Organizações acusam governo brasileiro de não ouvir indígenas

Por MIA

Um estudo realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e que será publicado em setembro afirma que 454 empreendimentos concluídos, previstos ou já em andamento no Brasil afetam, de alguma maneira, 333 terras indígenas. E, segundo avaliação do Cimi, nenhum dos 158 povos afetados foi devidamente consultado pelo governo federal antes do início das obras, como determina a lei.

Segundo o estudo, que foi antecipado à DW Brasil, pouco mais da metade desses empreendimentos visam a exploração energética, como usinas hidrelétricas, e 34% deles são obras de infraestrutura, como estradas. Há ainda projetos nas áreas de mineração, agronegócio e ecoturismo.

Organizações de apoio aos povos indígenas e representantes do Ministério Público Federal engrossam o coro e acusam os sucessivos governos brasileiros de ignorar, desde 1988, o artigo 231 da Constituição, que determina a consulta direta às comunidades afetadas antes da implementação de qualquer obra ou empreendimento.

O Brasil também estaria descumprindo um compromisso acertado em âmbito internacional após a ratificação, em 2004, da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em abril do ano passado, a Organização dos Estados Americanos (OEA) chegou a pedir que o governo brasileiro suspendesse as obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, por não ter consultado os povos na bacia do rio Xingu. Os trabalhos foram embargados, mas no fim do ano passado eles foram liberados pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).

O governo se defende e garante que, no caso específico de Belo Monte, as oitivas (consultas às comunidades afetadas) foram realizadas, e põe a culpa na falta de um modelo padrão para a realização das consultas. Para os críticos, o governo vem apenas realizando reuniões entre autoridades públicas e comunidades indígenas, que na maioria das vezes servem apenas para comunicar os projetos já em andamento, sem de fato ouvir a opinião dos habitantes da região.

Não é só Belo Monte

Belo Monte ganhou notoriedade internacional e acabou virando um caso emblemático do alegado atropelo das autoridades brasileiras sobre os direitos dos indígenas de participar ativamente dos projetos que afetam suas áreas. Mas está longe de ser o único. O Ministério Público Federal tem entrado com diversas ações na Justiça para embargar obras que não atendem à Convenção 169.

Há poucos dias, por exemplo, o TRF1 determinou a paralisação imediata das obras de outra usina, a de Teles Pires, na divisa entre os Estados do Pará e do Mato Grosso. Entre as irregularidades apontadas, está a falta de consulta prévia aos povos indígenas afetados pelo projeto.

O secretário-adjunto do Cimi, Saulo Feitosa, que coordenou o estudo sobre os impactos de empreendimentos em terras indígenas, diz que a maioria das obras citadas no levantamento está localizada na Amazônia e na região Centro-Oeste, onde também estão cerca de 90% das áreas destinadas a ocupações de povos indígenas no país. Essas áreas apresentam um enorme potencial energético e, apesar das críticas de ambientalistas, a presidente Dilma Rousseff já ressaltou inúmeras vezes que o Brasil não deixará de explorar o filão.

“Há uma previsão de que, nos próximos 50 anos, o número de hidrelétricas na Amazônia chegará a 302?, ressalta Feitosa. Justamente por causa das dimensões dos projetos do governo, defende o secretário-adjunto do Cimi, as populações precisam ser informadas e consultadas. “Se há um planejamento energético a médio ou longo prazo, isso tem que ser dito para que os povos possam medir as consequências dos impactos, já que suas terras vão ser afetadas várias vezes”, disse ele.

Biviany Rojas, advogada da organização ambientalista Instituto Socioambiental, ressalta que o Brasil foi pioneiro no mundo em estabelecer direitos específicos aos indígenas em sua Constituição e lamenta que o país não consiga cumprir a própria lei. “Num Estado democrático não se pode negar a pessoas que habitam uma terra, como os povos indígenas, a possibilidade de discutir como e o quê vai ser feito nela”, critica.

Feitosa também culpa a pressão de empresários dos setores da mineração, do agronegócio e do setor energético pela ausência de oitivas “feitas de maneira correta” com os povos indígenas. “Para o governo, é conveniente não consultar” a fim de atender, segundo ele, os interesses desses grupos econômicos e políticos. “Muitos grupos políticos são da própria base de apoio do governo”, afirmou.

Portaria controversa

No início de ano, o governo criou o grupo de trabalho interministerial (GTI) para estabelecer normas de consulta direta aos indígenas, evitando a chuva de críticas e de processos judiciais. Formado por representantes de 26 órgãos públicos – entre eles o Itamaraty, a Funai e o Ministério de Minas e Energia – e de comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais, o GTI deve finalizar um modelo para as oitivas até o fim de 2013.

“Tem havido consulta prévia”, defende Sílvio Albuquerque, representante do Itamaraty no GTI e um dos coordenadores do grupo. Segundo ele, “a regulamentação do mecanismo de consulta vai permitir com que as autoridades tenham procedimento padrão em situações semelhantes”.

No entanto, no dia 16 de julho, a publicação de uma portaria pela Advocacia Geral da União (AGU) provocou indignação entre as organizações indígenas. Segundo as entidades, a portaria inviabilizaria os trabalhos do GTI por dispensar a consulta no caso de obras consideradas “estratégicas”. Sob pressão da Funai, uma semana depois de editado, o texto foi suspenso pela AGU por 60 dias.

“A portaria é totalmente contraditória e tem um intenção política muito clara: tumultuar o processo. Mesmo sem força de lei, ela impede a ação de órgãos sob orientação da AGU, como a Funai, e cria argumentos para que os invasores tradicionais das terras indígenas possam justificar suas ações com base nela”, critica Feitosa.

Albuquerque reconhece que a edição da portaria acabou gerando uma desconfiança entre os interlocutores dos povos indígenas no GTI. Ele admite que o texto da AGU pode ser mudado quando o prazo para a suspensão acabar.

“Um componente essencial neste processo é a existência de boa fé e transparência na relação entre povos consultados e governo”, afirma o diplomata. “E minha expectativa é de que o trabalho que começamos em janeiro termine com uma proposta concreta que atenda às expectativas dos povos indígenas, quilombolas e também da Organização Internacional do Trabalho e do governo federal”, disse ele.

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