Carta de Bandeira de Mello, José Afonso da Silva, Dalmo Dallari, Nilo Batista, Paulo Bonavides e Luís Barroso ao Presidente Lula

Os juristas Celso Antonio Bandeira de Mello, José Afonso da Silva, Luís Roberto Barroso, Nilo Batista, Paulo Bonavides e Dalmo Dallari haviam assinado uma carta endereçada ao Presidente Lula, antes de sua decisão pela não extradição.

CESARE BATTISTI, cidadão italiano, preso na República Federativa do Brasil desde 18 de março de 2007, por seu advogado e demais professores titulares ao final assinados, vem respeitosamente a Vossa Excelência dizer e requerer o que segue.

1. O requerente é inocente dos crimes pelos quais a República Italiana pede a sua extradição, com base em condenação baseada fundamentalmente em delação premiada e produzida em ambiente político conturbado. Em 1979, quando ainda estava na Itália, o requerente sequer foi acusado de participação em qualquer homicídio, tendo sido condenado a 12 (doze) anos de prisão por crimes políticos. Após a sua fuga para a França e depois para o México, os acusados pelos homicídios – sob intensa pressão e beneficiando-se de delação premiada – resolveram atribuir-lhe todas as culpas. Foi então julgado uma segunda vez, à revelia, e condenado à pena de prisão perpétua. Os “advogados” que o teriam representado valeram-se de procurações que vieram a ser comprovadas falsas. Foi o único acusado a receber tal pena. Todos os delatores premiados estão soltos, enquanto Battisti se tornou o bode expiatório dos movimentos de esquerda da década de 70.

2. O Egrégio Supremo Tribunal Federal negou a extradição de outros três ex-ativistas italianos no mesmo período, também envolvidos na militância armada durante os anos de chumbo, sendo que um deles igualmente acusado de crimes contra a vida. Tais decisões não causaram qualquer comoção no Brasil ou na Itália, tendo sido reconhecidas como manifestação legítima do dever internacional de proteção aos indivíduos acusados de crimes políticos. Apenas no Caso Battisti a República Italiana decidiu empreender todos os recursos financeiros, advocatícios e midiáticos para transformá-lo em um troféu político.

3. Na guerra de propaganda que se instaurou, Cesare Battisti passou a ser cognominado terrorista, embora nunca tenha sido acusado ou condenado por esse crime. O requerente foi condenado – injustamente, repita-se – pela participação em quatro homicídios: de dois agentes policiais e de dois militantes da extrema-direita. Durante 14 anos, viveu de forma pacífica e produtiva na França, sob a proteção da Doutrina Mitterand. Em 1991 a Itália chegou a pedir a sua extradição, que foi negada pelo Poder Judiciário francês. O pedido só foi renovado mais de doze anos depois, em 2004, após a ascensão de governos de direita na Itália e na própria França. Nesse novo ambiente político, a extradição foi então deferida, motivando uma nova fuga, agora para o Brasil.

4. O requerente obteve refúgio do governo de Vossa Excelência, em decisão corajosa do Ministro de Estado da Justiça, Tarso Genro, que lhe fez justiça, finalmente. A concessão de refúgio foi anulada pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, por voto de desempate, contra o parecer do então Procurador-Geral da República, Dr. Antônio Fernando de Souza, enfaticamente reiterado por seu sucessor, Dr. Roberto Gurgel. Na seqüência, a extradição foi autorizada, também por voto de desempate. Não havia precedente de deferimento de extradição por maioria apertada. Além disso, a quase totalidade dos pedidos de extradição deferidos no Brasil acompanham a manifestação do Ministério Público Federal.

5. De qualquer forma, o Egrégio Supremo Tribunal Federal deliberou expressamente que a competência para a decisão final é do Presidente da República. Nessa parte, prevaleceu o voto do Ministro Eros Grau. A decisão do Tribunal apenas autoriza a entrega do súdito estrangeiro, cabendo ao Chefe do Poder Executivo realizar um juízo próprio sobre o pedido de extradição, em que deverá levar em conta os princípios constitucionais, o sistema internacional de proteção aos direitos humanos e o eventual tratado de extradição firmado entre o Brasil e o Estado estrangeiro, no caso a República Italiana.

6. Sem prejuízo da avaliação política própria que Vossa Excelência poderá fazer a respeito dos muitos aspectos envolvidos na matéria, o requerente pede vênia para enunciar alguns dos principais fundamentos pelos quais confia que sua extradição não será concedida. Embora a República Federativa do Brasil possa decidir soberanamente sobre a concessão de abrigo a estrangeiros que se encontrem em seu território, todos os fundamentos aqui apresentados se baseiam em disposições específicas do Tratado de Extradição existente entre o Brasil e a República Italiana.

7. Na verdade, o próprio Ministro Eros Grau – cujo voto conduziu a decisão da Corte na questão relacionada à competência do Presidente da República para a decisão final – identificou um dispositivo do Tratado bilateral de extradição que permite claramente a não-entrega na hipótese, segundo avaliação do Chefe de Estado que não se sujeita a reavaliação por parte do Supremo Tribunal Federal.Cuida-se do art. 3º, I, f, que admite a recusa da extradição quando haja “razões ponderáveis para supor que a situação da pessoa reclamada poderia ser agravada por razões políticas”. Como se vê, o próprio Tratado prevê a proteção ao indivíduo nos casos de mera dúvida, bastando que haja motivos para supor uma possibilidade de agravamento da situação pessoal do extraditando. Nos termos da decisão proferida pelo Tribunal, cabe a Vossa Excelência verificar a existência de tais razões, segundo sua própria convicção.

8. No caso, múltiplos elementos confirmam o risco de agravamento da situação pessoal do indivíduo reclamado. Com efeito, passados mais de trinta anos, os episódios em que se envolveu o requerente conservam elevada dimensão política e ainda mobilizam muitos setores da sociedade contra ele. Diante disso, com base nesse dispositivo do tratado e dentro do juízo político que o Supremo Tribunal Federal expressamente atribuiu ao Presidente da República, é perfeitamente legítimo que Vossa Excelência avalie que há “razões ponderáveis para supor” que a situação do extraditando “possa ser agravada por motivo de opinião política”, bem como que ele pode ser vítima de discriminação com fundamento nessa mesma razão. Essa conclusão não envolve qualquer avaliação negativa sobre as instituições atuais ou passadas da República Italiana. Aliás, a simples inclusão dessa cláusula no tratado bilateral apenas confirma que esse tipo de juízo não constitui afronta de um Estado ao outro, uma vez que situações particulares podem gerar riscos para o indivíduo, a despeito do caráter democrático de ambos os Estados.

9. De qualquer forma, veja-se que o voto do Ministro Eros Grau e a decisão do Egrégio Tribunal Federal não vincularam o Presidente da República propriamente ao art. 3º, I, f, do acordo bilateral, mas sim ao Tratado de Extradição em seu conjunto. Assim, embora o artigo em questão já seja suficiente para fundamentar a recusa de extradição, é possível ainda destacar pelo menos outros dois dispositivos que também permitem e até recomendam eventual decisão de não-entrega.

10. O primeiro deles é o art. 7º, I, do Tratado. Segundo essa previsão, a pessoa extraditada não poderá ser submetida à restrição da liberdade pessoal para execução de uma pena por fato diferente daquele pelo qual a extradição foi concedida. No caso concreto, a pena aplicada ao extraditado foi unitária – prisão perpétua pelo conjunto dos delitos – , abrangendo fatos anteriores e diferentes daqueles que motivaram o pedido de extradição, incluindo crimes políticos puros, assim reconhecidos pela Justiça italiana. Não é possível, portanto, entregar o extraditando, uma vez que o Estado requerente não poderá segregar a pena pela qual foi concedida a extradição das que resultaram de outras condenações. Esse ponto não foi objeto de pronunciamento pelo Supremo Tribunal Federal.

11. O segundo fundamento adicional consta do art. 5º, b, do Tratado. O dispositivo autoriza a recusa de extradição quando a parte requerida tenha “motivo para supor” que a pessoa reclamada poderá vir a ser submetida a pena ou tratamento que configure violação de seus direitos fundamentais. A pena de seis meses de isolamento sem luz solar incide em tal hipótese. Note-se, ainda, que até o momento a Itália não se comprometeu a comutar a pena perpétua, existindo dúvida sobre a possibilidade jurídica de autoridades do Poder Executivo realizarem a comutação de forma efetiva, uma vez que a decisão final seria uma prerrogativa das autoridades judiciárias. Tudo sem mencionar declarações públicas de que, independentemente de qualquer compromisso, a comutação não ocorrerá.

12. Como se percebe, cada um desses fundamentos seria suficiente para a recusa de extradição. A conjugação dos três apenas reforça uma eventual decisão a favor do suplicante. Diante dessas razões – e da enorme dúvida objetiva que se instaurou no Egrégio Supremo Tribunal Federal acerca da própria possibilidade jurídica de se autorizar a extradição – é consistente dizer que a posição institucional brasileira, respaldada pela Constituição e pela Convenção Americana de Direitos Humanos, deve ser favorável ao indivíduo. Essa orientação seria válida para qualquer que fosse o Estado requerente e não importa qualquer juízo crítico em relação à Itália.

13. Cabe fazer, ainda, uma última observação. O fato de o suplicante ter sido condenado no Brasil pela posse de documentos falsos, pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, não apresenta qualquer repercussão sobre o pedido de extradição e a decisão de Vossa Excelência. Tanto assim que o próprio Tratado de Extradição prevê a existência de processo ou condenação criminal no país requerido como uma das causas de recusa de extradição (art. 15, I). Vale lembrar que o suplicante chegou ao Brasil na condição de auto-refugiado, fugindo de perseguição política que considera injusta. Em situações como essa, é absolutamente impossível a utilização dos próprios documentos. Na verdade, a condenação a pena mínima de dois anos, para cumprimento em regime aberto, apenas confirmou que o suplicante não apresenta qualquer periculosidade, fato que se confirma pelos mais de 14 anos em que viveu de forma pacífica e produtiva na França.

14. O suplicante pede, respeitosamente, que Vossa Excelência leve em consideração esses fundamentos ao tomar sua decisão final acerca do pedido de extradição formulado pela República Italiana e confia que tal decisão haverá de estar de acordo com a tradição brasileira de justiça e humanidade.

15. Os advogados a seguir assinados, em nome do requerente e, também, em nome próprio, transmitem a Vossa Excelência a expressão do seu respeito e da mais elevada consideração.

CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO

JOSÉ AFONSO DA SILVA

NILO BATISTA

DALMO DE ABREU DALLARI

PAULO BONAVIDES

LUÍS ROBERTO BARROSO

Carta de Bandeira de Mello, José Afonso da Silva, Dalmo Dallari, Nilo Batista, Paulo Bonavides e Luís Barroso ao Presidente Lula

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