Antonio Brand – amigo dos índios

Por José Ribamar Bessa Freire*

“Teixeirão Bobalhão”. Esse foi o título que dei para uma nota publicada, em agosto de 1979, no jornal mensal Porantim do qual era redator-chefe. Teixeirão, no caso, era o coronel Jorge Teixeira, ex-prefeito biônico de Manaus. O “bobalhão” tinha uma razão de ser. Imaginem que o dito-cujo, na ocasião governador nomeado de Rondônia, pretendia realizar umas obras e decidiu, para isso, invadir terras indígenas, o que era ilegal.

Os índios resistiram e ele agiu como um office-boy de luxo da construtora Andrade Gutierrez, declarando aos jornais:  “Os índios são uns bobalhões, uns parasitas que estão me dando um pouquinho de preocupação. Mas venço a parada e vou empurrá-los para a outra margem do rio”.

Indignado com tanto desrespeito, o nosso valente tabloide partiu pra cima do governador, dando o troco na hora. Devolvemos-lhe o epíteto de bobalhão. O dito-cujo não gostou e se queixou ao bispo, afinal o Porantim era um jornal do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que por sua vez estava subordinado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A CNBB Regional escalou para puxar minha orelha o bispo-prelado de Parintins, Dom Arcângelo Cerqua, da ala mais conservadora da igreja. Sua barbinha-de-bode esvoaçava quando falou com voz abemolada:

– Meu filho, um jornal da igreja não pode tratar uma autoridade desta forma.

– Pode sim – me tranquilizou Antônio Brand, quando soube do ocorrido. – Deixa o bispo falar. Bispos, às vezes, erram – acrescentou, totalmente cúmplice na indignação, mas sugeriu que eu não desse o desmentido que pretendia dar, o que seria pura provocação. Já havia até escolhido o título: Teixeirão, ex-bobalhão.

Muitos anos depois lembramos dessa história, Antônio Brand e eu. Nós nos conhecemos, em julho de 1978, em Goiânia, durante a III Assembleia Nacional do CIMI, que foi uma escola para todos nós. No episódio do Teixeirão, as palavras de Brand foram tão reconfortantes quanto o apoio do teólogo Paulo Suess, secretário do CIMI, com quem eu convivia mais de perto. Conto o caso aqui porque ajuda a definir o nosso personagem.

O doce radical

Antônio Brand desenvolveu uma virtude invejável. Conseguia ser radical na defesa dos índios, sem jamais ser “fundamentalista” e dogmático. Mantinha, ao lado dessa radicalidade e dessa coerência com os postulados básicos, uma incrível capacidade de negociação política, baseada na análise de correlação de forças. Sabia ouvir, ceder, negociar, para poder avançar. Cutucava a onça, mas com vara comprida. Talvez tenha aprendido essa arte de dosar na convivência com Dom Thomaz Balduíno, outro doce radical, que consegue ser afável sem transigir com os princípios.

Essa virtude, com certeza, foi muito útil durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, quando Antonio Brand, então residindo em Brasília, desempenhou um papel decisivo na luta pelos direitos indígenas, articulando com deputados e senadores, argumentando, explicando, convencendo. Ele deu uma grande contribuição para que o novo texto constitucional de 1988 afirmasse o direito à diferença e definisse o papel do Estado não mais como agente promotor da integração dos índios, mas como protetor da diferença.

Quem chama a atenção para esse trabalho discreto, mas eficiente de Antonio Brand é Dom Erwin Krautler, presidente do CIMI, ele também um doce radical, incansável na batalha contra os estragos previstos na construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

Nessa luta sem trégua, o CIMI fez escola, uma escola de militância na qual tivemos o privilégio de conviver com as principais lideranças indígenas e com figuras como Thomas Balduíno, Pedro Casaldaliga, Moacir Grechi, Egydio Schwade, Antonio Iasi, Bartomé Meliá, Paulo Suess. Muitos de nós saímos de lá para a academia: Antônio Brand, Renato Athias, Egon Heck, Wilmar D’Angelis, Ademir Ramos, todos vinculando seu trabalho no magistério à temática indígena. Dentro das universidades, abrimos outras frentes de luta.

Foi lá, dentro da Universidade, que Antonio Brand atuou nas duas últimas décadas.  Fundador do CIMI no Mato Grosso do Sul e secretário executivo nacional no período da Constituinte, ele, que era graduado em História pela Unisinos, defendeu tese de doutorado na PUC-RS, intitulada “O Impacto da perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da Palavra”. Ali, ele reconstitui os processos históricos que levaram a usurpação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul e o confinamento dos índios que lá vivem.

Antonio Brand passou a lecionar no Departamento de História da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande (MS), orientando alunos no mestrado e doutorado. Criou o Centro de Documentação Kaiowá-Guarani, responsável pelo levantamento, catalogação e divulgação da documentação primária. Tive a sorte de participar deste projeto, convidado por ele para identificar a documentação sobre índios do Mato Grosso do Sul em arquivos do Rio de Janeiro e que contou com a valiosa colaboração do historiador Neimar Machado.

Na UCDB, Brand coordenava o Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indigenas (NEPPI) e a Rede de Saberes, sendo responsável, junto com a doutora Adir Casaro, pela formação de jovens pesquisadores, indígenas e não-indígenas. Recentemente, fizemos parte de uma banca de mestrado na UNIRIO, quando ele compartilhou seus conhecimentos sobre história indígena. O legado

Antonio Brand conseguiu aliar a militância em favor dos índios com o rigor nas pesquisas acadêmicas e na formação de pesquisadores. Quem chama atenção para esse fato é o historiador John Monteiro, professor titular do Departamento de Antropologia da UNICAMP e ex-professor visitante da Harvard University, que escreveu:

– Brand foi uma das pessoas mais dedicadas à defesa dos direitos indígenas que já conheci. Conseguiu, de uma maneira expressiva, trazer essa dedicação para dentro da academia, reunindo um núcleo de alunos e pesquisadores na UCDB voltados para o avanço do conhecimento sobre povos indígenas em vários campos do saber. Não foram poucos os meus alunos que se valeram dos conhecimentos e dos contatos que ele partilhava com entusiasmo, sempre incentivando o engajamento com a temática. Vai fazer falta, porém deixou um legado significativo.

Esta falta já estamos sentindo todos nós: sua companheira de todos os momentos, Valéria Calderoni, sua filha Luciana, seus familiares, seus parceiros, os membros de sua equipe na UCDB e os índios que vivem no Brasil, especialmente os Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul, que perderam um grande amigo. Na manhã de terça-feira, 3 de julho, o professor Antonio Jacó Brand, 62 anos, faleceu em Porto Alegre (RS), vítima de um infarto. No dia seguinte, foi sepultado em sua terra natal, São José do Sul (RS), no cemitério junto à Igreja de Dom Diogo.

Quando souberam da morte do amigo fiel, vários Nhanderu – líderes religiosos indígenas – junto com estudantes e professores guarani e kaiowá saíram de Mato Grosso do Sul e viajaram a noite toda, atravessando municípios, cidades e estados, para um último adeus. Lá, no Rio Grande do Sul, abençoaram um cocar e colocaram sobre seu corpo, em sinal de respeito, reconhecimento e gratidão. Celebraram um ritual no qual agradeceram, com cantos sagrados, a presença dele, por mais de 40 anos, na luta indígena, conforme informa nota do CIMI.

Os líderes religiosos Guarani-Kaiowá lembraram, no final da cerimônia, toda a luta em defesa da terra, da cultura, da língua, que teve em Antônio Brand um aliado devotado e sempre presente. Pediram a palavra para reafirmar que a melhor forma de honrar a memória do amigo é continuar a resistência.

A morte de Antonio Brand foi pranteada em muitas aldeias indígenas do Brasil, onde era conhecido, no norte e no sul, entre os tuyuka do rio Tiquié (AM), em comunidades Kaingang e Guarani do Rio Grande do Sul, mas também fora do país. Mensagens chegaram do Paraguai, do México, da França, de Portugal, da Itália, dos Estados Unidos, de várias partes do mundo, por parte de antropólogos, linguistas, historiadores, educadores, missionários, indigenistas e pesquisadores de diferentes áreas do saber.

No dia 4, foi realizada missa em sua homenagem, num anfiteatro da Universidade Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS), reunindo alunos, professores e funcionários, que ouviram a leitura de uma carta escrita pelo tuyuka Justino Sarmento Rezende, padre salesiano e ex-aluno de Brand no Mestrado em Educação na UCDB.  Nesta segunda-feira, dia 9, a UCDB realiza a missa de sétimo dia às 10 horas da manhã.

Com Antônio Brand aprendemos muitas coisas, além de tomar chimarrão, primeiro nas reuniões do CIMI, depois nos eventos acadêmicos. Aprendemos também a tratar os “bobalhões” preconceituosos. No momento em que sentimos uma falta danada dele, cabe lembrar aqui Dom Pedro Casaldaliga, bispo de São Felix do Araguaia que numa entrevista publicada no Porantim, recitou um poema de sua autoria – Profecia Extrema, com o qual nos despedimos do fiel amigo dos índios:

– Com a morte se fará verdade a minha vida, por fim terei amado.

*José Ribamar Bessa Freire é professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO).

http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog/2012/07/08/antonio-brand-amigo-dos-indios/

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