Mais uma reverência a Clementina de Jesus

Werinton Kermes lança neste mês o documentária sobre a cantora; vídeo, feito com recursos próprios (custou R$ 10 mil), será distribuído gratuitamente a escolas e bibliotecas interessadas

Maíra Fernandes

Para o cantor e compositor João Bosco, Clementina de Jesus “nasceu há mais de dez mil anos”. Não chega a tanto. “Quelé”, como era carinhosamente chamada, nasceu há 110 anos, em 1901, no bairro do Carambita, periferia de Valença, no sul do estado do Rio de Janeiro, e morreu há 24 anos. Mas o que Bosco tenta salientar em seu relato nada tem a ver com a idade cronológica. “Ela nos liga aos nossos antepassados, com o que temos de mais antigo em nossa história”, reforça ele sobre a ancestralidade africana difundida por Quelé, em depoimento ao documentário Clementina de Jesus – Rainha Quelé, dirigido por Werinton Kermes, e que deve ser lançado em Sorocaba no fim do mês.

Antes de estrear na cidade, o documentário será apresentado na próxima semana, na região nordeste, onde foi selecionado para os festivais de Olinda e Salvador. Além de João Bosco, outros músicos como Paulinho da Viola, Mônica Salmaso, Cristina Buarque, Carlinhos Vergueiro e Martinho da Vila também participam da obra, que em mais de 50 minutos apresenta Quelé sob as lembranças dessas personalidades, somadas a cenas cotidianas da cantora. O fio condutor é o livro homônimo do produtor cultural Heron Coelho, com roteiro de Mirian Cris Carlos e edição de Marcelo Domingues.

O projeto não é tão recente, começou há seis anos, quando Kermes iniciou a pesquisa. O processo longo para a conclusão é explicado por Kermes. “O documentário foi feito em doses homeopáticas e foi tudo com recursos próprios, um trabalho que eu e a equipe fomos fazendo dentro das nossas condições”, fala ele sobre o projeto que custou aproximadamente R$ 10 mil. “Ele será distribuído gratuitamente para escolas, bibliotecas e entidades que requisitarem”, fala ele.

Além da questão de dificuldade em conseguir incentivos financeiros para realizar a produções, a equipe ainda teve que driblar outro entrave para concluir o documentário: a família de Clementina. São apenas dois netos vivos, que demoraram para entender qual era a proposta dos produtores. “Quem assina o documentário é a Associação Cultura Votorantim e eles confundiram que se tratava de algo referente à empresa Votorantim. Apenas agora eles entenderam que uma coisa não tem nada a ver com a outra e que não ganharemos um tostão com o documentário”, relata Kermes.

Música da alma

Arestas devidamente aparadas, finalmente o documentário “um trabalho mais jornalístico do que qualquer coisa”, explica Kermes, chega ao público. A reportagem teve acesso ao documentário que só foi apresentado, até o momento, dentro do quilombo São José da Serra, em Valença, considerado como berço do jongo, e que fica no município que a jongueira e sambista Clementina nasceu, em um dia de festa para os pretos-velhos.  Além das cenas e dos depoimentos sempre emocionados dos entrevistados, vale a pena se atentar para a música “Lamento Negro” do clipe final da obra, feita exclusivamente pelo Núcleo de Samba Cupinzeiro de Campinas para o documentário.

Para os mais atentos, é fácil notar semelhança entre a obra recente com um outro trabalho premiado de Kermes, o documentário “João do Vale – Muita Gente Desconhece”, de 2005. E o diretor explica: “Era um desejo de continuar o trabalho de resgate da música popular brasileira, que tem essa questão da negritude, então acaba sendo continuidade do trabalho iniciado com o João do Vale”. Tanto João quanto Clementina eram negros, músicos, de origem pobre e que morreram também pobres.  No trabalho atual, o que sobressai é a questão das heranças africanas no Brasil, já que Quelé entoava cantos e “grunhidos” muito similares às linguagens africanas, disseminadas nos quilombos.

Em uma reportagem que consta no documentário, Clementina explica sua origem: filha de pai que veio “da Nigéria, Dakar, sei lá…Senegal, do Senegal!” e de mãe fluminense e “misseira”. Sua herança é sentida em seu canto, que o próprio João Bosco tenta esclarecer: “Os sons que ela emitia não davam para ser escritos, a coisa era muito oral.” Não por menos, uma das lembranças de Paulinho da Viola é quando Clementina se apresentou no Festival da Arte Negra, em Dakar, e ao começar a cantar, levou o público ao delírio e foi ovacionada o tempo todo. Para o músico, houve de imediato uma identificação do público senegalês, com os cantos entoados por Clementina, além da presença e toda o magnetismo da cantora. “Era uma cantora, uma preta-velha, uma mãe-preta”, classifica Martinho da Vila.

Mônica Salmaso sintetiza a “aura” de Clementina também no campo para além do secular, pois entende que ela não cantava música e sim oferecia a música ao público. “Isso lhe era sagrado”, reforça.

Súditos da rainha

Diferentemente do que ocorreu com as solicitações de depoimentos para o documentário sobre João do Vale, Kermes conta que não houve dificuldade alguma em tratar com os artistas para falarem sobre Quelé. Pelo contrário, o próprio João Bosco, um dos melhores depoimentos do vídeo, chegou a alterar sua agenda de compromissos para participar da gravação. Mas não é de se assustar a atitude do músico que revela: “ela extraiu de mim coisas que não sabia que eu tinha mas que havia herdado geneticamente dos meu antepassados”, explica sobre a influência da música africana em suas composições após o contato com Quelé. Não por menos, ao longo do documentário fala-se em um “respeito religioso” desviado à Clementina.

Essa “aura” que envolvia a “rainha”, que por muito tempo foi empregada doméstica e foi descoberta por Hermínio Bello de Moraes em 1963, já com 60 anos, não era sentida apenas por músicos, que ao encontrá-la faziam reverências, como Gilberto Gil. Ou mesmo ligavam para saber sobre seu estado de saúde, como Roberto Carlos. Também atingiu o ainda jovem Kermes, em meados da década de 70, quando enfrentou forte chuva na cidade para assistir ao show que Clementina de Jesus faria no Recreativo, em Sorocaba. A chuva assustou o público, que não compareceu. Mesmo assim, ela cantou umas duas músicas para ele e mais uns amigos, que esperavam o show. “Me apaixonei por ela na hora”, declara ele, que desde criança, influenciado pela sua origem, trabalha a questão da cultura negra em sua arte.

Logo no início do documentário, uma frase sintetiza a intenção da produção: “É uma obra composta coletivamente. Pela necessidade de se resgatar a musicalidade de Clementina de Jesus e pelo dever de exaltação à memória negra no Brasil”.

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