Dom Eugênio Sales era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura

Ver, ao final do texto de José Ribamar Bessa Freire, um exemplo publicado no JB de hoje. Sem dúvida, tentam transformá-lo em Dom Helder. A falsidade ideológica é tanta que agora, como pode ser visto na matéria em questão, era ele o “bispo vermelho”!  Do jeito que querem reescrever a História, só falta Dom Helder virar informante do DOI-Codi! TP.

José Ribamar Bessa Freire*

O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales, ocorrida na última segunda-feira, com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão “Uma cidade sem passado”, de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção.

Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é “Minha cidade natal na época do III Reich”. Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing – como é denominada no filme – considerada até então baluarte da resistência antinazista.

Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória – o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen – fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que uma “judia e comunista” futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.

A jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da memória oficial, que é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha caroço – perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha – resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.

Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.

Os documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso, era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.

Deus tá vendo

E é aqui que entra a forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? O Brasil já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas até hoje, não temos acesso aos principais documentos da repressão.

Se a Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma Rousseff, pudesse criar, no campo da memória, algo similar à operação “Deus tá vendo”, organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última quinta-feira quatro pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de automóveis. Seria o caso de perguntar: o que foi que Deus viu na época da ditadura militar?

Tem coisas que até Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio – O Sol, O Paiz e Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho.   Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas não dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.

O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé, muito atuante no campo político. Foi ele um dos inspiradores das “candocas” – como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As “candocas” desenvolveram trabalhos sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos golpistas. Foram elas, as “candocas”, que organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de João Goulart, incluindo a famigerada “Marcha da família com Deus pela liberdade”, que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista político René Dreifuss, em seu livro “1964: A Conquista do Estado” (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.

Nós, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia – e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa – posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos.

“Quem tem dúvidas…basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n’O Globo” – escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opção preferencial do cardeal:

“A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%…”

Portões do Sumaré

Por isso, a jornalista estranhou – e nós também – a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou que o cardeal “defendeu a liberdade e os direitos individuais”. O governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado, José Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão “do respeito às pessoas e aos direitos humanos”.

Não foram só os políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio chegou a abrigar no Rio “uma quantidade enorme de asilados políticos”, calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em “mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul”. Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como “o intrépido pastor”.

Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só – umazinha – dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.

Segundo Hilde, dom Eugênio “fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos “subversivos” que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)”. Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar “que ocorreu justo o contrário!”, como no filme “Uma cidade sem passado”.

Mas não é tão surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em “manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos”. As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.

Os jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo II, com o mesmo zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes. São os rituais do poder com seus rapapés.

“Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a “verdade”, as memórias têm valor social de “verdade” e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem “a verdade” – escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de Amsterdã.

A “verdade” construída pela mídia foi capaz de fotografar até “a presença do Espírito Santo” no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: “Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo” – berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão baixo para uma das pessoas da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito com a fé das pessoas.

“A mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de imagens, representações e memória” nos diz o citado pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa política.

Nessa disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!

P.S: O jornalista amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, há anos, o filme “Uma cidade sem passado”. Quem me permitiu discutir o conceito de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera Dodebei, organizadoras do livro “O que é Memória Social” (Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós- Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juízos por mim aqui emitidos.

*José Ribamar Bessa Freire e professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)

http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2012/07/15/dom-eugenio-sales-era-com-todo-o-respeito-o-cardeal-da-ditadura/. Enviada por José Carlos.

Um exemplo de hoje, 15 de julho de 2012, no JB, escrito pelo atual arcebispo do Rio de Janeiro:

Um homem de Deus

Dom Orani João Tempesta*

Voltou para a casa do Pai o homem que lutou para conseguir construir um mundo mais justo e humano e que amou a Igreja até o fim de seus dias, dom Eugenio de Araujo cardeal Sales. Como bem indica a etimologia grega: Eugenios, “bem nascido, nobre”. Sim, em toda a sua vida foi nobre entre os pequenos; sempre tratou a todos com leveza espiritual. Sua nobreza e pobreza estavam contidas em sua leveza espiritual. Nasceu na Fazenda Catuana (Acari, RN), em 8 de novembro de 1920. Era bisneto de Cândida Mercês da Conceição, uma das fundadoras do Apostolado da Oração na cidade de Acari. Esse contato com a natureza o iluminou em seus trabalhos sociais iniciais, como a criação de sindicatos rurais, a fundação do movimento de educação de base e a alfabetização pelo rádio, início das Comunidades Eclesiais de Base, início da Campanha da Fraternidade.

Realizou seus primeiros estudos em Natal, Rio Grande do Norte, inicialmente em uma escola particular, depois no Colégio Marista e, finalmente, ingressou, em 1936, no Seminário Menor de Natal. Realizou seus estudos de filosofia e teologia no Seminário da Prainha, em Fortaleza, Ceará, no período de 1937 a 1943. Essa experiência o marcou profundamente. Quando se tratou de acolher seminaristas de outras dioceses no Rio de Janeiro, ele o fez com muita alegria, visto a sua experiência em sua formação. A abertura para o outro, não vendo no outro nenhum forasteiro, mas membro do povo de Deus, irmão nosso, faz muita diferença em nossa missão de Igreja e em nossa caminhada pastoral.

Dom Eugenio foi ordenado sacerdorte pela imposição das mãos de dom Marcolino Esmeraldo de Sousa Dantas, bispo de Natal, no dia 21 de novembro de 1943, na mesma igreja onde recebera o batismo, na paróquia Nossa Senhora da Guia, em Acari. Foi ordenado bispo no dia 15 de agosto de 1954, para a arquidiocese de Natal. E no dia 29 de outubro de 1968 se deu sua nomeação como arcebispo de Salvador e primaz do Brasil, pelo papa Paulo VI. Seus trabalhos pastorais e sociais no Nordeste foram inúmeros. O filho do Rio Grande do Norte, primaz do Brasil, cardeal da Santa Igreja, depois se tornou o arcebispo da ex-capital da República do Brasil.

No consistório do dia 28 de abril de 1969, presidido pelo papa Paulo VI, dom Eugenio de Araujo Sales foi criado cardeal da Santa Igreja Romana, do título de São Gregório VII, do qual tomou posse solenemente no dia 30 de abril do mesmo ano. Era, até sua morte, o cardeal mais antigo do Colégio Cardinalício.

Trazia como lema de ordenação: “Impendam et superimpendar”,   alusão à frase de São Paulo (2Cor 12, 15): “Ego autem libentissime impendam et superimpendar ipse pro animabus vestris”, ou “De mui boa vontade darei o que é meu, e me darei a mim mesmo pelas vossas almas”.

No dia 13 de março de 1971, o papa Paulo VI o transferiu da Sé Primacial e o nomeou arcebispo do Rio de Janeiro, função exercida até 25 de julho de 2001, pois aos 75 anos já tinha pedido a renúncia, conforme o grau de idade, em conformidade com as normas do Direito Canônico, mas permaneceu até aos 80 anos no cargo de arcebispo, até que o seu pedido foi aceito pelo papa João Paulo II, depois de mais de 30 anos que marcaram profundamente a Igreja de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Muitos se lembram de quando fora arcebispo de Salvador, Bahia, e, unido a uma equipe, deu início às CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), bem como deu continuidade à Campanha da Fraternidade (a CF foi criada por ele em Natal, RN). O que não dizer então sobre o Diaconato Permanente: dom Eugenio foi um dos primeiros bispos do Brasil a implantar este ministério. Ordenou mais de 200 sacerdotes e foi o sagrante principal de mais de 20 bispos. Ao mesmo tempo que dedicava sua vida à arquidiocese, ainda acumulava o acompanhamento em onze congregações na Santa Sé, entre Conselhos e Comissões. Um grande representante brasileiro junto ao governo central da Igreja.

Foi um grande defensor da doutrina católica e demonstrou que, seguindo a verdadeira doutrina, poderia ser muito bem um grande evangelizador, missionário, catequista e também um grande combatente pelo social e pela dignidade humana. Este seu trabalho não foi reconhecido na época devido à tendência que havia na comunicação; foi redescoberto mais tarde através de tantos testemunhos que pouco a pouco foram aparecendo. Chegou a ser chamado de “bispo vermelho” [grifo meu. TP.] por ter ajudado a criar sindicatos rurais no Rio Grande do Norte e também quando, durante o totalitarismo militar, entre 1976 a 1982, ele mesmo escondeu, guardou e cuidou de 4 mil homens, naquele período da revolução, na maioria argentinos. Ele mesmo assumiu discretamente a causa daqueles refugiados políticos latino-americanos. Articulou uma ação com a Cáritas e o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados e, de início, abrigou-os no Palácio São Joaquim (Palácio Episcopal), porém, mais tarde, usou de apartamentos para esconder todas aquelas pessoas. Para a maioria conseguiu asilo político em países europeus. Enquanto lutava pelo asilo político, era ele quem corria atrás da sustentação e manutenção de todos. Para conseguir o asilo político, enfrentou muitas dificuldades e embates com as autoridades da época, nem sempre visíveis ou noticiados pela comunicação. Mas sua autoridade dobrava a encruzilhada da história naquele momento. Sua leveza fazia com que portas se abrissem, mesmo que as dobradiças se mostrassem “enferrujadas”. O marechal Castello Branco chegou a defini-lo como o bispo mais perigoso do Brasil.

Ele não temia os poderes da época, a ponto de um dia telefonar para o general Silvio Frota e lhe dizer: “Frota, se você receber comunicação de que comunistas estão abrigados no Palácio São Joaquim, de que eu estou protegendo comunistas, saiba que é verdade, eu sou o responsável. Ponto final, ponto final”. Sem contar quanta repercussão houve e perseguição sofreu quando se negou a celebrar uma missa pelo aniversário do AI-5.

Muito se destacou na vida pastoral da Igreja Católica, incluindo a criação de centros de atendimento a portadores do HIV. Teve forte empenho na formação de líderes que atuaram na Pastoral Carcerária, na Pastoral das Favelas, na Pastoral do Menor.

Dom Eugenio marcou a história da Igreja no Brasil com seus gestos e ações, mas principalmente com sua exposição sempre corajosa, catequética e profética escrevendo para muitos jornais de grande circulação. Com sua inteligência sabia criar e formar consciências.

Teve sempre boa e profissional aproximação com os meios de comunicação social, apresentando suas reflexões tanto nas TVs como nas rádios de inspiração católica. Um dia, numa entrevista a um jornal assim se manifestou: “Eu já estou cansado, às vezes minha memória falha. Mas faço questão de receber os jornalistas. Nada no mundo funciona sem a comunicação. Ela é fundamental para difusão do Evangelho. Eu levei isso muito a sério na minha vida religiosa, instalei rádios, escrevi em jornais, dei muitas entrevistas para TV. Quando eu não podia ir ao local, chegava às pessoas pelos meios de comunicação”.

A notícia de sua morte, ocorrida às 22h30 do dia 9 de julho teve repercussão internacional. O papa Bento XVI assim se manifestou ao povo brasileiro enviando um comunicado ao arcebispo do Rio de Janeiro: “Recebida a triste notícia do falecimento do venerado cardeal Eugenio de Araujo Sales, depois de uma longa vida de dedicação à Igreja no Brasil, venho exprimir meus pêsames a si e aos bispos auxiliares, ao clero e comunidades religiosas, e aos fiéis da arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro, que por três décadas teve nele um intrépido pastor, revelando-se autêntica testemunha do Evangelho no meio do seu povo. Dou graças ao Senhor por ter dado à Igreja tão generoso pastor que, nos seus quase 70 anos de sacerdócio e 58 de episcopado, procurou apontar a todos a senda da verdade na caridade e do serviço à comunidade, em permanente atenção pelos mais desfavorecidos, na fidelidade ao seu lema episcopal: “Impendam et superimpendar” (“Darei o que é meu, e me darei a mim mesmo pelas vossas almas”). Enquanto elevo fervorosas preces para que Deus acolha na sua felicidade eterna este seu servo bom e fiel, envio a essa comunidade arquidiocesana, que lamenta a perda dessa admirada figura; à Igreja no Brasil, que nele sempre teve um seguro ponto de referência e de fidelidade à Sé Apostólica; e a quantos tomam parte nos sufrágios, animados pela esperança da ressurreição, uma confortadora bênção apostólica”.

Todos sabem que a missão dos cardeais é serem conselheiros dos papas. Dom Eugenio além dessa missão nutria amizade com os sumos pontífices João Paulo II e Bento XVI. Acolheu o papa João Paulo II por duas vezes em sua visita ao Brasil. E uma terceira, quando de sua escala técnica ao viajar à Argentina para uma visita àquela nação.

Um cardeal deve sempre colaborar com o papa na construção de um diálogo com a humanidade. O cardeal é consultor de um papa. Por isso a Igreja Católica, com leveza institucional, continua sempre crescendo e mostrando sua força, pois é feita de homens e mulheres em sua riqueza e fraqueza, reconhece suas crises e encruzilhadas, e realiza a vontade de Deus sempre, com sabedoria, ultrapassando fronteiras.

Dom Eugenio teve sempre estreita amizade e confiabilidade com os papas que passaram por sua vida, desde Paulo VI até Bento XVI. Muito bem, lembrei-me, ao comunicar sua morte, primeiramente por torpedos aos colaboradores mais próximos por volta das 23h30, e depois através do Twitter à 0h40 da madrugada do dia seguinte, quando afirmei que dom Eugenio foi um homem marcante na história da Igreja Católica no Brasil junto aos refugiados e sofredores. Foi também desta forma que ele serviu a Jesus Cristo.

Dom Eugenio foi, é e sempre será a referência da Igreja no Rio de Janeiro. Coube a ele, numa carta fraternal, pedir ao soberano pontífice Bento XVI que a sua amada cidade do Rio de Janeiro fosse escolhida para a JMJ Rio2013. E a sua carta ecoou em Madri, quando o papa Bento XVI anunciou e confirmou a cidade do Rio como sede da JMJ 2013. Pequenos gestos como estes demonstram que dom Eugenio é o nosso patriarca: aquele que nos conduziu para os caminhos de Deus, sempre fiel à Igreja e ao papa.

Antes de surgir a vocação ao sacerdócio, dom Eugenio pensava em ser engenheiro agrônomo. Coincidência ou não, acabou sendo um grande engenheiro nas obras do Reino de Deus. A pomba que acompanhou o seu féretro recorda de um lado a sua preocupação com a vida rural, com a natureza, inclusive onde ele residiu, no Sumaré, em plena Floresta da Tijuca, e depois a sua procura pela verdadeira paz. Ele edificou consciências e pessoas que continuaram o exercício de apresentar os sinais do Reino de Deus. Homem destacado, amado e nem sempre compreendido, mas preferido por Deus, porque Deus o preferiu. Grande empreendedor na arquidiocese do Rio de Janeiro e hoje um intercessor de todos os católicos do Brasil lá no céu. Como ele mesmo disse em seu testamento: “No céu, onde espero ser acolhido por meu Pai, o Senhor Jesus e Maria, procurarei retribuir tudo o que recebi”.

* Dom Orani João Tempesta, cisterciense, é arcebispo do Rio de Janeiro.

Comments (3)

  1. Seu relato é esclarecedor……não deixa a menor dúvida, estou com 63 anos, quando a ditadura começou eu cursava o antigo ginásio em 1964…vivi….vivenciei….hoje muitos se colocam ou são colocados como baluartes…heróis como acabamos de assistir pela tv as honras,as homenagens,no entanto nós os que vimos e ouvimos ainda estamos aquí,será que eles não sabem disto?

  2. Padre José Bessa Freire,
    muito agradecida por sua posição nos lembrando fatos importantes naqueles tempos de tanta perseguição e sofrimento.
    Fiquei zonza quando li o que foi escrito no enterro do Cardeal dom Eugênio. Foi uma benção do nosso Deus e a força dos Encantados dos Ancestrais Indígenas esse reforço e apoio à VERDADE.

  3. Quando vi tanta lambança, fiquei confuso, imaginando que estava com problemas de memória. Dom Eugênio sempre foi conhecido como da mais alta elite carioca.Parabéns pelo texto e por fazer recuperar a minha memória. Jackson

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