Educação do campo ganha força

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrária (Incra/MDA) existe desde 1998, mas só agora foi objeto de um decreto presidencial que o considera como política pública e detalha como deve ser implementado. O decreto que dispõe sobre a política de educação do campo e sobre o Pronera foi publicado no último dia 4 de novembro e afirma que devem ser ampliadas e qualificadas a oferta de educação básica e superior às populações que vivem nas zonas rurais. A ação foi realizada na mesma data em que mais de 600 pessoas se reuniam no IV Seminário Nacional do Pronera, em Brasília, para discutir os rumos do programa.

Em mais de duas páginas, o documento define a quem as políticas de educação do campo devem ser dirigidas – “agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, trabalhadores assalariados rurais, quilombolas, caiçaras, povos da floresta, caboclos e outros que produzam suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural”.  O decreto especifica também mecanismos que devem ser adotados pelo poder público para o desenvolvimento da educação do campo – como a garantia de saneamento básico e energia elétrica, por exemplo, bem como uma série de adequações a serem asseguradas pelo poder público para o cumprimento pleno do direito das populações camponesas à educação. “Os recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e literários destinados à educação do campo deverão atender às especificidades e apresentar conteúdos relacionados aos conhecimentos das populações do campo, considerando os saberes próprios das comunidades, em diálogo com os saberes acadêmicos e a construção de propostas de educação no campo contextualizadas”, detalha o artigo 6º. “O decreto institucionaliza aquilo que nós já fazíamos e discutíamos há muito tempo e incorpora um conjunto de princípios que vieram de uma construção coletiva com os movimentos sociais. Não foi um iluminado nem do MEC nem do Incra que pensou que deveriam ser esses os princípios simplesmente porque são bonitos. O debate do tema da educação do campo que o povo organizado foi fazendo ao longo desses 12 anos é que foi reconhecido no decreto”, destaca a coordenadora geral de educação do campo e cidadania do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Clarice dos Santos.


No artigo 2º do documento são considerados como princípios da educação do campo o respeito à diversidade; o incentivo à formulação de projetos político-pedagógicos específicos; o desenvolvimento de políticas de formação de profissionais da educação para o atendimento das especificidades das escolas do campo e valorização da identidade dessas escolas. O quinto princípio fala em controle social da qualidade da educação escolar e reconhece a importância da participação efetiva da comunidade e dos movimentos sociais do campo nesse processo.

Uma parte considerável do decreto é dedicada especificamente ao Pronera, de forma a detalhar objetivos do programa e definir que se concretizará por meio de convênios e parcerias com instituições de ensino públicas e privadas sem fins lucrativos e outros órgãos e entidades públicas. Erivan Hilário, do Coletivo Nacional de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), reforça que o decreto de reconhecimento do Pronera como política pública já é uma demanda antiga. “A partir do decreto, o Pronera continua sendo um programa, mas ganha uma estrutura de política pública, ou seja, qualquer governo que entrar e sair, ele continuará existindo. O decreto coloca diretrizes e situa muito claramente a função do programa”, avalia.

Números do Pronera

De acordo com o Incra, de 2003 a 2009 cerca de 354 mil alunos foram atendidos por instituições conveniadas ao Pronera, em todas as regiões do país. Foram ofertados cursos de nível superior em parceria com universidades, ensino técnico – inclusive integrado ao ensino médio -, educação de jovens e adultos (EJA) e ainda cursos de especialização e residência. A região nordeste concentra a maior parte dos alunos – mais de 163 mil.

Entre os cursos de nível superior estão sendo ofertados pedagogia, letras, agronomia, ciências agrárias, jornalismo, direito e licenciatura em educação do campo. A carta final do IV Seminário do Pronera destacou a importância do programa durante os 12 anos de existência: “o Pronera, no contexto da expansão das políticas públicas de Educação do Campo – interiorização das universidades e Institutos Federais, entre outras – tornou realidade o sonho de milhares de famílias que vivem no campo, de terem melhores escolas e melhor estudo para seus filhos. Com uma diferença fundamental: o regime de alternância dos tempos de estudos e experiências com currículos pautados na realidade, cultura e luta dos povos do campo. Estes asseguraram uma formação educativa para os jovens e adultos sem o abandono da vida no campo, fortalecendo assim a Reforma Agrária”.

Para Erivan, o Pronera tem dado uma contribuição bastante significativa ao elevar a escolaridade da população assentada. Mas ele destaca que a educação no campo precisa avançar muito, já que, com exceção dos cursos de ensino médio integrado à formação técnica, não faz parte do programa o atendimento à educação básica – que é de responsabilidade dos estados e municípios, conforme assegura a legislação educacional. Maria Cristina Vargas, também do coletivo de educação do MST, completa: “Nossa pauta é ter escola em todos os assentamentos, ter a possibilidade da educação infantil, que é quase inexistente, a formação de educadores. Tem-se a ideia de que o camponês não precisa e não quer estudar, mas o que provamos com o Pronera e com outras ações é que o povo do campo, se tiver acesso, quer educação, quer se escolarizar”, acentua.

Acórdão limita participação dos movimentos sociais

O IV Seminário do Pronera avaliou os avanços e desafios do programa e contou com a participação de reitores das universidades e outras instituições públicas de ensino, parlamentares, professores, assentados, estudantes, representantes dos movimentos sociais, sindicais e de organizações não-governamentais, coordenadores do Pronera nos estados, servidores do Incra e outros parceiros.

André Burigo, que, junto com a diretora Isabel Brasil, representou a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) no seminário,  destaca que a forte presença dos movimentos sociais marcou o encontro, com a participação em quase todas as mesas de debates e também promovendo místicas no início das atividades. André ressalta ainda a importância do apoio manifestado pelos reitores das universidades públicas ao Pronera, inclusive por parte da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). “As pessoas presentes convergiram na ideia de que é preciso fortalecer o Pronera porque ele está entre as principais estratégias de luta por justiça social no campo”, comenta.

A carta final do seminário elenca proposições para o avanço do programa no país, como a revisão do acórdão 2.653/08, determinado pelo Tribunal de Contas da União (TCU). O acórdão modifica a relação entre o Incra e as instituições conveniadas para oferta de cursos no âmbito do Pronera, uma vez que exige que seja feito um contrato por meio de processo licitatório, e não simplesmente um convênio firmado, como ocorria anteriormente. O mesmo instrumento também limita a participação dos movimentos sociais no processo de planejamento, execução e avaliação do programa. “Tal determinação atenta contra princípios constitucionais, notadamente em relação à autonomia universitária e contra a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que no seu art.1º, institui os movimentos sociais como educadores, junto com a família, os processos de trabalho, a sociedade, entre outros”, afirma a carta final do seminário.

Ainda segundo o documento final, há, atualmente, mais de 50 projetos de cursos aprovados que beneficiariam cerca de cinco mil alunos, mas que ainda não estão em funcionamento devido a essa nova dinâmica exigida pelo acórdão. Para Clarice, sem assegurar a participação dos movimentos sociais em todas as fases do programa, não é possível que o Pronera se sustente. “Ora, os movimentos sociais são os grandes protagonistas desse programa. Não é possível fazermos um projeto de educação se não discutirmos isso com os movimentos que estão lá no dia a dia do campo, com imensos desafios, com uma população jovem e infantil que está em escolas que são normalmente muito atrasadas nos processos educativos e batem de frente com aquilo que os movimentos já concebem como projeto educativo. Como faremos isso sem chamar esse povo?”, questiona.

Clarice salienta que sempre que se pensa em políticas inovadoras, como os cursos que são realizados no âmbito do Pronera, com forte presença dos movimentos sociais, surgem barreiras, como a do acórdão. “O Estado brasileiro é muito refratário a essas iniciativas novas que vêm do meio do povo. Em aspectos que já estamos lá na frente com os movimentos sociais, ainda estamos lá atrás nas formas de executar as políticas. Para continuarmos fazendo um programa assim, as políticas precisam ser mais maleáveis no que se refere à execução”, alerta.

Além da revisão do acórdão, a carta final do seminário também propõe a aprovação, pelo Congresso Nacional, de lei autorizando bolsas de estudo para estudantes, professores e servidores públicos que atuam no Pronera, além da criação de espaços de formação continuada para professores, educadores, bolsistas e técnicos. Também aparecem como propostas a construção e adequação de escolas de educação básica, bem como a expansão da oferta de cursos e da produção de materiais pedagógicos, entre outras proposições.

Especialização em parceria com o Pronera

Um exemplo de formação financiada com recursos do Pronera e desenvolvida a partir dos princípios do programa – especialmente a construção conjunta com os movimentos – é o curso de especialização em Trabalho, Educação e Movimentos sociais, que será desenvolvido pela EPSJV a partir de janeiro de 2011.O curso, que é de pós-graduação, será destinado a militantes, dirigentes e responsáveis pela formação e educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST. As aulas serão ministradas no Centro de Referência Professor Helio Fraga, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz).

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