O frio dói menos que nossas políticas para moradia

Seu mundo cabia em um carrinho de feira – e ainda sobrava espaço, talvez uma reserva de esperança para os dias que virão. Um casaco o protegia do clima de um dígito que fazia em São Paulo. Ao passar por um montinho de pano que, ao que tudo indica, era uma mulher encolhida pelo frio, tirou seu casaco e a cobriu. Ela sorriu e voltou a dormir. Ele seguiu andando, mais aquecido que antes.

A madrugada de hoje foi a mais fria do ano na capital paulista. Oficialmente, registrou-se 6° C na Avenida Paulista, entre às 2h e às 3h. É claro que a temperatura ou mesmo a sensação térmica foi mais baixa que isso em outros pontos da cidade. Se foi duro para quem estava debaixo de cobertores, imagine então para quem perambulava pelo lado de fora?

Há um ano, numa noite fria, moradores de rua se juntavam na fachada de um prédio lacrado no Centro da capital que, tempos antes, havia recebido uma ocupação de movimentos por moradia. Ontem, a cena se repetia: prédios fechados com tijolos deixavam claro que é mais importante alimentar a especulação imobiliária – além de dar abrigo a ratos e baratas – do que permitir que os sem-teto que rondavam por perto pudessem se proteger do tempo.

O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se esses imóveis trancados por portas de tijolos pudessem ser desapropriados e destinados gratuitamente para quem precisa. Mas, ao invés disso, o governo federal investe em programas que facilitam o financiamento de novos empreendimentos (“Minha Casa, Minha Dívida”), quando poderiam estar entregando às famílias de baixíssima renda apartamentos existentes que hoje só servem para cultivar pó. Enquanto isso, Estado e município não têm coragem de enfrentar os grandes latifundiários urbanos. Há prédios que devem milhões de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e poderiam ser alvo do Decreto de Interesse Social, uma vez que permanecem vagos por anos. Mas em uma sociedade cuja pedra fundamental são a intocabilidade da propriedade privada e a possibilidade de lucro e não o respeito à vida isso fica difícil.

A área central de São Paulo é alvo prioritário dos movimentos por moradia por uma razão bem simples: porque já tem tudo, transporte, cultura, lazer, proximidade com o trabalho. Ao longo do tempo, fomos expulsando os mais pobres para regiões cada vez mais periféricas. Eles, que possuem menos recursos financeiros, gastam mais tempo e mais de sua renda com transporte do que os mais ricos que ficaram nas áreas centrais (com exceção dos condomínios-bolha espalhados no entorno, com suas dinâmicas de segregacionismo próprias).

“Se o senhor não está lembrado, dá licença de contar / Aqui onde agora está esse edifício alto / Era uma casa velha, um palacete assobradado / Foi aqui, seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca / Construímos nossa maloca”. Adoniran Barbosa cantou em seus versos um período da história paulistana em que velhos casarões, tornados cortiços ao longo do tempo, foram demolidos para dar lugar aos altos edifícios de bairros nobres, como Higienópolis. Expulsas, as famílias não tinham para onde ir, e instalavam-se nos extremos da periferia.

A cena se repete ainda hoje, mais vagarosamente que antes. Cortiços em regiões retratadas no passado por Alcântara Machado no livro “Brás, Bexiga e Barra Funda” e também nos antes requintados Campos Elísios abrigam dezenas de famílias. Sem o mínimo de saneamento básico, às vezes sem água e sem luz. Mas, apesar das dificuldades, a maioria dos moradores prefere continuar assim, pois transporte é o que não falta e a casa fica próxima ao trabalho – ao contrário do que acontece em bairros da periferia, onde o trajeto até o centro chega a levar três horas, dentro de ônibus superlotados.

José – o nome é fictício, pois o morador não quis se identificar – morava com a mulher, filhos, cunhado e primos em um velho casarão, semidestruído, então propriedade da Universidade de São Paulo, na Rua Havaí, localizada no caro bairro de Perdizes. O local não possuía a mínima segurança, uma vez que as tábuas caíam ao se caminhar pela casa. Mesmo assim, José não arredava pé de lá. “Se sair não tenho para onde ir.” Passaram-se os meses e a universidade mandou demolir a casa. Para onde foram José e o populacho que lá vivia? Ninguém nunca soube dizer. Provavelmente engrossam a densidade demográfica de outro cortiço. Ou passaram frio em algum lugar precário. Que logo seria igualmente derrubado.

E para quem acha que esse padrão só acontece com moradias, vale lembrar que é a mesma lógica tacanha que faz os mais ricos estudarem em universidades públicas e os mais pobres em particulares.

A recuperação da área central de São Paulo não se restringe a uma valorização estética das ruas, edifícios e bens culturais. Inclui também o repovoamento do local, trazendo vida à região, com incentivos para o estabelecimento das classes média e baixa. O que tem sido feito até agora é o contrário: expulsa-se o povão e ergue-se monumentos à música e às artes. Presto!

Sabe o artigo 6o da Constituição Federal que garante o direito à moradia? Então, é mentira. Do mesmo tamanho daquela anedota contada no artigo 7o que diz que o salário mínimo deve ser suficiente para possibilitar “moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”. Função social da propriedade? Por aqui? Faz me rir.

 

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