Professores debatem futuro de Monteiro Lobato após polêmica sobre racismo

Alessandra Duarte e Dandara Tinoco

“Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virará uma linda princesa loura”. É Tia Nastácia, na apresentação feita por Narizinho em “Reinações de Narizinho”. É também um dos motivos que levaram o autor Monteiro Lobato a se tornar pivô de uma polêmica envolvendo Ministério da Educação, professores e pais: a grande obra da literatura infantil brasileira, criadora de todo um universo, é racista? Para profissionais de educação, esse debate pode até afetar o uso, pelos colégios, da obra de Lobato pelas futuras gerações de alunos. Independentemente de a obra ter ou não elementos racistas, professores já afirmam que ela deve ser sempre trabalhada mostrando-se aos alunos o contexto histórico – uma sociedade com resquícios escravocratas – no qual ela foi escrita.

A polêmica começou em outubro de 2010, quando parecer aprovado por unanimidade pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) recomendava que “Caçadas de Pedrinho” fosse distribuído às escolas públicas com nota explicativa sobre a presença de estereótipos raciais, que, dizia, estavam em trechos como “Tia Nastácia (…) trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”. O ministro da Educação, Fernando Haddad, rejeitou o parecer.

Semana passada, a discussão voltou, após o MEC informar que distribuirá a professores um livro que os orienta sobre como lidar com temas como preconceito – e, aí, cita Lobato. “Podemos inferir de suas obras (…) preconceitos e formas de discriminação facilmente atribuíveis a esse momento de nossa História (…). Entretanto, dizer que os livros infantis de Lobato são preconceituosos e recusá-los ou censurar passagens, em nome do combate ao preconceito, é esquecer que são ficções”.

“Contradições do seu tempo”

Há professores que adotam Lobato para alunos mais velhos, que já entendem o contexto histórico. No Colégio Santo Agostinho, Zona Sul do Rio, o autor não está no programa obrigatório do ensino fundamental, só no do 3 ano do ensino médio.

– Tem que ter a idade para (Lobato) ser trabalhado. Houve um histórico de que Lobato era para criança por causa do “Sítio do Picapau Amarelo”. Achamos uma grande besteira trabalhar por trabalhar, porque a vovó leu – diz Teresinha Bregalda, coordenadora de língua, literatura e redação do colégio.

Em outras escolas, Lobato continua sinônimo de livro para crianças de todas as idades. No Pedro II, também no Rio, professores afirmam que seus livros permanecem sendo adotados no ensino fundamental.

Biógrafa de Lobato e curadora de sua obra, a historiadora Marcia Camargos crê que há, sim, risco de o autor passar a ter pecha de preconceituoso e que isso diminua seu uso:

– Espero que isso não ocorra, seria miopia. Ele, como clássico, reflete as contradições de seu tempo. Se começarmos com essa censura, teríamos que banir Shakespeare por causa da imagem de judeu avaro em “O mercador de Veneza”, por exemplo – diz. – O Lobato expõe a exclusão na sociedade. Se algo do começo do século passado incomoda tanto até hoje, é porque isso continua presente.
Para Marcia, que acha desnecessária a cartilha do MEC com orientações a professores, o autor não seria racista – apesar de, no começo deste ano, cartas dele a a amigos, reveladas pela revista “Bravo”, terem mostrado um Lobato simpático à organização racista Ku Klux Klan.

– Uma das histórias que a neta de Lobato (em um dos livros de Marcia, “Juca e Joyce – Memórias da neta de Monteiro Lobato”) contou foi que certa vez chegou na casa deles, para jantar, um jovem escritor negro. A empregada deles, negra e que inspirou Nastácia, não quis servi-lo, pois ele “não sabia o lugar dele”; Lobato disse a ela que ele era uma visita como qualquer outra – diz Marcia, para quem boa parte do que poderia ser racista vem de Emília, “que é mesmo politicamente incorreta”.
Uma das organizadoras de “Monteiro Lobato – Livro a livro”, Marisa Lajolo diz que Lobato, “homem de seu tempo, entusiasmou-se por teorias diversas, algumas hoje execradas”:

– Sua correspondência sugere múltiplas e nem sempre compatíveis crenças e práticas, mas delineia uma pessoa sempre disposta a se corrigir.

Intérprete de Tia Nastácia no remake do “Sítio”, da TV Globo, entre 2001 e 2006, Dhu Moraes diz que mesmo um autor de clássicos “é capaz de ser infeliz numa colocação”:

– Acho que foi o que aconteceu. E, se não foi isso, prefiro acreditar que foi, porque quero ter essa boa vontade com ele – diz Dhu, que acha importante o livro do MEC com orientações aos professores. – O professor vai explicar que aquilo foi escrito em certa época. Sem essa leitura, isso pode pôr por terra toda uma luta por igualdade de direitos.

Também negro, o historiador e escritor Joel Rufino dos Santos diz que uma explicação crítica feita pelos professores pode “corrigir” os trechos racistas da obra de Lobato:

– Uma criança negra pode se sentir arrasada ao ler essas referências a negros. Hoje ninguém crê que o Brasil é uma democracia racial. Os negros estão entrando na escola. Parte dos leitores de livros infantis são negros e filhos de negros, e é claro que essa garotada não vai gostar de ler isso. Lobato é do tempo em que se acreditava na inferioridade do negro. A tendência é que vá sumindo das listas recomendadas, ao menos alguns de seus livros.

Relatora do parecer do conselho do CNE sobre “Caçadas de Pedrinho”, a professora Nilma Lino Gomes não quis dar entrevista sobre o assunto, dizendo que o conselho ainda não terminou de analisar o parecer depois que ele foi mandado de volta pelo MEC. Perguntada se ela se sentiu alvo de preconceito ao ler a obra de Lobato – Nilma é negra -, ela não respondeu.

Integrante do CNE, a secretária de Educação Básica do MEC, Maria do Pilar Lacerda, diz que o tema volta ao debate em junho:

– Sou radicalmente contra a censura. Esses trechos devem ser trabalhados por professores com sensibilidade, independentemente da idade do aluno – diz Pilar, que lembra-se de ter ficado “incomodada” ao ler, aos 7 anos, o trecho em que Nastácia é comparada a um macaco.

Negra, a professora de História Maria Ferreira recorda-se de, pequena, ter identificado racismo em Lobato através de outro personagem, o Saci. Mãe de Malik, de 5 anos, e de Kayodê, de 2, ela acredita que, lendo as obras sem explicação, crianças podem “introjetar o preconceito”:

– Acho que não daria “Caçadas de Pedrinho” para os meus filhos lerem. Daria outras obras de Lobato. Talvez dê (“Caçadas”) quando estiverem maiores, com um trabalho para que leiam com olhar crítico.

Pai de Marina, de 8 anos, o arquiteto Marcos Cartum incentiva que a filha leia Lobato:
– A polêmica é a incapacidade de compreender a obra no contexto histórico. Lobato dá a chance de discutir o racismo.

 

https://gestaoseppir.serpro.gov.br/noticias/clipping-seppir/19-a-23-05-2011

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