Cooperação Sul – Sul: Relações África – Bahia pela sustentabilidade das águas

Diosmar Marcelino de Santana Filho*

A história do povo baiano se relaciona diretamente com a vida e organização civilizatória dos povos africanos, e isso tem a ver com o processo pelo qual as diversas etnias foram submetidas, no que se refere à expansão marítima europeia, com o tráfico escravo de homens e mulheres para o continente americano.

Segundo Reis (2000), sabemos hoje que, apesar de sua longa vida no Brasil, a escravidão não existiu sem uma intensa resistência por parte dos negros escravizados, sendo muitas as formas de enfrentamento, desde a denominada resistência do dia-a-dia – sacarmos, roubos, sabotagens, assassinatos, suicídios, abortos – até aspectos menos visíveis, porém profundos, de uma ampla resistência cultural.

Essa construção se tornou responsável pela formação de uma sociedade fora da África, onde os costumes, valores, religião e identidade não se perderam 480 anos depois das longas travessias sobre o Atlântico. Com isso, a Bahia virou expoente e referencial na sustentabilidade da cultura africana no Brasil, tendo na cidade do Salvador a maior concentração de população negra no mundo fora do continente africano.

Pode-se neste processo citar os movimentos de resistências através das fugas de crianças, mulheres e homens nas zonas urbanas na cidade de Salvador,  pois um dado importante e que merece ser aqui destacado é que o envolvimento afetivo de escravos libertos e livres ocorriam com muita freqüência nos centros urbanos, onde a mobilidade geográfica e ocupacional era maior, uma vez que, quase sempre, além dos afazeres domésticos, circulavam pelas ruas da cidade prestando serviços, vendendo ou carregando coisas a mando de seus senhores, trabalhando como ganhadeiras e ganhadores, ocorrendo assim uma maior integração entre eles e outros setores da população negra (REIS, 2000).

O fato de as identidades terem se afirmado ao longo do processo de resistência dos povos africanos escravizados e pós-escravidão no Brasil permitiu que nos últimos 40 anos as relações entre o continente e o Estado da Bahia se intensificassem pelo viés cultural-religioso, através do intercâmbio dos seus filhos, netos e bisnetos, afro-brasileiros, pela busca na África da sua história, e conquistou o reconhecimento pelo Estado Brasileiro da sua dívida com esses povos.

Os estudos sobre diáspora e políticas de identidade nos indicam que esta compreensão ignora a complexidade da forma integral em que a identidade está mergulhada em Geografias sociais e políticas nacionais e locais. Especificamente, a identidade diaspórica emerge a partir de conjunturas históricas, sociais e culturais, quando o discurso construído sobre “pertencimento nacional” nega reivindicações de cidadania em diversos contextos raciais, culturais, religiosos, lingüísticos, entre outras formas de coletividades (HINTZEN, 2007).

Portanto, o reconhecimento da identidade política da população negra, afirma na sociedade brasileira o conjunto de contribuição destes na construção da nação, e denuncia também os atos racistas e outras formas de violência que se instalaram na estrutura social, cultural e econômica deste país.

O papel que o Brasil assumiu nos últimos anos, de relacionar-se com o continente africano a partir do reconhecimento dos estados/nações como soberanos, está diretamente ligado à importantíssima luta do movimento negro brasileiro, internamente, para a institucionalização de políticas afirmativas.

A construção por identidades políticas na África e Diáspora abre também o debate por outra globalização e coloca o desafio ambiental no centro do diálogo, para além do desenvolvimento, ao analisar as contradições do mundo moderno-colonial. Afinal, a idéia de progresso e, sua versão mais atual, desenvolvimento é, rigorosamente, sinônimo de dominação da natureza! Portanto, aquilo que o ambientalismo apresentará como desafio é, exatamente, o que o projeto civilizatório, nas suas mais diferentes visões hegemônicas, acredita ser a solução: à ideia de dominação da natureza do mundo moderno colonial, o ambientalismo coloca-se diante da questão de que há limites para a dominação da natureza (PORTO-GONÇALVES,2006)

Todavia, esta nova postura foi eixo central do discurso do Presidente da República do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura da 63ª Assembléia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU), em 2008, em pleno  início da crise do sistema especulador financeiro mundial, quando afirmou que “Está em curso a construção de uma nova geográfica política, econômica e comercial no mundo. No passado, os navegantes miravam a estrela polar para ‘encontrar o norte’, como se dizia. Hoje estamos procurando as soluções de nossos problemas contemplando as múltiplas dimensões de nosso Planeta. Nosso ‘norte’ às vezes está no sul. Todos esses esforços no plano multilateral são complementados por meio de ações de solidariedade de meu país para com nações pobres, especialmente na África”;

Para tanto, a realização do I e II Fórum África, Brasil – Bahia pela Sustentabilidade das Águas, na cidade do Salvador, pelo governo estadual, com a participação de gestores públicos de quatros Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa – PALOP’s e do Timor Leste inauguraram um novo processo desta relação com o continente, pautada na sustentabilidade da água, unindo os povos pela construção de uma cooperação que afirme as identidades culturais e fortaleça a gestão pública, para a garantia de direitos coletivos dos povos e a superação de desafios como o enfretamento ao racismo ambiental.

A Cooperação Sul – Sul tornou-se conceito, assim como  a política externa implementada pelo governo brasileiro, nos mais diversos fóruns internacionais, já com resultados concretos quanto à construção do novo eixo das relações de cooperação entre os estados/nação no hemisfério sul, pautada na solidariedade com o objetivo de fortalecer as instâncias públicas dos Estados na África, América Latina e Ásia, cujo princípio de troca de experiências e conhecimento está na centralidade para o estabelecimento das relações. Para tanto, este processo avança sobre as questões mais consistentes e coloca neste cenário uma nova experiência para o Brasil, cabendo ao Estado da Bahia assumir o papel de interventor e promotor da cooperação com estados/nação.

Uma das questões neste processo a ser superado como central pelos interventores é o que alguns pesquisadores debatem sobre o preconceito quanto à origem geográfica. Esses preconceitos quase sempre estão ligados e representam desníveis e disputas de poder e nascem de diferenças e competições no campo econômico, no campo político, no campo cultural, no campo militar, no campo religioso e nos campos dos costumes e ideias (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2007).

Com isso, a integração de políticas torna-se “difícil” no processo democrático, devido à fragilidade das instituições provedoras. Não há possibilidades de garantir que os Estados tenham condições de trabalhar com temas tão complexos, que envolvem a definição de diretrizes pelos governos, sem confrontar diretamente com as prioridades aprovadas nas políticas de crescimento econômico, que direciona recurso técnico e financeiro para o quanto temos e o que mais podemos explorar dos bens naturais.

Para tanto, os Fóruns passaram a trabalhar sobre realidades análogas no que se refere a garantir a conservação das águas e superar a escassez hídrica, a exemplo, do Estado Caboverdiano, que tem enfrentado problemáticas naturais e antrópicas quanto ao excesso na exploração de águas subterrâneas, levando ao aumento de áreas em processo de desertificação com a intrusão salina no aqüífero.

Por outro lado o Estado Santomense, localizado na linha do Equador, no Golfo da Guiné, de clima tropical úmido, não sofre com a escassez hídrica, mas não consegue usar este potencial como gerador de seu desenvolvimento. Segundo o Instituto Nacional de Saúde do Governo Sãotomense, em 2006 a população do país era de 151.912 habitantes. Desses 73.878 homens e 77.035 são mulheres, apenas 30% têm acesso ao serviço de água potável, além de enfrentarem dificuldades relacionadas ao fornecimento de energia para a população, devido à falta de geração, baseado na sustentabilidade hídrica para redução de custos, frente à compra do óleo diesel para os geradores.

Entretanto, essas realidades não são diferentes das vividas no território baiano, como os conflitos que se estabeleceram na região de Lapão, com o projeto implantado há mais de 20 anos pelo governo estadual para o desenvolvimento de polos agrícolas regionais, como pode ser sentido pela população atual do município. Segundo o Instituto de Gestão das Águas e Clima – Ingá, no ano de 2009 as rachaduras no solo da região levaram à suspensão das outorgas e à construção de uma força tarefa de estudos para a adequação e regulação da exploração das águas subterrânea do aquífero cárstico. Portanto, o ponto comum aos dois países encontra-se na falta de entendimento das instâncias públicas no que se refere à integração de políticas relacionadas ao desenvolvimento regional e garantia de sustentabilidade hídrica.

Sendo assim, trabalhar no âmbito da cooperação entre países com as unidades federativas tem sido um dos caminhos que se iniciou no âmbito da diplomacia do Governo Brasileiro. E a iniciativa para a integração de políticas pública entre o Estado da Bahia e os países africanos possibilita que as instituições estatais estabeleçam desafios para o reconhecimento da água como bem público coletivo, e não como recurso de fim econômico. Essa nova percepção para os governos (antigas para os movimentos que defendem a sua não privatização, como os povos indígenas da região de Cochabamba, na Bolívia) é o novo conceito a ser trabalhado no fortalecimento das diretrizes da Cooperação Sul-Sul.

Assim, a justiça ambiental passa a se fortalecer numa constante reivindicação das sociedades para que o uso sustentável das águas seja de direito fundamental e coletivo aos povos, devido aos conflitos que estão emergindo constantemente nos ambientes rural e urbano para o seu acesso, como resultado dos projetos desenvolvimentistas em construção e implementação por capitais externos. Nos países africanos, com a grilagem de terras e exploração humana e, no Brasil, com a exploração dos bens naturais e a nova desapropriação dos povos e comunidades tradicionais dos seus territórios étnicos.

* Graduando em Geografia pela UCSAL, ativista negro e pesquisador em relações étnico-raciais e meio ambiente.

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