Quando a língua se transforma em objeto de manipulação ideológica e controle social

Marcos Bagno, doutor em filologia e língua portuguesa, acredita que a discussão sobre as variações linguísticas dos livros do MEC refletem a falta de conhecimento da mídia.

Depois da discussão sobre o conteúdo dos livros didáticos oferecidos pelo governo, em que são apresentados supostos erros de português, o doutor em filologia e língua portuguesa Marcos Bagno é taxativo: a polêmica que envolve o assunto é falsa. Na opinião do especialista, que conversou por e-mail com a IHU On-Line, a mídia seria a grande responsável por criar o debate. “Como a grande mídia é, em bloco, aliada dos grupos dominantes e, portanto, antipetista declarada, o episódio está servindo para se atacar o governo Dilma via MEC”, avalia.

De acordo com seus estudos e experiências, o fato de alguém pronunciar uma palavra de uma forma ou outra nada tem a ver com a constituição da linguagem, “mas sim com uma esfera diferente, que é a da normatização da língua, um fenômeno sociocultural em que a língua se transforma em objeto de manipulação ideológica e controle social”. Além disso, é importante destacar que a constituição do padrão sempre se pautou, tradicionalmente, pela linguagem literária.

Graduado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (1991), Marcos Bagno é mestre em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco, doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor-adjunto do departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília – UnB. Tem experiência na área de Linguística, com ênfase em tradução, sociolinguística e ensino.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor diz que há quinze anos os livros didáticos de língua portuguesa aprovados pelo MEC abordam o tema da variação linguística. Quais são, então, os motivos da polêmica em relação ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) 2011 e dos livros distribuídos pelo MEC? Vai se admitir a pronuncia e a escrita de uma mesma palavra de formas diferentes?

Marcos Bagno – A polêmica é, na verdade, uma falsa polêmica e se deve exclusivamente à ignorância por parte da grande mídia do que se faz em termos de educação linguística no Brasil. Apenas isso. Há também uma questão política: como a grande mídia é, em bloco, aliada dos grupos dominantes e, portanto, antipetista declarada, o episódio está servindo para se atacar o governo Dilma via MEC.

IHU On-Line – As crianças são ensinadas a escrever e a falar de acordo com a norma culta, considerada adequada. Como fica, a partir da “aceitação” da linguagem oral sobre a escrita, essa adequação no mercado de trabalho e nas escolas? Quais os limites disso para a constituição de um idioma padrão?

Marcos Bagno – Não existe nenhuma “admissão da linguagem oral sobre a escrita”. A língua falada e a língua escrita convivem lado a lado no ensino. Evidentemente, como a escrita é uma forma secundária de língua (já que todos os seres humanos falam, mas nem todos escrevem: já nascemos dotados de um aparelho fonador, mas ninguém nasce com um lápis pendurado no dedo), a escola se dedica mais à leitura e à escrita, porque essas atividades não pertencem ao cotidiano da grande maioria dos alunos. A constituição do padrão sempre se pautou, tradicionalmente, pela linguagem literária. Por isso, a norma padrão é tão obsoleta e anacrônica: não se inspira na realidade dos usos, nem mesmo nos usos escritos da literatura contemporânea, mas numa literatura que data de mais de 200 anos.

IHU On-Line – Os conceitos de adequação e inadequação linguísticas estão sendo apropriadamente trabalhados nos livros didáticos? De que tratam esses conceitos?

Marcos Bagno – Os livros didáticos diferem muito entre si no tratamento dessas questões. Alguns fazem um trabalho mais satisfatório, outros menos satisfatório. De todo modo, adequação e inadequação têm a ver com o grau de aceitabilidade que cada pessoa espera obter ao falar e ao escrever. Têm a ver com reconhecer as expectativas dos interlocutores/leitores em determinados contextos de interação e tentar atender (ou não) a essas expectativas. Para isso, é importante o conhecimento da noção de gênero textual, porque cada gênero é esperado em contextos específicos, com finalidades sociais específicas. Daí a importância de trabalhar, na escola, com os mais variados gêneros falados e escritos.

IHU On-Line – Na constituição da linguagem, é aceitável que uma pessoa escreva uma palavra do jeito que ela é pronunciada ou escreva uma frase com a concordância usada oralmente?

Marcos Bagno – A constituição da linguagem é um fenômeno extremamente complexo e sofisticado, que envolve a cognição humana, as interações sociais, a constituição das identidades particulares e comunitárias. O fato de alguém pronunciar assim ou assado ou de escrever uma frase do jeito A ou B nada tem a ver com a constituição da linguagem, mas sim com uma esfera diferente, que é a da normatização da língua, um fenômeno sociocultural em que a língua se transforma em objeto de manipulação ideológica e controle social.

IHU On-Line – Qual o sentido de dar tanta importância para uma convenção, que é o que as palavras são? No caso da palavra ideia, por exemplo, antes era inaceitável escrevê-la sem acento e hoje é admitido. Qual sua opinião sobre as convenções em torno do idioma?

Marcos Bagno – As convenções linguísticas estão no mesmo plano das demais convenções sociais. Da mesma forma como nós regulamos e normatizamos todas as esferas da vida social – do casamento ao modo de se vestir, da construção das casas à numeração dos sapatos etc. -, também o uso da língua, numa sociedade coesa, passa por regulações. No caso da escrita, ou mais restritamente, da ortografia, ela é unificada para que haja uma possibilidade de comunicação mais eficiente entre os milhões de falantes da língua. A ortografia, no entanto, não tem como regular a língua falada. Todos nós escrevemos “porta”, mas sabemos que o segmento sonoro [r] dessa palavra é produzido foneticamente de diversas maneiras em diversos lugares diferentes. A ortografia pode ser uniformizada, mas a fala jamais.

IHU On-Line – Como a escola ensina a linguagem popular na sala de aula? É possível falar em linguagem adequada e inadequada?

Marcos Bagno – Não existe “ensino da linguagem popular na sala de aula”. O papel da escola é ensinar o que as pessoas não sabem. Não é preciso ensinar ninguém a falar do modo “popular”, porque todos já sabem falar assim. O importante, na escola, é ampliar o repertório linguístico dos aprendizes, oferecendo a eles o acesso a outros modos de falar e, principalmente, à cultura letrada.

IHU On-Line – Alguns críticos ao PNLD argumentam que os livros não devem conter erros gramaticais e linguísticos e que devem ser instrumentos para o aluno aprender a norma culta. Que ponderações faz a partir destas críticas?

Marcos Bagno – Esses críticos não merecem muita consideração porque não têm formação específica na área do ensino de língua para poder emitir opiniões abalizadas. Falam da boca para fora, por ter ouvido o galo cantar sem saber onde. Para começar, não existem “erros gramaticais e linguísticos”; essa é uma noção que não faz nenhum sentido para os pesquisadores e teóricos da área. A ideia de “erro” na língua é pura convenção social; não tem nada que ver com o funcionamento da língua propriamente dita. Além disso, o ensino dessa “norma culta” (que ninguém sabe definir o que seja) é parte integrante dos projetos educacionais desde sempre.

IHU On-Line – O senhor defende que se deve abandonar o mito da unidade do português no Brasil. Que alternativas aponta para resolver o “impasse” entre a linguagem escrita e a linguagem oral? Como, em um país heterogêneo como Brasil, deve-se discutir essa questão?

Marcos Bagno – Não existe impasse entre a língua falada e a língua escrita. Acreditar que ele existe é resultado de uma concepção arcaica das relações entre fala e escrita, em que a escrita é considerada um bloco homogêneo e a fala, um universo caótico. Ora, a escrita é tão heterogênea quanto a fala, e a fala é tão estruturada e regular quanto a escrita. As duas modalidades se interpenetram o tempo todo: não existe texto escrito “puro”; toda manifestação escrita é fatalmente híbrida. E a fala também pode apresentar influxos da escrita, sobretudo entre falantes mais letrados e numa sociedade com forte predomínio da escrita.

IHU On-Line – O senhor também argumenta em suas obras que as regras gramaticais do idioma consideradas certas são as utilizadas em Portugal e não correspondem à língua falada e escrita no Brasil. Tantos anos depois da colonização, porque o Brasil ainda adota as regras gramaticais de Portugal? É o caso de o Brasil construir suas próprias regras gramaticais?

Marcos Bagno – Passados 500 anos do início da colonização, o português europeu que foi levado para as diferentes colônias se transformou em outras línguas, exatamente como o latim levado para as províncias do império romano se transformou em várias línguas. O português brasileiro é uma língua muito aparentada ao português europeu, é claro, mas também é uma língua que tem sua própria gramática, sua fonologia, sua morfologia, sua sintaxe própria, etc. Já começamos a produzir gramáticas do português brasileiro que deixam de lado as regras tradicionais e tentam descrever como de fato é a nossa língua.

IHU On-Line – Quais são os mitos que envolvem o idioma português?

Marcos Bagno – São muitos: o mito de que o Brasil é um milagre linguístico por ser um país monolíngue (o que não é verdade: temos mais de 180 línguas faladas em nosso território), de que o português é uma das línguas mais difíceis do mundo, de que existe algum lugar (em geral o Maranhão) onde se fala melhor o português etc., etc. Tudo superstição. Nenhuma dessas afirmações tem sustentação científica.

 

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=57482

 

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