Dandara lutará até a vitória e seguirá lutando

Frei Gilvander Moreira* e Ir. Maria do Rosário Carneiro**
Adital – 3a Marcha de Dandara até o centro de Belo Horizonte

Eram 3:30h da madrugada do dia 5 de julho de 2011. Na Praça da Assembleia, ao lado do Centro Comunitário da Comunidade Dandara, no Céu Azul, região da Nova Pampulha, –quando o céu ainda estava salpicado de estrelas– região não muito distante da suntuosa e megalomaníaca Cidade Administrativa, em Belo Horizonte, MG, Brasil, um belo horizonte se ensaiava para nascer – não apenas mais um dia, mas um dia histórico de luta das 950 famílias dandarenses que, obstinadamente, lutam há 2,3 anos não apenas pelo direito à moradia, mas por moradia digna e pelo direito de se viver com dignidade.

Envolvidos pelo frio e pela umidade de uma noite junina e pelas luzes cintilantes dos bairros circunvizinhos da capital mineira, eram mais de 2 mil pessoas reunidas: a Família Dandara, com seus filhos e filhas dandarenses. Imagem inesquecível que certamente ficará na retina de todos/as que se reuniram ali.

Em uma rápida Assembleia Geral, sem microfone, todo o povo repetia as orientações dadas pelas lideranças para a 3a Marcha de Dandara que estava para se iniciar até o centro de Belo Horizonte. De repente, após rezar e orar a oração da fraternidade, o Pai Nosso, com a Bênção do Deus da vida, em duas filas bem organizadas, os nove grandes grupos Dandara –do 1 ao 9- começaram a marchar. Uma faixa na frente anunciava o motivo da Marcha: “Negociação, sim; despejo, não.” Mais de quinze faixas foram carregadas, mantendo um mínimo de sete metros entre uma e outra. A caminhada foi permeada de muita animação, solidariedade mútua, cantos, oração do Pai Nosso (de vez em quando), gritos de luta. Através de faixas e em gritos de luta, durante 10 horas de marcha um raio de luz fez o horizonte da capital mineira ficar mais belo. Muita gente ouviu, em alto e bom som: “950 famílias de Dandara já construíram com fé, coragem e muita luta 800 casas de alvenaria.” “Não aceitaremos ser despejados!” “Se a polícia for nos despejar, haverá massacre, pois resistiremos até o fim defendendo nossos direitos.” “O terreno ocupado pela comunidade Dandara estava abandonado há quatro décadas.” “A construtora Modelo devia (ainda deve?) mais de 2 milhões de reais de IPTU.” “Proprietário que não cumpre a função social perde a propriedade.” “A construtora Modelo era dona do terreno, não é mais, porque não cumpria a função social, condição indispensável ao direito de propriedade previsto na Constituição.” “Dandara luta pela construção de uma cidade (e sociedade) que caiba todos e todas.” “Povo organizado jamais será pisado.” Um canto embalava todos/as os/as marchantes. Dizia assim: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira, onde é que eu vou morar. Eu não tenho paciência de esperar, ainda mais com sete filhos onde é que eu vou morar…” (bis).

Alguns automóveis da Rede de Apoio carregavam crianças de colo e idosos que se cansaram na caminhada. Aos trabalhadores que, surpresos, olhavam a marcha, a família Dandara dizia: “Não fique aí parado, venha cá pro nosso lado”.

Uma senhora, em plena Av. Antônio Carlos, exclamou apontando para um exuberante pé de Ipê, ameaçado pelas obras da COPA: “Até o Ipê floriu para nos receber!”.

No portão de entrada da UFMG (Universidade de Minas Gerais), na Pampulha, houve 15 minutos de parada para um pequeno descanso. Algumas pessoas da Rede de Apoio partilharam 1.500 pães. Suados já por 12 quilômetros de marcha, todos se fortaleciam não apenas com a energia do pão, mas com o odor da solidariedade de quem comunga com a luta pela construção de uma sociedade que caibam todos.

Sem dinheiro, não tivemos como alugar um carro de som. A metade da marcha foi no gogó. Todos cantando e repetindo os gritos de luta. Mas eis, que já na Lagoinha, uma Kombi de som do Sind-UTE/MG (Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais) chegou e ofereceu o microfone para ampliar o grito que estava sendo inscrito na história de Belo Horizonte.

O viaduto ao lado da rodoviária foi completamente tomado pelo povo de Dandara. Ficou pequeno para a multidão que se manifestava clamando por moradia e por dignidade. Vários dandarenses que se revezavam no microfone diziam:

“Queremos apenas ser respeitados na nossa dignidade. Não aceitaremos jamais o despejo. Com tanta gente sem casa e com tanta casa sem gente, será uma grande covardia passar o trator da tropa de choque em cima das 800 casas de alvenaria que construímos com sangue e suor. Para construir as 800 casas de Dandara já investimos mais de 10 milhões de reais, cerca de 10 mil reais por casa. Parte desse dinheiro foi conquistado em empréstimos bancários para ser pago em 2, 3 ou 4 anos. Destruir nossas casas e ficarmos, além de endividados, na rua? Jamais aceitaremos isso. Preferimos morrer na luta que voltar a sobreviver na humilhação da rua, em áreas de risco ou crucificados pelo aluguel. Queremos negociação, sim; despejo, não! Até a Presidenta Dilma, ao receber dom Joaquim Mol e frei Gilvander, se comprometeu em aplicar dinheiro do Governo Federal para ajudar a comunidade Dandara. Aliás, a presidenta, ao olhar as fotografias de Dandara, disse: “Aqui já é um bairro. Precisa é ser urbanizado. Aqui não é um aglomerado. Pode enquadrar Dandara no programa de urbanização de vilas. Assim vocês podem receber dinheiro do Governo Federal para melhorar as casas já construídas e construir as que faltam. “Mas é preciso que o prefeito ou o governador desapropriem a área…”

Quase toda a Imprensa de Belo Horizonte apareceu na marcha, mas salvo raras exceções, deram a versão que interessam ao status quo. Disseram à exaustão que “os sem-casa da ocupação Dandara estavam atrapalhando o trânsito.” A quem se guia pelo senso comum, cego guiando cego, cabe recordar que, em última instância, quem atrapalhou o trânsito foi o prefeito Márcio Lacerda, que numa insensatez clamorosa persiste numa postura arrogante não admitindo dialogar com as Comunidades Dandara, Camilo Torres e Irmã Dorothy. O Tribunal de Justiça (TJMG) também atrapalha o trânsito, porque ao conceder reintegração de posse à Construtora Modelo desrespeitou a Constituição brasileira que não defende direito absoluto a propriedade, mas condiciona o direito a propriedade ao cumprimento da função social da propriedade. Logo, se o terreno estava abandonado há quatro décadas e nem IPTU a construtora estava pagando, é óbvio que, segundo a Constituição, ela perdeu a propriedade. Por isso consideramos a reintegração de posse, definida pelo TJMG, algo inconstitucional, ilegal e imoral. É uma clara ofensa a vários princípios constitucionais, tais como, respeito à dignidade humana, função social da propriedade, direito a moradia, republicanismo etc.

A Praça Raul Soares, aliás, bem cuidada (por que se cuida mais das praças centrais da cidade do que dos pobres das periferias?), acolheu os 1.300 caminhantes que, suados e cansados, mas jamais desanimados, repousaram um pouco antes de partilhar um almoço feito com muito amor por trabalhadoras que apóiam Dandara.

Às 13:00h estávamos chegando na frente do Fórum Lafaiete, na Av. Augusto de Lima, no Barro Preto, centro da capital mineira. Metade da avenida foi toda tomada pela família Dandara que se manifestou ininterruptamente até às 17:00h.

Moradores/ras de Dandara se revezaram no microfone dando seu testemunho sobre a justeza da luta de Dandara. Cantos e gritos de luta entremeavam a manifestação de todos. Quanta sabedoria e quanta coragem manifestada! “Que sabedoria é essa que vem do meu povo?! É o espírito Santo agindo de novo.” Ou: “Pai, eu te louvo, porque escondeste essas coisas aos poderosos e as revelastes aos pequeninos”, gritava feliz da vida o nosso coração.

Uma criança dandarense, a Ingrid, ao lado de outras crianças, pediu o microfone. Cantaram “Oh Dandara, oh Dandara oh, a nossa luta aqui vale mais que ouro em pó…” e discursaram conclamando todos a lutar até o fim pelos nossos direitos. Dizia

“Antes de Dandara, a gente vivia humilhado. Na Dandara, levantamos a cabeça e vivemos com dignidade. Lá vivemos em comunidade. Não aceitaremos jamais despejo. Quero fazer outra denúncia aqui: A Escola estadual Manoel Costa disse para minha mãe que eu não poderia estudar lá por falta de vaga. Outra colega minha foi lá e conseguiu vaga após eu receber um não. A maioria das crianças da Dandara está indo estudar em escolas de Ribeirão das Neves. Temos que subir morro e descer morro para chegar à escola. Estudamos, porque temos interesse e nossos pais nos incentivam. Mas a diretora precisa fazer uma reforma na escola e o Governo Estadual demorou mais de um semestre para repassar o dinheiro…”

Às 17:00h, saíram de dentro do Fórum os advogados de Dandara e três lideranças da Comunidade que tinham participado da Audiência presidida pelo juiz da 20a Vara Cível. Ao sinalizar com o dedo polegar “positivo” o povo explodiu em festa, pois entendia que mais uma conquista tinha sido agarrada naquele dia histórico: 5 de julho de 2011. Os que participaram da audiência explicaram para o povo as propostas encaminhadas. Iniciou-se uma mais uma tentativa de diálogo. Técnicos da construtora, de Dandara, da prefeitura e do Ministério das Cidades se reunirão dia 20 de julho para tentar acordar um projeto para encaixar Dandara em uma das linhas de crédito do Governo Federal. Dia 27 de julho haverá outra reunião entre as partes no Ministério Público e dia 04 de agosto, nova audiência com o juiz. Oxalá se consagre o início de um processo sério de negociação que espante de vez o fantasma do despejo.

O povo voltou para casa e na quarta-feira, às 20:00 h, na Comunidade Dandara, após uma reunião da coordenação em que se avaliou a 3ª Marcha e a Audiência no Forum, houve uma grande Assembléia com toda a comunidade.

Está claro para o povo que a luta continua! Que Dandara seguirá se organizando, participando das reuniões e assembleias, construindo a Igreja Ecumênica, a Creche, suas casas e as pessoas em um contínuo processo de auto-gestão e emancipação libertadora.

Nesta 3ª marcha realizada pela Comunidade Dandara, todas as pessoas que têm ouvidos e olhos puderam ouvir e ver que a Comunidade Dandara é “um outro mundo possível”. Construída com base na solidariedade e na luta por justiça social.

A forma como todo o processo foi conduzido revelou, a todo o momento, a presença do Deus da Vida que segue marchando com seu povo e a experiência da “multiplicação dos pães” de muitas formas foi acontecendo. É a “marcha para a Terra Prometida”. Terra que já foi conquistada e já está habitada pelo povo. Terra que pela Carta Magna do Brasil, a Constituição, já está garantida.

Nestes 2,3 anos Dandara aprendeu ser Dandara. Traz nas artérias o sangue da aguerrida companheira de Zumbi do Palmares, a estrategista. Mulher que lutou pelo fim da escravidão, que sonhou e dançou com a liberdade. O Céu estrelado da madrugada do dia 5 de julho de 2011 que viu o povo de Dandara descer em marcha está confiante, esperando o dia em que o povo de Dandara dará o forte grito de Vitória. Vitória que está sendo conquistada passo a passo, com ternura, fé e resistência.

Belo Horizonte, MG, Brasil, 13 de julho de 2011.

*Mestre em Exegese Bíblica; professor de Teologia Bíblica; assessor da CPT, CEBs, SAB e Via Campesina

**Ir. Maria: Congregação das Filhas de Jesus, Bacharel em Direito

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=58295

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