para reprimir brutal e impunemente todos aqueles que ousam resistir-lhe, é possível que estejamos ante uma nova forma de fascismo social, o fascismo desenvolvimentista.
Esta luta contra o fascismo desenvolvimentista tem três características. A primeira é que é uma luta com uma forte dimensão civilizatória. Isto implica, entre outras coisas, novas gerações de direitos fundamentais: o direito à terra como condição de vida digna e, portanto, um direito muito para além do direito à reforma agrária, o direito à água, os direitos da natureza, o direito à soberania alimentar, o direito à diversidade cultural, o direito à saúde coletiva. No seu conjunto, estes direitos configuram uma mudança civilizatória que está em curso e que certamente não terminará proximamente. O que é verdadeiramente novo nesta luta é que a mudança civilizatória, que normalmente invoca temporalidades de longa duração, tem de ser lutada com um sentido de urgência que aponta para tempos curtos, para os tempos de impedir uma população de cometer suicídio coletivo, de proteger um líder ambiental indígena ou quilombola das ameaças contra a sua vida, de prevenir eficazmente e punir exemplarmente a violência ilegal contra as populações indefesas, ou de pôr fim ao envenenamento por agrotóxicos, tanto de produtores como de consumidores. O futuro nunca esteve tão colado ao presente. Nada pode ser reclamado em nome do futuro que não tenha um nome e um sentido para os que vivem hoje e podem não estar vivos amanhã.
A luta por direitos humanos contra-hegemônicos no inicio do século XXI vai igualmente contra as inércias do pensamento crítico e da política de esquerda eurocêntricos. Consiste na necessidade de articular lutas até agora separadas por um mar de divisões, diferentes tradições de luta, repertórios de reivindicações, vocabulários e linguagens de emancipação e formas de organização política e de luta. As novas regras do capitalismo-global-sem-regras obrigam a ver, na luta ambiental, a luta pelos povos indígenas e quilombolas, na luta pelos direitos econômicos e sociais, a luta pelos direitos cívicos e políticos, na luta pelos direitos individuais, a luta pelos direitos coletivos, na luta pela igualdade, a luta pelo reconhecimento da diferença, na luta contra a violência doméstica, a luta pela liberdade de orientação sexual, na luta dos camponeses pobres, a luta pelo direito à cidade. A desumanidade e a indignidade humana não perdem tempo a escolher entre as lutas para destruir a aspiração humana de humanidade e de dignidade. O mesmo deve acontecer com todos os que lutam para que tal não aconteça.
Finalizando, gostaria de destacar que o Dossiê, em sua última etapa, constrói com ousadia o que tenho conceituado como a Ecologia de Saberes. Não basta somente reunirmos todo o conhecimento científico produzido pela ciência moderna, mas construirmos um verdadeiro diálogo entre as vozes que emergem dos territórios e que nos trazem informações que não estão nas grandes bases de dados oficiais. Tudo isso trabalhado em conjunto com os grupos acadêmicos locais, engajados na realização de uma ciência capaz de valorizar essas experiências, construindo um conhecimento com grande potencial de transformar esse mundo. Veremos nas partes posteriores desse dossiê como a ABRASCO e a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida conseguiram aplicar esse referencial para a luta contra esse modelo que produz tantas doenças, mortes e contaminação ambiental.
Vida longa ao Dossiê – que possamos multiplicar processos como esse para que o Sul global, por meio de seus movimentos sociais e redes de pesquisa críticas, possa mostrar ao planeta que um outro mundo é possível e urgente”.
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*Esse prefácio está baseado no discurso do Prof. Boaventura de Sousa Santos, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, por ocasião do recebimento do título de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília, no dia 29 de outubro de 2012. As adaptações foram realizadas pelo Prof. Fernando Ferreira Carneiro, da UnB-DSC e GT de Saúde ambiente da ABRASCO e aprovadas pelo autor.
(1) Na última safra, que envolve o segundo semestre de 2010 e o primeiro semestre de 2011, o mercado nacional de venda de agrotóxicos movimentou 936 mil toneladas de produtos, sendo 833 mil toneladas produzidas no País, e 246 mil toneladas importadas (ANVISA; UFPR, 2012). A quantidade de fertilizantes químicos por hectare (kg/ha) chama a atenção na soja (200kg/ha), no milho (100kg/ha) e no algodão (500 kg/ha).
(2) Mato Grosso é o maior consumidor de agrotóxicos, representando 18,9%, seguido de São Paulo (14,5%), Paraná (14,3%), Rio Grande do Sul (10,8%), Goiás (8,8%), Minas Gerais (9,0%), Bahia (6,5%), Mato Grosso do Sul (4,7%), Santa Catarina (2,1%).
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Nota: Este e os dois primeiros Dossiês da Abrasco podem ser baixados clicando nos seus respectivos títulos, abaixo. TP.
Dossiê Parte 1 – Agrotóxicos, segurança alimentar e nutricional e saúde
Dossiê Parte 2 – Agrotóxicos, saúde, ambiente e sustentabilidade
Dossiê Parte 3 – Agrotóxicos, conhecimento científico e popular: construindo a ecologia de saberes
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