Relatório Final do ICMBio sobre a Reserva Extrativista da Prainha do Canto Verde: um documento que dignifica seus autores

Cartaz na Prainha do Canto Verde. Foto: TP

Num Relatório que chega a comover quem luta contra o Racismo Ambiental, analistas do ICMBio dão um exemplo de ética, de consciência profissional e de comprometimento com a comunidade. Leia o documento na íntegra no final desta matéria

Tania Pacheco e Cristiane Faustino

Desde meados de dezembro de 2010, o Blog Combate ao Racismo Ambiental mantém, na coluna da esquerda, um pedido de apoio para duas Resex em processo final de implantação: a da Prainha do Canto Verde, no Ceará, e a de Canavieiras, na Bahia. Amanhã, 25 de abril de 2011, com a vinda da Ministra do Meio Ambiente, Isabela Teixeira, a Fortaleza, os Prainheiros esperam ter finalmente todos os seus direitos reconhecidos. E, se nós partilhamos da felicidade deles, também temos outros motivos para estar comovidas e orgulhosas.

Na garantia dos direitos territoriais dos moradores e moradoras da Reserva Extrativista da Prainha do Canto Verde, a Justiça e os Servidores Públicos têm merecido destaque e reconhecimento, neste País onde é tão frequente vermos aqueles cuja função é garantir direitos coletivos, se aliarem aos poderosos contra as comunidades tradicionais.

A história de luta pela criação da Reserva Extrativista se iniciou em 2001, encabeçada pela Associação dos Moradores da Prainha do Canto Verde. Em 5 de junho de 2009, o decreto que a instituía foi assinado pelo Presidente da República, fixando sua área em 29.794,44 ha. Desde então, começou um processo de disputa, liderado pelo empresário e especulador imobiliário Tales de Sá Cavalcante, proprietário de uma das maiores redes de ensino privadas do Ceará, a Farias Brito, e que se diz “dono” de metade da área de terra da Resex.

Com promessas de doações e empregos, além de mentiras de que a criação da Reserva levaria os Prainheiros a perder suas casas, o empresário conseguiu enganar parte da comunidade e, com ela, criou uma segunda Associação, liderada nada mais nada menos que por seu advogado no litígio, Paulo Lamarão, cujas estratégias são discutíveis. Para dar um exemplo disso, este advogado chegou a usar o nome de um homônimo de uma das lideranças das comunidades, José Alberto de Lima, para envolvê-lo em situações caluniosas, divulgando ser, esta liderança, pessoa criminosa e de má fé.

Para melhor defender seus interesses, o empresário e seu advogado reivindicaram na Justiça que a Reserva envolvesse somente a parte marítima, deixando a terrestre à mercê especulação imobiliária. (Para mais detalhes, clique e leia BLOG ESPECIAL: Justiça à Resex da Prainha do Canto Verde, Ceará – um desafio para os últimos dias de Lula na Presidência).

Desde que a comunidade conquistou um dos mais importantes direitos dos povos, que é o direito ao território, através de uma Reserva Extrativista, o empresário e seu advogado mobilizaram pelo menos sete iniciativas judiciais contra essa conquista, processando inclusive o Instituto Chico Mendes e a própria União. Em todas as que já foram julgadas, a Justiça e o Ministério Público se manifestaram de forma coerente e justa, seja confirmando a lisura do processo que instituiu a Reserva, seja reafirmando sua importância para a preservação ambiental e garantia dos direitos sociais e ambientais da comunidade.

Mas o motivo maior deste texto é destacar a postura e a determinação do poder público em garantir os direitos dos Prainheiros e Prainheiras. Em 20 de outubro de 2010, o Diário Oficial da União publicava a Portaria 550/2010, do ICMBio, criando um Grupo de Trabalho que teria como objetivo “analisar e, se pertinente, propor aprimoramentos ao Decreto de criação da Reserva Extrativista Prainha do Canto Verde, localizada no município de Beberibe, Estado do Ceará”. O GT foi formado pelos analistas ambientais Maria Goretti de M. Pinto, Silvio de Souza Júnior e Alexandre Caminha de Brito, que tiveram um prazo de 90 dias para apresentar seu Relatório Final.

Nesses três meses, eles realizaram um importante trabalho profissional: analisaram documentos e processos; entre os dias 18 a 23 de janeiro de 2011 visitaram a Prainha e o seu entorno e realizaram averiguação dos limites da Resex; reuniram-se com os moradores; e, finalmente, produziram um rico, esclarecedor e muito bem fundamentado Relatório, datado no dia 28 de janeiro de 2011.

O documento é bem escrito e detalhado, demonstrando, com competência, profissionalismo e imparcialidade, a importância da Reserva Extrativista, não só para a comunidade, mas para toda a sociedade, uma vez que destaca o valor socioambiental dessa Unidade de Conservação. E mais: a lucidez do Relatório Final desses analistas dirime todas as dúvidas que por ventura o Ministério do Meio Ambiente, o poder público como um todo e a sociedade poderiam ter frente às esvaziadas contestações do empresário Tales de Sá Cavalcante, que visa tão somente sobrepor seu interesse privado às necessidades e os direitos coletivos.

O Relatório historiciza os diferentes momentos da luta da comunidade contra o assédio dos especuladores imobiliários, desde a década de 1970, e pela criação da Resex, iniciada pela Associação dos Moradores da Prainha do Canto Verde em outubro de 2001. Lista todos os passos dados pela comunidade e pelos órgãos públicos competentes, até a efetivação do estabelecimento da Reserva, em 5 de junho de 2009.

Nesse histórico, introduz no cenário o empresário Tales de Sá Cavalcante, cuja “grande residência de veraneio” ficou inserida nos limites da Resex, e que “alega ser proprietário de 315 hectares comprados da Imobiliária Henrique Jorge, desconsiderando a decisão do STJ de invalidar o usucapião”[i]. E continua: “O Sr. Tales dirigiu questionamentos ao ICMBio e ao MMA e também abriu processos na Justiça, requerendo a exclusão da área em questão da Resex. ICMBio e MMA contestaram as alegações do suposto proprietário, através de vários pareceres, inclusive informando que, caso se confirme a propriedade das terras, o mesmo terá direito à indenização através do processo de desapropriação e regularização fundiária da UC”.

Se o histórico é mais que correto, corajoso e justo, os capítulos que seguem – Caracterização Geral da Área, Atividades Realizadas pelo Grupo de Trabalho e as Recomendações Finais – superam em muito a parte inicial, ao relatarem um trabalho de campo como se desejaria caracterizasse esse tipo de tarefa por todo o País.

Além do histórico e da caracterização da área da Reserva, o Grupo de Trabalho, com base nos dados coletados reafirma a importância da Unidade de Conservação e desaconselha expressamente a retirada de sua parte de terra. Mais ainda: na análise desses especialistas, o mais recomendado seria, inclusive, incluir na parte terrestre da Resex, áreas ambiental e socialmente importantes de serem preservadas e que ficaram inicialmente de fora dos limites demarcados.

Esperamos que o trabalho desses três analistas ambientais acelere a emissão do Contrato de Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) que regularizará de uma vez por todas a posse das terras e das águas da Resex para quem de direito: seus moradores e moradoras tradicionais. E que deixe claro, para os especuladores imobiliários, que neste País também há Justiça, também há direitos e também há Servidores Públicos que não se deixam corromper.

Parabéns ao ICMBio pelo brilhante trabalho e aos seus funcionários engajados e comprometidos com aquilo que é sua verdadeira função: garantir os direitos das comunidades tradicionais aos seus territórios e zelar pela preservação dos bens comuns.  Quiséramos tod@s nós, que lutamos contra as injustiças e o Racismo Ambiental, que todos os Servidores Públicos tivessem o necessário senso ético e comprometimento socioambiental que os membros desse Grupo de Trabalho demonstraram no seu exercício profissional.


[i] A imobiliária Henrique Jorge começou a lotear e a vender terras na Prainha a partir de uma ação de usucapião movida pelo grileiro Antônio Sales de Magalhães na Comarca de Beberibe. Mas a comunidade reagiu, e a ação foi tornada nula: primeiro no Tribunal de Justiça do Ceará, em 2002, e, finalmente, no STJ, em 2006.
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O Relatório dos analistas do ICMBio:

Comments (3)

  1. Caríssimos,

    Parabéns pelo trabalho.

    Gostaria de sugerir que vocês divulgassem este link nas escolas FB, pois é a grande fonte de renda desse dito educador que na verdade se mostra evidentemente um mecenas.

  2. Parabenizo os guerreiros deste magnifico local, que a força e luta de voçes possibilitem o reconhecimento dos reais povos brasileiros! os que são gente que lutam pela sobrevivencia digna e que vivem deste mar e de suas lagostas.

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