Erradicação da extrema pobreza e direito à alimentação

Renato S. Maluf

Estamos a poucas semanas do anúncio das ações a serem implementadas pelo Governo Federal visando à erradicação da extrema pobreza no Brasil. Em boa hora a presidenta Dilma Rousseff estabeleceu uma meta que re-energiza as dinâmicas sociais e políticas induzidas pelo Fome Zero e outras iniciativas no campo social, ampliando o horizonte com a pretensão de eliminar as marcas mais detestáveis de nossa profunda desigualdade social.

Os alimentos devem continuar a receber atenção prioritária, qualquer que seja o enfoque adotado para caracterizar a pobreza e desenhar os instrumentos correspondentes. Sabe-se que a pobreza engloba múltiplas dimensões e tem formas diversas de manifestação, de modo que é bastante heterogêneo o universo dos que podem ser considerados pobres no Brasil ou em qualquer outra sociedade. Contudo, as condições de acesso à alimentação estarão sempre entre os parâmetros que aferem as condições de existência dos indivíduos, famílias ou grupos sociais, em particular, daqueles em extrema pobreza.

É de esperar, portanto, que as ações a serem anunciadas se valham da legitimidade social e da experiência de integração nas políticas públicas já alcançadas, no Brasil, pela promoção da segurança alimentar e nutricional à luz dos princípios da soberania alimentar e do direito humano à alimentação adequada e saudável. Esse último foi recém- consagrado entre os direitos sociais previstos na Constituição Federal, ganhando visibilidade como referência mobilizadora da sociedade e orientadora de programas públicos. O decreto presidencial 7272/2010, assinado pelo ex-presidente Lula, determinou a elaboração de um plano nacional de segurança alimentar e nutricional até o final de agosto deste ano.

Ressalto três tipos de contribuição para a erradicação da extrema pobreza entre as proposições elaboradas pelo Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), espaço aglutinador de ampla variedade de setores da sociedade e do governo. Primeiro, dados levantados pelo IBGE apontam que 30,2% dos domicílios brasileiros ainda sofriam, em 2009, de algum tipo de insegurança alimentar, desde episódios de fome até o comprometimento da composição da sua alimentação. Isto requer universalizar as transferências de renda pelo Bolsa Família e seguridade social e também o acesso à educação e saúde, combinadas com políticas específicas para grupos populacionais como povos indígenas e  demais povos e comunidades tradicionais, populações rurais do Norte e Nordeste, populações em situação de rua e outras formas de pobreza urbana. Em todas as ações, crianças, idosos e mulheres demandam atenção particular.

Segundo, o Brasil carece de uma política de abastecimento com papel ativo do Estado articulando, de forma descentralizada, a ampliação do acesso à alimentação adequada e saudável com a promoção da produção familiar de base agroecológica. Promover profundas alterações nos modos de produzir, comercializar e consumir alimentos inclui, de um lado, controle do uso de agrotóxicos num país que se tornou o maior mercado mundial desses produtos, promoção de uma agricultura diversificada com incentivo às práticas da agroecologia, proteção da sociobiodiversidade, defesa dos direitos dos agricultores familiares, reforma agrária e acesso à terra e à água. As famílias rurais reúnem a dupla condição de grupo social com elevada incidência de pobreza extrema e produtores de alimentos.

De outro lado, a promoção da alimentação adequada e saudável requer ações educativas (associadas à prevenção) e o enfrentamento dos males de saúde provocados pela má-alimentação, por meio da atenção nutricional no SUS e da regulamentação da publicidade de alimentos. Dados oficiais de 2009 revelam que o excesso de peso entre a população adulta atinge 50,1% dos homens e 48% das mulheres; a obesidade já afeta 12,5% dos homens e 16,9% das mulheres. Entre os adolescentes, o excesso de peso atinge 21,5% dos homens e 19,4% das mulheres. Os significativos ganhos já conseguidos em relação à fome e desnutrição foram acompanhados da incorporação desses outros males entre os problemas de saúde pública que, note-se, incidem fortemente entre os mais pobres.

A crise internacional dos alimentos mantém os alimentos e a agricultura no centro dos debates mundiais. O mercado internacional caracteriza-se pela grande volatilidade nos preços das commodities agropecuárias. O índice de preços dos alimentos calculado pelo Banco Mundial estava, em dezembro de 2010, apenas 8% abaixo, em termos reais, do pico atingido em junho de 2008. Milho, trigo, arroz, soja, cevada e açúcar se destacam entre os causadores da recente alta.

Se ainda restavam dúvidas, confirma-se a necessidade de fortalecer, no plano interno, o papel regulador do Estado e montar o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, previsto pela Lei 11.346/2006. Não há erradicação de extrema pobreza bem sucedida quando os preços dos alimentos ficam ao sabor da especulação e da lógica privada. Entre junho de 2007 e maio de 2008, o custo da cesta básica aferido pelo Dieese em 16 capitais apresentou elevação anual entre 27,24% e 51,85%.

No plano internacional, mesmo que a alta dos preços seja saudada pelos benefícios que traz a um punhado de exportadores, o Brasil tem também responsabilidades a cumprir na promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional dos povos. O Consea já iniciou debate a respeito. O foco se volta para cortar os elos entre especulação com ativos financeiros e preços dos alimentos, bem como avaliar as propostas que visam dar maior transparência aos estoques mundiais e instituir mecanismos para enfrentar as oscilações nos preços.

A terceira e fundamental contribuição diz respeito à participação e controle social dos programas e ações públicas que já se alcançou no campo da segurança alimentar e nutricional, assim como em várias outras áreas no Brasil. A composição intersetorial dos espaços de participação como os Conseas (nacional, estaduais e municipais) oferece um mecanismo particularmente útil na articulação entre setores de governo e entre as esferas de governo, em simultâneo com a interação governo e sociedade civil. É possível e desejável que o compromisso com a construção do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, de forma pactuada, entre as três esferas de governo e a representação social, venha em reforço ao cumprimento da meta de erradicar a extrema pobreza no nosso país.

Não seria realista – pior, soaria demagógico – pleitear a eliminação da desigualdade social e seu corolário, que são as formas relativas de pobreza. Mais grave, vivemos numa sociedade que é uma insaciável máquina geradora de desigualdade nas relações privadas e na sanha por se apropriar das benesses do aparelho de Estado por meio do Executivo, Legislativo ou Judiciário. No entanto, é perfeitamente possível extirpar as manifestações extremas que negam a um vasto contingente da população a possibilidade de viver uma vida minimamente digna. Para tanto, claros compromissos são requeridos e não apenas do Governo Federal, se não que envolvendo as três esferas de governo e os demais poderes, além de contar com decisiva participação e controle social.

Renato S. Maluf é professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, presidente do Consea e membro do Comitê Diretivo do Painel de Especialistas em Segurança Alimentar e Nutricional do Comitê de Segurança Alimentar Global (CFS/FAO).

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