E se DEUS for NEGRO?

*Walter Nunes

François Bernier, viajante, antropólogo e médico francês, escreveu em 1684, no “Journal des Sçavants” de Paris, a seguinte descrição de um negro:” são  humanos, de lábios grossos e narizes achatados; pele oleosa, lisa e polida, com exceção das partes queimadas pelo sol; possui apenas três ou quatro fios de barba e os cabelos não são propriamente cabelos, mas uma espécie de lã que se assemelha ao pelo de algumas de nossas ovelhas. Seus  dentes são mais brancos que o marfim mais fino; sua língua e toda a reentrância da boca com lábios tão vermelhos quanto o coral”.

No simbolismo das cores, no Ocidente Cristão, o negro significava a derrota, a morte, o pecado, enquanto o branco significava o sucesso, a pureza e a sabedoria. Segundo, Roger Bastide, sociólogo francês, nós herdamos dos gregos e do cristianismo a polaridade branco-preto como expressão da pureza e do demoníaco. “Lembramos o véu negro de Teseu, quando retornou de Creta, como símbolo da derrota, e o seu véu branco como sinônimo de vitória. Os eleitos, no cristianismo, vestem túnicas brancas e os diabos são negros. Sem nos darmos conta, essa ligação da negrura com o inferno, a morte, as trevas da noite e o pecado  não deixa de exercer influência sobre nossa visão dos africanos, como se uma maldição estivesse colada a sua pele”.

Em 2010 entrou em vigor o Estatuto da Igualdade Racial. O senador Demostenes Torres (DEM-GO), relator do texto final, conseguiu empurrar garganta abaixo e aprovar,  um estatuto que é a cara da elite branca e conservadora representada pelo Democratas. Foi o DEM que ajuizou ação no STF contra a demarcação dos territórios  quilombolas, contra as cotas nas universidades e de quebra aplaudiu o senador Demostenes quando ele defendeu que, na colônia, não houve estupro de mulheres negras pelos senhores de engenho, era sexo consensual. Muita cara de pau de um senador racista.

O  racismo no Brasil é alimentado na sutileza dos detalhes do cotidiano e até nos parece normal  esta convivência. Na maioria das vezes, ocorre de forma imperceptível, quase invisível. Outro exemplo vergonhoso foi o que  constatamos no ano passado, na novela Viver a Vida, assistida por milhões de brasileiras (os). A  personagem Helena vivida pela atriz negra Thaís  de Araujo, foi uma protagonista que ajoelhava e  implorava  perdão e mesmo assim levava porrada  em plena Semana da Consciência Negra . Demonstrou incompreensiva  subserviência aos personagens brancos. Por outro lado vimos  Luciana,  paraplégica, vivida pela atriz Aline Moraes  dentro de casa, sendo carregada  no colo  por um negro, contratado especialmente para essa finalidade. Na imprensa escrita, os negros jamais são vistos nas colunas sociais, mas predominam  nas páginas  policiais; nas passarelas as modelos são brancas. Na medicina, engenharia, direito e outros cargos nobres, o negro é minguado, quase não se vê.

Esse racismo estrutural praticado de forma tão sutil tem proporcionado um alto custo social. Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a cota de anestesia, para mulheres negras atendidas pelo SUS  no parto normal é quase 10% menor que a cotas destinadas às mulheres brancas.

Repetindo Mário Rosa, poderíamos questionar: “E se você chegar ao céu e em vez de um velhinho de barba branca sentado no Trono, você vir um Deus negro? E se em vez de clarins ressoando na sua chegada, você ouvir tamborins? E se em vez de um coral com anjos lourinhos ou ruivos de cabelos encaracolados cantando de maneira contida, você encontrar um grupo de cabelos em trancinhas, da cor da noite, tocando louvores a Deus em ritmo de timbalada? Você ficaria surpreso? Muitos ficariam chocados. Fazemos uma imagem de Deus como se Ele fosse europeu, branco, de barba branca e bochechas vermelhas, como o Papai Noel. Deus é Espírito. Então não é branco, negro ou amarelo, Ele é Deus”.

Feliz 2011 a todos aqueles que querem um Brasil mais igual; aos mais de 250.000 jovens negros analfabetos; aos negros residentes nos mais de 500 quilombos do Maranhão que não tem suas terras certificadas e às  mais de 1500 comunidades de terreiro  excluídas das políticas públicas por falta de registro.

Fonte: Correio Nagô

*Mestre em Relações Internacionais e membro da Associação Brasileira de Pesquisadores  Negros – [email protected].

http://africas.com.br/site/index.php/archives/7054

Comments (1)

  1. Lindo texto, bela revisão histórica, diria que a abordagem é quase teológica. Lembrando que o primeiríssimo cristianismo fora de Jerusalém foi e é ainda hoje o da Etiópia, país historicamente devoto e esquecido por seus “irmãos romanos e gregos brancos”. Na década de 1950 a igreja da Etiópia conseguiu superar mais de 1000 anos de submissão e se desligou formalmente do Egito. Um tesouro inestimável de manuscritos milenares é guardado pelos pastores etíopes que espalharam sua boa nova há centenas de anos a muitos outros africanos que acabaram escravizados por seus “irmãos europeus” e trazidos pra cá. Os escravos cristãos do Congo e da Etiópia e seus descendentes podem citar o profeta Zacarias quando falava do futuro martírio do Messias. “E se alguém lhe disser: Que feridas são estas nas tuas mãos? Dirá ele: São feridas com que fui ferido em casa dos meus amigos.” Zacarias 13.6

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