Itapipoca, CE – Espanhóis e índios disputam paraíso turístico

Manoel Lima:
Manoel Lima: "Tem quem acredite que essa empresa vai trazer progresso. Mas eles cercaram as terras e querem acabar com as nossas rocinhas"

Comunidades indígenas reivindicam a posse de terreno onde grupo europeu quer construir uma megaestrutura com hotéis, resorts, marina e campo de golfe

Lúcio Vaz

Itapipoca (CE) — Um paraíso intocado de 32km², com imensas dunas móveis, manguezais, nascentes de água doce e extensa área de marinha no litoral oeste do Ceará poderá ser ocupado por um complexo turístico formado por 13 hotéis, cinco resorts, três campos de golfe e uma marina — a Cidade Nova Atlântida. A terra está em disputa entre empresários espanhóis e uma comunidade indígena Tremembé que reivindica a área. Os europeus sustentam que compraram o terreno de um fazendeiro e argumentam que os índios não seriam realmente indígenas. Os empreendedores já tiveram o apoio do governo e de deputados do estado, mas hoje enfrentam o descrédito do poder público. A Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma que deverá publicar, até o fim do ano, o relatório que caracteriza a presença indígena na região e delimita a área dos tremembés das comunidades Buritis e São José.

Área "reivindicada" pela Nova Atlântida

O projeto é classificado pelo secretário estadual de Turismo do Ceará, Bismark Maia, como “mera especulação imobiliária”(1). “Não me passa confiança nem segurança”, comentou. Adquirido por empresários espanhóis em 1985, o terreno, então selvagem, foi transformado em área urbana por lei municipal. O advogado do empreendimento, Djaura Dutra, explica a alteração: “Foi necessária porque é uma cidade turística. Então, foi declarada como área urbana para ser preparada, porque a área tem que ser desmatada para a implantação do projeto. Na época, houve um convênio entre a empresa e o município de Itapipoca”. Segundo Dutra, a lei foi sancionada pelo prefeito da época, Gerardo Barroso.

O site do empreendimento mostra a sua localização em cima de imagem de satélite. A área é delimitada por uma linha tracejada amarela que segue mar adentro. “Isso é loucura, é para vender. Isso é propaganda enganosa”, comenta o superintendente da Secretaria de Patrimônio da União no Ceará, Clésio Jean Saraiva. “O Nova Atlântida tem problemas sérios. Existe, inclusive, a possibilidade de demolição por conta da ocupação de área de preservação. Esse pessoal faz os empreendimentos e consegue uma licença ambiental estadual. Quando o Ibama vai lá e constata que tem área de preservação permanente ambiental, tome multa. Aí, o Ministério Público entra com ação civil pública de demolição. É um prejuízo grande”, diz Saraiva.

Quem é o dono?

A área foi comprada inicialmente pelo espanhol Juan Ripoll Mari. Ele registrou a aquisição no cartório de imóveis de Itapipoca em nome da Nova Atlântida Comércio de Imóveis. Até a semana passada, o seu nome constava na Junta Comercial do Ceará como sócio majoritário do empreendimento, com 99,8% do capital. Em 2007, Ripoll foi investigado pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) por movimentação financeira atípica. Djaura Dutra afirma que o diretor do empreendimento, atualmente, é o espanhol Xavier Mitats, que representa a empresa espanhola Afirma Grupo Inmobiliario.

O ex-secretário de Turismo de Itapipoca Paulo Maciel, morador da Praia da Baleia, conheceu Ripoll. Segundo ele, as terras foram compradas por quatro espanhóis em 1985. Só Ripoll continua na sociedade. A empresa Afirma teria adquirido as ações dos outros três espanhóis. “O Ripoll tem 30% das ações hoje, e o outro grupo detém o resto”, informa. O secretário Bismark Maia resume a situação: “Ninguém sabe quem é o dono (do empreendimento)”. Maciel explica por que a escritura ainda não foi alterada. “Eles ainda não legalizaram, porque só os 2% dos TBI (Imposto Sobre Transmissão de Bens Imóveis) da prefeitura é uma nota preta. Quando eu era secretário, eles viviam pedindo ajuda da prefeitura.”

Djaura Dutra afirma que o empreendimento não tem pendências ambientais. “Quando peguei a causa, o licenciamento estava aprovado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Semace). O juiz fez uma vistoria na área e o Ministério Público estava questionando essa questão de dunas e terreno de marinha. Os diretores explicaram que não iriam utilizar esses terrenos para construir nada. Seria uma área para lazer.” Dutra afirmou que não foi preciso pedir o aforamento da área de marinha para o empreendimento: “Aquelas terras não são consideradas de marinha”. Ele lembrou que a linha do preamar (nível máximo de uma maré cheia) é de 33 metros. “Mas, aqui no Ceará, nunca foi demarcada essa linha.”

O professor Jeovah Meireles, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), afirma que os estudos ambientais para a implantação do empreendimento não levaram em conta a presença indígena, os impactos cumulativos, muito menos os custos social, ecológico e cultural às comunidades tradicionais. “Campos de dunas repletos de sítios arqueológicos, reservatórios de água potável e nascedouros de riachos de águas cristalinas serão ocupados por uma elevada densidade de equipamentos hoteleiros. Ao longo do manguezal, lugar de pesca e de coleta de caranguejos, foi projetada a construção de cinco marinas e ancoradouros”, comentou Meireles. Segundo ele, “está em risco o direito à posse e ao usufruto exclusivo dos índios de São José e de Buriti sobre as riquezas naturais de sua terra”.

Manoel Xavier de Lima, 69 anos, está entre os indígenas que reivindicam a posse da terra. Ele sustenta nove filhos com a roça que mantém nas proximidades do Rio Mundaú, com as plantações de coco, banana e manga, além da coleta de frutas, como a siriguela. “Vivo aqui desde que nasci. Tem quem acredite que essa empresa vai trazer progresso e emprego. Mas eles cercaram as terras e querem acabar com as nossas rocinhas”, comentou.

1 – “Sem rastro”

Em julho de 2008, representantes da Comissão de Turismo da Câmara dos Deputados estiveram no local, em companhia dos diretores do Grupo Afirma e do então embaixador da Espanha no Brasil, Ricardo Peidró. A visita foi noticiada num jornal de Fortaleza. Segundo a reportagem, após “sobrevoar a área de 3 mil hectares que abrigará o empreendimento”, os integrantes da comitiva teriam declarado que, “no local, não há rastro algum de povos indígenas”. Após a “visita técnica”, os deputados, os empresários e o embaixador teriam mantido uma reunião “a portas fechadas” com o governador Cid Gomes.

http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/08/05/brasil,i=206088/DUNAS+DISPUTADAS+POR+INDIOS+E+ESPANHOIS.shtml

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