Bispo do Xingu vê em Belo Monte a “última punhalada no coração da Amazônia”

Temeroso em relação ao “efeito dominó” que a construção da usina pode representar, Dom Erwin Krautler afirma que outras barragens poderão ser feitas e que a situação pode se agravar

São Paulo –  Na luta contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte há mais de trinta anos, Dom Erwin Krautler, bispo do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), fala à Rede Brasil Atual sobre sua batalha. Em tom duro, com críticas pesadas ao governo federal e acusações de omissão de informações e de falta de diálogo, ele se considera em meio a uma batalha para levar o debate à sociedade e aos governos.

A preocupação do religioso e ativista é que se calcule o tamanho do impacto de uma obra como a de Belo Monte sobre povos indígenas, comunidades ribeirinhas, população que já vive sob ausência do Estado e também sobre a Amazônia. Os motivos de temor de Dom Erwin Klautler não param no projeto almejado atualmente pelo Executivo federal. “Eu não acredito que será feita apenas uma barragem, como prometem. Não vão investir tantos bilhões por uma obra que, durante meses e meses, não funcionará. E o que mais me preocupa é esse efeito dominó. Belo Monte significa a última punhalada no coração da Amazônia”, lamenta.

Neste sábado (20), ativistas em pelo menos 30 cidades do mundo, promovem atos contra a construção da hidrelétrica no rio Xingu, no Pará. Planejada desde o fim da década de 1970, o projeto alcançou licença ambiental e o governo brasileiro realizou licitação para a obra. Desde a gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e na administração da atual presidenta Dilma Rousseff, a hidrelétrica é considerada fundamental para dar conta da demanda de energia elétrica crescente no país.

Dom Erwin afirma que tinha esperanças de que o atual governo pudesse “acordar antes que maiores estragos ocorresem”, mas declinou da tentativa de um diálogo com as autoridades federais quando viu que os interesses postos como argumentos da viabilidade da construção não seriam derrubados ou sequer minimizados. Confira a entrevista:

RBA – Como bispo na região do Xingu e defensor dos povos que aí vivem, na sua batalha contra a construção da usina, o senhor já tentou dialogar com o governo?

Para ser franco não houve diálogo nenhum. Conseguimos uma audiência na época do Lula, mas não foi um diálogo, foi um monólogo. O setor energético do governo simplesmente decidiu que a construção da usina seria viável e quem sismasse ou duvidasse da viabilidade de Belo Monte não teria argumentos suficientes. Lula havia prometido que não aprovaria goela abaixo de quem quer que seja, mas isso foi uma mera promessa. Nesse novo governo eu tentei falar com a presidenta Dilma e me indicaram o ministro Gilberto Carvalho (da Secretaria Geral da Presidência), mas dias antes da audiência marcada ele falou em alto e bom som que Belo Monte tem de sair e que não levaria até à presidenta pedidos contrários à usina. E então eu declinei do convite, porque já entendi que ele não estaria disposto a conversar.

RBA – Como se sabe, as obras nos canteiros começaram. Como vivem hoje os moradores da região do Xingu, tanto indígenas, como ribeirinhos?

As máquinas já chegaram em vários pontos e isso já mostra que a vizinhança de um canteiro de obra será altamente prejudicada nas suas organizações, na sua vida de aldeia e também na sua locomoção. A segunda coisa é que, com a barragem, a água será cortada para eles. Isso ainda não foi falado e o governo insiste em que nenhuma aldeia indígena será afetada, porque elas não serão inundadas. Mas acontece que será cortada a água (por causa dos desvios do curso do Xingu) para todas essas aldeias e também para os ribeirinhos que estão rio abaixo da barragem.

RBA – O governo sustenta que nenhuma comunidade será afetada. Mas caso seja, como o senhor citou, para onde essas pessoas iriam? E os índios, como ficariam fora de seu ambiente?

Absurdo é reassentar comunidade indígena. Arrancá-los de suas terras? Isso é contra a Constituição. Para isso, precisa de uma decisão explícita do próprio Congresso. O governo não tem o poder de fazer isso. Ele pode reassentar outras famílias que não são indígenas, mas, também, até hoje ninguém sabe para onde vão ser levadas essas famílias. Em Altamira (PA, a 740 quilômetros de Belém) em torno de 30 mil pessoas serão transferidas e, até agora, ninguém sabe para onde. E as obras já estão lá, começando. O governo está ignorando a situação cruel que esse povo está passando. O povo está saindo e procurando outras terras e invadindo e o governo não está nem aí.

RBA – Em relação às comunidades indígenas, que só no Xingu são 24 comunidades, onde entraria o trabalho da Fundação Nacional do Índio (Funai) na defesa das comunidades?

As duas autarquias, tanto o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) como a Funai agem sob pressão ou concordam com aquilo que o governo predispõe. Ou (os diretores) são exoneradas.

RBA – Sobre o episódio em que uma TV australiana entrevistou o presidente do Ibama e ele criticou a jornalista porque a Austrália teria acabado com os aborígenes, como o senhor viu a situação?

Isso é um vergonha! O governo não pode manter um cidadão com um função tão especial e tão importante no Brasil e que pense como ele pensou e que tenha esse tipo de conversa. Sujou a imagem do Brasil lá fora. Sujou mesmo! Imagine tudo isso que ele falou e como repercutiu na Austrália. Um homem público e ainda à frente da entidade que ele representa e sujando a imagem do nosso país. O que é isso?

RBA – Em abril deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), entidade ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), solicitou ao governo brasileiro que paralisasse as obras da construção da usina. O governo não cumpriu a sentença. Como senhor vê essa conduta?

Nós lutamos pela inscrição dos direitos indígenas na Constituição brasileira. A Constituição de 1988 é exemplar porque contempla os direitos indígenas, suas terras, suas organizações em comunidade, sua língua, suas manifestações e tudo mais. Foi um grande vitória. Agora, infelizmente, depois de tantos anos, começa-se a arranhar essa Constituição e a fazer de conta que ela não existe. O Brasil está perdendo sua imagem: a de um país que, desde 1988, respeita os direitos dos autóctones, que foram os primeiros habitantes dessa terra. Agora, passa por cima dessas leis com um rolo compressor em uma política de vale tudo. Esse governo está colocando o Brasil em uma situação delicada, por não cumprir sua própria constituição.

Eu penso que através da imprensa e dos meios de comunicação o povo tem de ser alertado. Muto do que se mostra é falácia. A gente via, por exemplo, que Belo Monte era para evitar o apagão. Belo Monte vai mais servir às mineradoras, a energia vai servir só pra transformar alumínio para ser exportado. Temos de colocar a verdade nua e crua, pois o governo a está omitindo. Eles estão insistindo em coisas que não se podem provar.

RBA – A cidade de Altamira deve ser uma das que mais vai sofrer impactos da construção de Belo Monte. Como está a situação?

O povo de Altamira vive em situação caótica, porque mal as máquinas chegaram e já há um alvoroço na cidade. Os aluguéis aumentaram assustadoramente. Há invasões de terra porque o povo não tinha mais pra onde correr. Altamira é uma cidade de 105 mil habitantes que está na iminência do colapso total, inclusive em termos de saúde pública, transporte e segurança.

RBA – Como o senhor vê o futuro de Belo Monte e da Amazônia como um todo?

Eu não acredito que será feita apenas uma barragem. O Lula emitiu um decreto que será construída apenas uma barragem. Seria um absurdo financeiro: porque investiriam tantos bilhões por uma obra que, durante meses e meses, não funcionará? Acredito que serão feitas outras três barragens e, com isso, será sacrificado todo um rio. O que mais me preocupa é esse efeito dominó. A própria EPE (Empresa de Pesquisa Energética) admite que, nas 61 hidrelétricas planejadas para o Brasil, a maioria delas será na Amazônia, com consequências para comunidades indígenas e áreas de reserva florestal. Isso é pra mim o golpe fatal. Belo Monte significa a última punhalada no coração da Amazônia. E o Brasil inteiro é responsável por isso, porque a Amazônia tem uma função de regular o clima. E todo mundo vai ser prejudicado.

http://www.redebrasilatual.com.br/temas/ambiente/2011/08/para-bispo-do-xingu-belo-monte-significa-a-ultima-punhalada-no-coracao-da-amazonia

 

 

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