Desastre recorrente: causas e soluções – Subsídio para a Campanha da Fraternidade de 2011

Frei Gilvander Moreira

Interpela a consciência de toda pessoa de boa vontade o desastre recorrente e criminoso – “por deslizamento de terra e inundações” – que se abateu sobre a região serrana do Rio de Janeiro – Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo – na segunda semana de janeiro de 2011. Já são mais de 600 pessoas mortas antes do tempo, “um drama que já está entre os dez piores deslizamentos do mundo nos últimos 111 anos, o segundo maior do mundo no último ano e o terceiro maior da década”, informa a ONU; o pior deslizamento de terra da história do Brasil. As lágrimas vertidas já formam um rio de dor. A Mídia, de forma sensacionalista e hipócrita, esconde as causas profundas e não debate as necessárias soluções que devem ser implementadas com urgência para estancar a espiral de mortes que acontece todo ano.

Se comover e se fazer solidário nesta hora é dever ético, mas não basta a solidariedade momentânea que, se não for seguida de luta concreta por mudança das causas que geram a tragédia, poderá amortecer a consciência de milhares de famílias vitimadas e tranqüilizar a consciência de quem se faz solidário, mas torce o nariz para quem luta por justiça social, por reformas agrária, urbana, tributária, educacional…, e pela construção de uma sociedade socialista e sustentável ecologicamente.

Dá nojo ver a Mídia mostrando imagens de salvações dramáticas – para elevar os índices de audiência – e explorando a dor das vítimas. É repugnante ver repórteres estúpidos perguntando a quem está chorando fugindo do perigo: “Você está triste?” “Você vai voltar quando?” O cinismo de autoridades políticas se revela quando prometem: “O FGTS de atingidos será liberado em breve. Bolsa família será antecipada. Aluguel de R$400,00 por mês durante um ano…” Isso é esmola que tripudia sobre a dignidade humana já tantas vezes pisada há décadas pela falta de reforma agrária e de reforma urbana. Imaginem: um jardineiro trabalhou 40 anos para construir a casa própria numa área de risco, porque não pôde comprar um lote e construir em lugar seguro. Agora, vai receber R$400,00 para alugar o quê? Uma moradia digna?

Cabe também inocentar Deus e a chuva. Não é a chuva que deve ir para a cadeia. Colocar a culpa na chuva e em Deus é encobrir o real – ideologia –, é criar uma cortina de fumaça que ofusca a realidade beneficiando somente os adoradores do capitalismo – grandes empresários, políticos profissionais (uma corja) e ingênuos sustentadores da engrenagem que continua a trucidar vidas em progressão geométrica.

A chuva é benfazeja, cai sobre justos e injustos, diz o evangelho (Mt 5,45); a chuva é reflexo da bondade de Deus, que é infinito amor. Deus rega com a chuva a terra que deu como herança ao seu povo (I Rs 8,36). “Mandarei chuva no tempo certo e será uma chuva abençoada” (Ez 34,26), assim o profeta Ezequiel consola o povo em tempos de exílio e de escassez de chuva. A sabedoria do povo da Bíblia reconhece que Deus, solidário e libertador, “através da chuva, alimenta os povos, dando-lhes comida abundante.” (Jó 36,31). Na Bíblia se fala de chuva mais de cem vezes. Até no dilúvio, a chuva é vista como purificadora (cf. Gênesis 6 a 9). Sob o império dos faraós no Egito, a chuva de granizo é vista como uma praga em cima dos opressores e como uma dádiva de Deus que liberta da opressão (cf. Gênesis 9 e 10).

A chuva não castiga e nem desabriga ninguém, apenas revela uma injustiça sócio-econômica e política existente anteriormente. Dizer que “a chuva castiga” é reducionismo que esconde o maior responsável por tanta dor e tanto pranto: o sistema capitalista, que descarta as pessoas e as condena a sobreviverem em encostas e áreas de risco. Quem é atingido quando a chuva chega exageradamente, salvo exceções, são as famílias que tiveram seus direitos humanos – direito à moradia, ao trabalho, à educação, a um salário justo, ao meio ambiente equilibrado e à dignidade – desrespeitados pelo capitalismo neoliberal e por pessoas que adoram o deus capital, o maior ídolo da atualidade.

Entre tantos escritos sobre o crime que se abateu sobre o povo da região serrana do Rio, que revelam causas e inspiram soluções, destaco alguns, abaixo.

O jornalista Marcos Sá Corrêa vê longe e avisa: “É injusto, e talvez seja também cruel e exorbitante, que hoje não se processe no Brasil, por homicídio culposo, o político que patrocina baixas evitáveis e supérfluas em encostas carcomidas e vales entulhados por ocupações criminosas. No dia em que um prefeito, olhando as nuvens no horizonte, enxergar a mais remota possibilidade de ir para a cadeia pelas mortes que poderia impedir e incentivou, as cidades brasileiras deixariam aos poucos de ser quase todas, como são, feias, vulneráveis e decrépitas. De graça ou com o dinheiro virtual do PAC, os políticos não consertarão nunca a desordem que os elege. … Os brasileiros estão perdendo mais uma chance de bater com força no projeto de lei número 1876/99, que o deputado Aldo Rabelo transfigurou (diria eu, desfigurou), para enquadrar o Código Florestal nos princípios do fato consumado. Ele reduz à metade as áreas de preservação em margens de rio, dispensa da reserva legal propriedades pequenas ou médias e consolida os desmatamentos ilegais. Nunca foi tão fácil saber aonde ele quer chegar, folheando as fotografias aéreas das avalanches em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo. Dá para ver nas imagens o que havia antes nos pontos mais atingidos. É o que o novo Código Florestal vai produzir no campo. Mais disso.”

Caso o Congresso Nacional aprove as alterações no Código Florestal, demanda da bancada ruralista e do agronegócio encampada pelo deputado Aldo Rabelo, o parlamento brasileiro estará autorizando previamente centenas de tragédias mais graves do que a que agora se abateu sobre o povo pobre na região serrana do Rio.

As Organizações Globo, de forma hipócrita, cobra das autoridades federais verbas para a prevenção de tragédias, para a contenção de encostas. É bom lembrar que em outubro de 2010, o governador Sérgio Cabral (PMDB/RJ) desviou R$ 24 milhões do FECAM – Fundo Estadual de Conservação do Meio Ambiente -, para a contenção de encostas e obras de drenagem e deu para a Fundação Roberto Marinho construir um museu.

Raquel Rolnik, relatora da ONU para a questão da Moradia digna, na TV Cultura, em 11/01/2011, ao ser perguntada se há solução para as perdas de vidas em várias cidades “por chuvas intensas” respondeu: “Tem solução, sim. Há formas de intervenção para melhorar a estabilidade dos terrenos, drenar melhor a água, conter encostas, ou seja melhorar a condição de segurança e a gestão do lugar para que, mesmo numa situação de risco, se possam evitar mortes. Mas a questão de fundo é que ninguém vai morar numa área de risco porque quer ou porque é burro. As pessoas vão morar numa área de visco porque não têm nenhuma opção para a renda que possuem. Estamos falando de trabalhadores cujo rendimento não possibilita a compra ou aluguel de uma moradia num local adequado. E isso se repete em todas as cidades e regiões metropolitanas. Não adiantam nada as obras paliativas aqui e ali se não tocarmos nesse ponto fundamental que é: quais são os locais adequados, ou seja, fora das áreas de risco, que serão abertos ou disponibilizados para que a população de menor renda possa morar?”.

Uma das maiores especialistas no mundo em desastres naturais e estratégias para dar respostas a crises,Debarati Guha-Sapir, consultora externa da ONU e diretora do Centro para a Pesquisa da Epidemiologia de Desastres, foi incisiva: ”Brasil não é Bangladesh. Não tem desculpa para permitir, no século XXI, que pessoas morram em deslizamentos de terras causados por chuva. Só um fator mata depois da chuva: descaso político. O Brasil já viveu 37 enchentes, em apenas dez anos. É um número enorme e mostra que os problemas das chuvas estão se tornando cada vez mais freqüentes no País. Essas pessoas morreram, porque não têm peso político algum e não há vontade política para resolver seus dramas, que se repetem ano após ano. Não há desculpa para não se preparar ou se dizer surpreendido pela chuva. Além disso, o Brasil é um país que tem dinheiro, pelo menos para o que quer. O Brasil praticamente só tem um problema natural e não consegue lidar com ele. Imagine se tivesse terremoto, vulcão, furacões...”

Esquecendo-se de responsabilizar o sistema capitalista e socializando a responsabilidade entre todos os seres humanos, o que oculta as profundas causas do desastre, Leonardo Boff, no artigo “O preço de não escutar a natureza” pondera: “Estamos pagando alto preço pelo nosso descaso e pela dizimação da mata atlântica que equilibrava o regime das chuvas. O que se impõe agora é escutar a natureza e fazer obras preventivas que respeitem o modo de ser de cada encosta, de cada vale e de cada rio. Só controlamos a natureza na medida em que lhe obedecemos e soubermos escutar suas mensagens e ler seus sinais. Caso contrário teremos que contar com tragédias fatais evitáveis.”

Enquanto trabalhava ganhando um salário mínimo por mês, um pai de família recebe a notícia de que vários membros da sua família tinham morrido, porque sua casinha construída no morro tinha sido derrubada por uma avalanche de deslizamento de terra, após intensas chuvas. Atônito, aquele trabalhador ainda teve força para indicar a uma equipe de resgate como poderia chegar a uma comunidade que estava isolada. De volta para sua casa que não mais existia, correndo desesperado ao encontro de seus familiares sobreviventes, ao passar ao lado de uma casa que continuava intacta sem ter sido em nada abalada, exclamou: “Essa é a casa do meu patrão.” Isso revela que quem mais sofre com a falta de reformas agrária, urbana, tributária, educacional… são os pobres, a classe trabalhadora. E quem lucra é a classe dominante. Logo, digo aos atingidos e atingidas pelo capitalismo – com economia neoliberal, democracia formal e com políticos profissionais, a quem interessam a perpetuação das injustiças – uni-vos, organizai-vos e vamos à luta, pois se ficar o bicho come, se fugir o bicho pega, mas se unirmo-nos, organizarmo-nos e partirmos para a luta até à vitória, o bicho fugirá e construiremos uma terra sem males onde não haverá nem choro e nem lágrimas.

Enfim, um desafio inadiável é percebermos as relações entre as tempestades e o aquecimento global, entre o aquecimento global e o efeito estufa, entre o efeito estufa e a emissão de gases CO2 e outros, entre a emissão de gases CO2 e outros e o modelo industrial vigente (capitalismo neoliberal), entre o capitalismo neoliberal e a mentalidade ocidental conquistadora, e a relação desta com o ser humano, seu Criador e todas as outras criaturas.

Belo Horizonte, 16 de janeiro de 2011.


Mestre em Exegese Bíblica , professor de Teologia Bíblia, assessor da CPT, CEBs, SAB e Via Campesina – e-mail:[email protected]www.gilvander.org.br

Fundo de Garantia por tempo de serviço.

Cf. Artigo no Jornal O Estado de S. Paulo, 14/01/2011.

Organização das Nações Unidas.

Cf. Entrevista ao Jornal O Estado de S. Paulo, 14/01/2011.

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