Famílias que vivem sem energia elétrica mostram desigualdade social no “Velho Chico”

Remanso, Casa Nova, Pilão Arcado, Sobradinho, Buritirama e Paratinga – A riqueza da bacia do Velho Chico não esconde a desigualdade social ao longo do vale. O mesmo rio que ajudou a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), maior geradora de energia do país e segunda em transmissão, a registrar lucro líquido de R$ 2,1 bilhões em 2010 – 140% a mais do que os R$ 905,9 milhões apurados em 2009 – é testemunha de homens e mulheres que vivem em casebres de cidades baianas onde a energia elétrica ainda é sonho distante. O parque gerador da Chesf explora outros leitos, como o Parnaíba, na divisa do Piauí com o Maranhão, mas suas principais usinas são movidas pelas águas vindas da represa de Sobradinho, um dos maiores lagos artificiais do mundo, com 4,2 mil quilômetros quadrados.

O aposentado Osvaldo dos Anjos e sua mulher, Noemis Araújo Ramos, moradores da área rural de Buritirama, no sertão da Bahia, vivem a cerca de 40 quilômetros de Barra, onde o leito do rio começa a ganhar a forma da represa de Sobradinho. Apesar da proximidade com o lago, classificado por especialistas como o pulmão das usinas de Paulo Afonso, na cidade homônima, os quatro filhos do casal jamais tiveram o prazer de assistir à televisão em casa. Curiosamente, um poste que ajuda a levar energia a outros pontos da região está instalado no quintal da casa da família.
Todas as noites, Osvaldo, que sustenta a família com a aposentadoria de um salário mínimo, e a companheira acendem uma fogueira em frente à casa de chão batido e paredes de barro com madeira. “Ajuda a clarear a escuridão aqui dentro”, conta Noemis. “São dois quartos. Eu e a crianças dividimos um colchão. Meu marido dorme num papelão, no outro (cômodo)”, descreve. A falta de energia não é o único problema. Na época de seca forte, “seu” Osvaldo anda, como diz, “uma légua” (seis quilômetros) para buscar água no Rio Grande, afluente do Velho Chico.

A 180 quilômetros da casa de Osvaldo, em Paratinga, Arnaldo Elias da Conceição também não desfruta de energia elétrica. Seu rendimento se resume aos R$ 68 mensais que recebe do Bolsa-Família e aos trocados que consegue vendendo, na própria cidade, parte do pouco feijão e do milho que planta no acampamento Nova Canaã, onde sua pequena casa divide espaço com outras 20. A água potável é fornecida pela prefeitura. “Vamos levando a vida”, resigna-se.

O preço do progresso

Na década de 1970, antes da construção da represa de Sobradinho, a maioria das 5 mil pessoas que moravam em Pilão Arcado (BA) também não tinha luz em casa. Hoje, praticamente todos os 32,8 mil habitantes contam com o benefício. Para alcançar a meta, no entanto, a cidade precisou pagar um preço alto: o município foi um dos quatro alagados e reconstruídos em outras áreas para ceder lugar ao lago artificial da represa. No total, quase 70 mil famílias foram transferidas.

Antônio Rodrigues da Silva, de 81 anos, se lembra bem da construção de Sobradinho, levada a cabo durante a ditadura militar. Pai de 15 filhos, dos quais 10 de criação, ele teve um mercadinho na Pilão antiga por 18. “Na Pilão Nova lá se vão mais 33 anos”, ele conta. Para Antônio, a mudança forçada de casa acabou valendo a pena. “Mesmo que não houvesse a barragem, possivelmente todas as casas já teriam luz. Mas, de forma geral, o progresso não teria chegado. Hoje, há agências bancárias e o comércio é movimentado”, conta.

Antonieta Maria de Souza, de 91, também teve muitos filhos: 14. Moradora de Remanso, onde a população subiu de 23,5 mil habitantes, na década de 1970, para 38,9 mil pessoas em 2010, ela é outra representante da velha guarda que ficou noites sem dormir ao saber que a terra natal seria submersa. “Minha casinha não tinha energia. O governo, quando nos transferiu, nos deu um lar com luz. Só quem viveu as duas situações sabe a diferença”, diz. Por ironia, a represa só não cobriu as duas antigas caixas d’água do município.

Na vizinha Casa Nova, cuja população somava 37,7 mil pessoas, na década de 1970, e hoje chega a 64,9 mil habitantes, os mais antigos mantêm o discurso. “Passei bons anos de minha vida lá, mas a vida é melhor aqui. Não gostaria de voltar no tempo”, diz Luís Manoel Rodrigues, de 66, que ganha a vida vendendo no mercado municipal parte do que planta.

Apesar de a represa ter garantido o progresso às cidades inundadas, a construção de Sobradinho foi marcada por polêmica. Entre as queixas, estava a de que o governo impôs o alagamento dos municípios, sem qualquer consulta à população diretamente atingida. Naquela época, o desespero tomou conta do sertanejo e levou os músicos Sá e Guarabyra a comporem Sobradinho. Na canção, a dupla cantava: “Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé/Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir/Debaixo d’água lá se vai a vida inteira/Por cima da cachoeira o gaiola vai subir/Vai ter barragem no salto do Sobradinho/E o povo vai se embora com medo de se afogar”.

 

http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2011/05/30/internas_economia,230703/familias-que-vivem-sem-energia-eletrica-mostram-desigualdade-social-no-velho-chico.shtml

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.