A cooperação brasileira em um mundo em transição

Por Fátima Mello – FASE

Nos anos recentes o sistema internacional tem passado por transformações que abrem a possibilidade de que uma nova ordem global possa emergir. Dos escombros da crise fulminante que está atingindo o coração do sistema emergem novos atores buscando disputar um lugar central nas saídas possíveis para a crise e os rumos que poderão ser desenhados para a nova ordem. As tendências da cooperação Norte-Sul e Sul-Sul, e da cooperação brasileira nesse contexto, são parte da dinâmica geral de um sistema internacional em transição e das novas diretrizes de política externa que os governos estão adotando para se reposicionarem na arena global.

As incertezas quanto aos rumos de uma nova geopolítica global são imensas: haverá uma reconcentração de poder em um novo núcleo decisório restrito e legitimado pela participação dos chamados emergentes? O mundo tende a um novo multilateralismo apoiado em arranjos regionais e/ou em bases democráticas e de uma nova agenda? A crise em curso nos países centrais resultará em um colapso do modelo tradicional de cooperação Norte-Sul e dará lugar a novas formas de cooperação?

Os chamados países ou “economias” emergentes movem-se nesse terreno de incertezas buscando maximizar sua presença em espaços globais e regionais de negociação e concertação, conscientes que a insuficiência dos arranjos existentes e a crise que afeta as economias dos países industrializados ocidentais deixa brechas abertas para a ocupação de espaço. A presença e influência global e regional do Brasil crescem. O país participa de
diversas coalizões, algumas com agendas mais abrangentes e de natureza política, como as formações regionais (Mercosul e Unasul), o G20, IBSA, BRICs, e outras mais focadas em agendas temáticas, como os BASIC para negociações sobre mudanças climáticas e os acordos de livre comércio bilaterais e birregionais.

Como braço e desdobramento de uma política externa que desde 2003 se caracteriza por uma forte pró-atividade – com a liderança na criação do G20 da OMC, na desconstrução da ALCA, na formação de coalizões regionais e Sul-Sul e na participação no G20 financeiro – a cooperação brasileira avança sobre estas brechas de disputas em aberto. O Brasil deixou de ser receptor da cooperação e passou a ser doador; embora ainda pequena se comparada aos fluxos da cooperação Norte-Sul, a cooperação brasileira cresce rapidamente a cada ano em volume de recursos e de iniciativas, porém ainda sem uma diretriz clara.

Este texto pretende explorar algumas possibilidades e desafios para a incidência das organizações e movimentos sociais brasileiros sobre a cooperação brasileira, visando que a mesma venha a se tornar uma política pública que reflita uma agenda democraticamente construída a nível nacional, e que venha a incluir no centro de sua estratégia a agenda dos direitos humanos, da justiça ambiental, da segurança e soberania alimentar e energética.

Alguns desafios para a incidência da sociedade civil sobre a cooperação brasileira

Como desdobramento da mudança do papel do Brasil no sistema internacional, as organizações e movimentos sociais brasileiros estão passando por um período de profundas transformações e exigências de mudanças em suas estratégias. O fato do Brasil deixar de ser receptor e passar a doador passa a exigir que as organizações e movimentos sociais brasileiros mudem substancialmente suas formas de ação. A grande maioria de nossas entidades foi criada em um contexto de resistência contra as políticas e programas do FMI, Banco Mundial, OMC, os tratados de livre-comércio, a ALCA, o que mantinha um ambiente muito favorável à unidade contra tais políticas, acordos e instituições. A maioria de nossas campanhas nos colocava como vítimas (muito embora esse tenha sido sempre um tema controverso no nosso campo, pois muitos de nós argumentavam que o Brasil sempre teve papel ativo frente a estes processos, e que os mesmos espelhavam as diretrizes de política doméstica, tanto é que muitos deles foram esvaziados quando houve mudanças de rumo ao longo do governo Lula). A resistência nos unificava e produzia campanhas e redes que aglutinavam a todos. Porém o quadro começou a se complexificar quando, por exemplo, o BNDES passou a ser uma instituição com maior peso do que o BID e o Banco Mundial no financiamento a projetos de infraestrutura dentro e fora do país. A medida que a política externa brasileira passa a ter um papel mais central no cenário regional e global, e que a cooperação e os bancos e instituições públicas passam a atuar em consonância com a política externa, a fragmentação começa a ser a tônica entre as organizações da sociedade civil. As dinâmicas políticas domésticas – alguns atores sociais sendo mais próximos do partido de sustentação do governo, outros mais críticos – acaba por posicionar de forma diversificada os atores da sociedade civil frente à cooperação brasileira. Isso dificulta ou no mínimo complica as possibilidades de ação coletiva e de incidência efetiva sobre os rumos da ação externa do Brasil. O fato é que agora o centro da disputa ocorre em torno das políticas formuladas dentro do país e, portanto, as organizações e movimentos sociais estão desafiados a se organizarem para atuar e incidir sobre esta agenda.

Este cenário remete ao debate de fundo sobre o modelo de desenvolvimento do país e a exportação deste padrão através da cooperação. A opção por uma combinação entre desenvolvimentismo, reprimarização da produção e por uma inserção externa fortemente ancorada na exportação de recursos naturais define claramente o perfil das exportações do país, das operações do BNDES dentro e fora do país e da atuação brasileira em coalizões Sul-Sul. No caso da cooperação, refletindo as contradições e tensões existentes na política doméstica entre a agricultura familiar e camponesa e o agronegócio, o Brasil implementa programas de cooperação que combinam num mesmo país receptor, por exemplo, expansão de monocultivos de etanol e soja e programas de combate à fome por meio de apoio à produção de alimentos e à segurança alimentar. É preciso conferir, por meio da análise de casos concretos, como está ocorrendo a convivência entre estas diretrizes. A cooperação brasileira estaria exportando suas políticas públicas e, junto, seus conflitos domésticos?

É preciso examinar também como a cooperação brasileira está se movendo frente ao forte processo de internacionalização das empresas brasileiras. Estaria o Brasil replicando em seus programas de cooperação o padrão da cooperação Norte-Sul, onde a chamada ajuda chega atrelada à expansão dos interesses econômicos do país doador e de suas empresas? Um dos desafios para a incidência das organizações sociais será pressionar para que os erros cometidos pela cooperação Norte-Sul não se repitam na cooperação brasileira. Entre os muitos erros destaca-se o fato da cooperação Norte-Sul ter sido marcada por condicionalidades, atrelamento da cooperação aos interesses econômicos e culturais dos doadores e de garantir o fornecimento de recursos naturais, além da sua submissão à agenda da segurança. As organizações sociais terão como desafio disputar as diretrizes da cooperação brasileira para que ela seja orientada pelos princípios da não-intervenção e da não-adoção do padrão de desenvolvimento do doador [1].

O crescente papel do Brasil nos países do Sul, sobretudo na América Latina e África, vem sendo conduzido por duas vias principais: pela cooperação, que vem se orientando por um padrão de exportação de políticas públicas domésticas; e por operações internacionais de instituições e bancos públicos, o principal deles o BNDES, que orienta seus investimentos externos ao suporte à internacionalização das empresas brasileiras. Uma questão a ser examinada é se estas duas vias se encontram e como, e se seriam convergentes ou contraditórias. A cooperação brasileira, repetindo um dos erros da cooperação Norte-Sul, estaria atuando como linha auxiliar e de suporte à expansão dos interesses empresariais e privados de grandes corporações nacionais?

Para enfrentar estas e muitas outras questões relacionadas à cooperação do Brasil uma pré-condição ainda não foi conquistada. O acesso à informação ainda é muito insuficiente, refletindo a tradição brasileira de manutenção de sua política externa encapsulada como política de Estado, um Estado com forte herança do período ditatorial, cuja tendência à abertura de informações em moldes republicanos tem sido menos percebida nos setores considerados do “núcleo duro”, como é o caso da área econômico-financeira e da política externa. Não existe um sistema público de informações nem sobre a cooperação nem sobre as operações internacionais de atores decisivos para a inserção externa do Brasil, como é o caso do BNDES.

O Brasil ainda não instituiu uma instância de coordenação e processamento da cooperação do tamanho que o desafio e ampliação recente requerem, e portanto os mecanismos de disponibilização de informações, monitoramento e avaliação são frágeis ou inexistentes. São poucos e incipientes os estudos e esforços de mapeamento e consolidação de diagnósticos e tendências [2]. Frente a esse quadro é claro que a cooperação brasileira está longe de ser uma política pública, aberta ao debate com a sociedade, baseada na transparência e no controle público, e que seja fruto das legítimas disputas e interesses existentes na sociedade. O Brasil ainda não dotou seus órgãos de formulação e execução da cooperação destes atributos. Não há dúvida que no caso da cooperação brasileira, o fato da mesma incluir diversos atores (governos locais, diferentes ministérios, ONGs) torna ainda mais premente a necessidade de transparência, coordenação e participação social.

Este cenário torna ainda mais necessário e urgente que as organizações da sociedade civil criem mecanismos de monitoramento, demandem transparência, informações, participação e consulta junto às instâncias formuladoras de diretrizes, políticas e programas. É preciso monitorar, incidir e construir atores sociais coletivos capazes de disputar os rumos da cooperação brasileira.

Somado a isso é preciso ressaltar que a cooperação Norte-Sul está mudando suas estratégias no país – muitos falam de crise e retirada inexorável do Brasil, enquanto outros apontam um processo de reconfiguração política, de concentração, de definição de novas prioridades e focos e de priorização do setor privado em detrimento das ONGs e movimentos sociais, como argumenta Vera Masagão [3]. O fato é que tais mudanças exigem das organizações brasileiras uma drástica mudança em seus padrões de financiamento. Em meio a este cenário, enquanto inúmeras entidades brasileiras encontram-se em crise de financiamento, grandes ONGs internacionais estão abrindo escritórios e/ou ampliando seus programas no Brasil, visando não apenas incidir sobre o papel do Brasil no mundo como também trazer sua expertise em captação de recursos para o país e passar a arrecadar entre instituições e cidadãos brasileiros. As entidades brasileiras, ao invés de terem uma reação defensiva devem acolher o desafio de aprenderem a se mover no novo contexto e fazerem a transição para novos padrões de financiamento, estabelecendo estratégias múltiplas de captação – incluindo instituições públicas e parceiros internacionais – e convidando os parceiros internacionais que estão chegando a compartilharem seus conhecimentos e reciprocamente.

Combina-se a este conjunto de desafios a necessidade de constituição de amplas alianças Sul-Sul entre organizações e movimentos sociais que visam incidir sobre as políticas de cooperação de seus respectivos países. No caso da cooperação Norte-Sul, durante décadas mantivemos parcerias entre entidades do Norte e do Sul que buscaram realizar esta incidência e aproximar as políticas de cooperação do Norte das necessidades e demandas sociais dos países receptores. Esta teia de alianças foi um dos importantes fatores na conformação do que hoje conhecemos como movimento cidadão global, baseado na solidariedade e na busca da justiça a nível global. Precisamos colher os aprendizados desta trajetória e aproveitá-los para aprofundar alianças Sul-Sul que visem objetivos semelhantes, agora aplicados à cooperação Sul-Sul. Isso requer uma nova geografia global de relações e articulações do universo das organizações e movimentos sociais, que ao invés de substituir as vias anteriores deverá fazer um percurso ainda mais complexo pois deverá, para ser condizente com um mundo em transição, combinar mais amplamente as alianças Norte-Sul com as Sul-Sul, as regionais e bilaterais, e as baseadas em agendas setoriais e específicas. Se antes já havíamos constituído este caminho de uma teia rica e diversificada de relações globais, agora é hora de aprofundar esta dinâmica.
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[1] Seminário Relações Sul-Sul: Coalizões Políticas e Cooperação para o Desenvolvimento, junho de 2011, Rio de Janeiro.

[2] Importantes iniciativas para reverter este quadro são o mapeamento do IPEA – <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/Book_Cooperao_Brasileira.pdf> e o catálogo da ABC sobre a cooperação brasileira na África – <http://www.abc.gov.br/download/CatalogoABCAfrica2010_P.pdf>

[3] Ribeiro, Vera Masagão – “Alô, alô, Brasil com W”, Le Monde Diplomatique Brasil, Encarte Especial, Agosto de 2011.

 

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