“Descolonizar, democratizar e desmercantilizar”

 Boaventura: o direito do trabalho está sendo atacado, inclusive no Brasil, por aqueles que pensam que ele pertence ao passado e que não deve haver continuação no futuro. Isso aumenta a vulnerabilidade
Boaventura: o direito do trabalho está sendo atacado, inclusive no Brasil, por aqueles que pensam que ele pertence ao passado e que não deve haver continuação no futuro. Isso aumenta a vulnerabilidade
Raquel Júnia *

Adital – Boaventura de Sousa Santos abre Seminário sobre Direito e Saúde, de cuja organização a EPSJV participou, com estas três palavras de ordem para a luta por uma sociedade transformada.

Diante de um auditório lotado, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos analisou durante cerca de uma hora e meia a conjuntura política mundial na abertura do V Seminário Internacional e IX Seminário Nacional Direito e Saúde, no último dia 27 de julho, promovido por uma parceria entre o Grupo de Direitos Humanos e Saúde Helena Besserman (Dhis) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp), a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), o Instituto de Pesquisa Clínica Evandro Chagas (Ipec) a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj) e a Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Para Boaventura, há três ações principais que devem ser colocadas em prática para que se acabe com o abismo que existe no mundo entre o norte colonizador e o sul colonizado: descolonizar, democratizar e desmercantilizar.

O sociólogo iniciou a exposição falando sobre a visão fragmentada que se tem da saúde dos trabalhadores, na qual o corpo é considerado um valor de produção e nada mais do que isso. Ele lembrou que quando uma pessoa se acidenta no trabalho ou sofre alguma doença em consequência deste, o cálculo que se faz para indenização é totalmente mecânico e esconde desigualdades brutais. “Os órgãos do cidadão têm um preço e os preços são totalmente desiguais. Onde está a igualdade dos cidadãos perante a lei, se quando eu perco ou tenho um acidente em um dedo, o meu dedo vale mais do que o dedo do taxista que me trouxe no táxi? E o dedo pode ser mais precioso e mais necessário para ele do que para mim”, questionou.

De acordo com Boaventura, existe uma justiça automática que profere uma sentença também automática no caso de um acidente com um trabalhador.O professor arrancou risos da platéia quando deu exemplos sobre como as tabelas de incapacidade no caso de um acidente aparentam rigor, mas na verdade são arbitrárias. “Quando há um acidente que tem que se fazer uma amputação traumática do pênis, na Alemanha, isso dá uma incapacidade de 20%, na Itália, a incapacidade já é de 80% e em Portugal entre 46% e 50%. Três países europeus. Isso é para mostrar que este sistema que parece totalmente científico é totalmente arbitrário”, diz.

Pensamento abissal

Boaventura sustentou que existe um pensamento abissal que norteia hegemonicamente todas as ideias. “É uma característica da modernidade ocidental que consiste em dividir a realidade em duas partes, de um lado e do outro lado da linha, mas esta linha é tão abissal a ponto de tornar invisível tudo que se passa do lado de lá da linha. Portanto, as nossas leis são universais porque funcionam do lado de cá da linha e não têm que funcionar do lado de lá. As nossas sociedades vivem todas estas distinções”, explica.

Para o professor, há vários exemplos disso. Ele explicou que o pensamento abissal tem o risco como fator constitutivo, ou seja, a ideia de que nunca é possível prever nada do outro lado da linha. Boaventura diz que em muitas cidades hoje se pratica um fascismo social, com a linha abissal do apartheid social que divide a cidade entre as zonas consideradas civilizadas e as zonas consideradas selvagens. Ele lembrou o exemplo do estado da Bahia, com um alto número de homicídios de jovens pobres e negros. “Estamos assistindo a um massacre de jovens negros, que é uma destruição massiva em câmera lenta. A polícia, que na zona civilizada protege as crianças e as ajuda a atravessar a rua quando estão indo à escola, é a mesma que os mata do outro lado da linha. É a mesma polícia, a mesma academia militar, os mesmos direitos humanos, vejam a linha abissal aí presente”.

O sociólogo explicou que existem seis principais discursos que são pilares da constituição das colônias como o outro lado perigoso da linha. O primeiro e o segundo discursos se referem ao perigo da mortalidade nas zonas tropicais, no qual a tropicalidade é uma metonímia de perigo e desastre, por conta das doenças típicas e de condições climáticas. “Curiosamente, estas doenças vão se desenvolver sem ter nada a ver com o outro lado da linha, isto é, com as populações que vivem nas colônias, mas sim com os colonizadores, os viajantes”, detalhou Boaventura.

O terceiro discurso é o das zonas coloniais como perigos porque são eminentemente de revolução e de comunismo. “É um discurso que hoje está menos forte, que vai aparecendo aqui e acolá, mas no século XX esteve muito forte”, afirmou. O professor explicou que com o fracasso da Revolução Alemã a ideia é a de que a Europa estaria livre do processo revolucionário e a revolução teria lugar na África, na América e da Ásia. “Para enfrentar este risco insegurável, se inventaram todas as teorias do desenvolvimento. O desenvolvimento foi a alternativa à revolução. Na América Latina, a Aliança para o Progresso nasce três anos depois da Revolução Cubana, em 1971, para tentar mostrar que existia outras vias de desenvolvimento que não a revolução”, explicou. Segundo Boaventura, com a queda do muro de Berlim, estas teorias foram substituídas pelo neoliberalismo.

O quarto discurso é o que define as zonas coloniais como as zonas das drogas, do narcotráfico. Para Boaventura, este discurso é o mais visível hoje e apresenta claramente as características do pensamento abissal, com duas maneiras de regulação totalmente distintas para o consumo e para a produção das drogas. “O consumo se dá nos países desenvolvidos e, portanto, do lado de cá da linha. Do lado de cá temos nossas terapias, o código penal, formas de descriminalização da droga em vários países da Europa. E do lado da produção das drogas? É a luta contra o narcotráfico, com construção de bases militares. A luta que era antes contra o comunismo, agora é contra o narcotráfico”, disse. O professor destacou que quem consome a droga não é o camponês, no entanto, é ele quem sofre a repressão.

O quinto discurso de acordo é o da fome e da desigualdade. Entretanto, de acordo com Boaventura, para o pensamento abissal, este problema só será resolvido com políticas planejadas do lado de cá da linha, ou seja, dos países desenvolvidos, e nunca a partir de uma iniciativa própria do lado de lá. Ele destacou que os países colonizados são sempre objetos do discurso de direitos humanos dos colonizadores e nunca sujeitos dos direitos humanos. Já o sexto discurso, e o mais recente, segundo o pesquisador, é o que considera as zonas colonizadas como sendo espaços de atuação do terrorismo. E mais uma vez a solução virá do lado desenvolvido, com guerras sem fim contra esta condição perigosa. “Há uma lógica abissal por trás de tudo isso que vai se acumulando”.

Contra o pensamento abissal

Boaventura propõe que se passe de um pensamento abissal para um pensamento pós-abissal. “É aquilo que vamos conquistando se percebermos com muita atenção as experiências sociais que nos batem a porta, mas que muitas vezes nossas lentes não nos permitem ver, porque são lentes abissais. Mas felizmente hoje, com o Fórum Social Mundial, com os grandes movimentos indígenas, afro-descendentes, de camponeses, de mulheres, de direitos humanos neste continente e em outros continentes, nós começamos a ver que do lado de lá da linha se produz muito conhecimento”, define.

O professor comentou que durante muito tempo todo este conhecimento das zonas colonizadas foi considerado opinião, crendice, superstição, feitiçaria, mas nunca um conhecimento válido. Os saberes valorizados sempre foram os produzidos do lado das zonas colonizadoras, que, segundo Boaventura, têm um instrumento poderoso, que é a ciência moderna, para fazer com que este pensamento seja hegemônico. Ele destacou, entretanto, que embora seja extraordinária e precise ser mantida, essa ciência tem um grande erro: pretender ser a única. “Nós hoje procuramos aquilo que eu chamo de uma ecologia do saber, a ciência moderna é muito importante se ela puder atuar ecologicamente com outros saberes, porque temos que ser pragmáticos.

O sociólogo reafirma que é preciso estudar nossos objetivos e que por trás da epistemologia sempre existe uma política do conhecimento. Retomando o subtítulo de um de seus livros – Crítica da razão indolente – Boaventura defende a necessidade de não desperdiçar as experiências do outro. “Não é para dizer que todo conhecimento é igualmente válido, não há um relativismo no meu pensamento, porque a nossa orientação é a emancipação social, é uma sociedade melhor e, portanto, não vale tudo, mas devemos dar o benefício da dúvida às formas de conhecimento, devemos lhes dar a possibilidade de entrar em nosso diálogo. E para não desperdiçarmos as experiências, precisamos reconhecer estes saberes e precisamos de justiça cognitiva. Não há justiça social global, sem justiça cognitiva global”, disse.

Ele citou os exemplos da Bolívia e do Equador, em cujos governos trabalha como consultor, onde há concepções diferenciadas sobre a natureza. Na Constituição do Equador, destaca o pesquisador, a natureza tem direitos. “Para o nosso pensamento jurídico ocidental, é absolutamente estranho a natureza pode ser objeto de direitos e não sujeito de direitos”, comenta. Boaventura ressaltou que, na verdade, a palavra usada nestes países nem é natureza, mas sim Pachamama e não há termos coloniais para designar este pensamento dos povos indígenas. “É a terra-mãe, um conceito quéchua que dificilmente traduzimos em português ou espanhol. Isso significa que a emancipação social está sendo hoje formulada em línguas que não são coloniais. Mas em nosso pensamento eurocêntrico deixamos tudo isso para fora”, critica.Ele explica que nesta concepção, a Pachamama é um ser vivente, parte de uma harmonia cósmica, em que o corpo está em rede com a natureza. “Logo, eu tenho que respeitar os ciclos vitais da natureza, para respeitar a própria integridade do seu corpo”, detalha.

Boaventura disse que este pensamento pós-abissal, que precisa ser incentivado, perpassa todos os saberes, como a medicina e a saúde. E contou a experiência de estudantes de medicina de Manaus, que no último ano de faculdade, vão para as zonas ribeirinhas para aprender a medicina tradicional, numa espécie de extensão ao contrário. “Estes médicos passam a ser ecólogos do saber, porque têm o saber da medicina ocidental eurocêntrica, que é importante, mas tem também a outra medicina tradicional. Portanto, o conhecimento é fundamental para uma concepção ampliada do direito, mas qual é o direito? É o direito à saúde entendida com esta multiplicidade de saberes”.

Como desenvolver o pensamento pós-abissal?

Para colocar em prática este pensamento pós-abissal, é preciso descolonizar o saber, defendeu Boaventura. Para o professor, este movimento de descolonização deve ser feito não para desprezar o conhecimento científico ocidental eurocêntrico, mas para colocá-lo em um diálogo cordial com todos os saberes que circulam no mundo. “Porque aí começamos a ver que a compreensão do mundo é muito mais ampla do que a compreensão ocidental do mundo”.

Como um exemplo desta necessidade de descolonizar o saber, Boaventura citou um encontro que teve em Porto Alegre com várias organizações não governamentais e também com o cacique guarani José Cirilo. “Estávamos conversando e havia muita gente ali de ONGs e, para as ONGs, a palavra chave é projeto. E nós ficamos durante uma hora falando de projetos e mais projetos, e o Cirilo a certa altura pergunta: ‘o que é um projeto?’ Ele não tinha entendido. Até que uma colega minha que é antropóloga e trabalha com o Ministério Público do Rio Grande do Sul teve a definição daquilo que eu chamo de tradução intercultural e disse: ‘Cirilo, projeto é caminharmos juntos’. ‘Ah, então, está bem’, respondeu ele. Este homem esteve uma hora excluído do debate porque estávamos usando uma palavra que era evidente para todos, mas não era para ele. Quando falamos de caminharmos juntos, ele entendeu. Isso é tradução intercultural”, relata.

Boaventura explicou que quando se coloca em prática a ecologia do saber, há sempre uma outra concepção inerente, que é a da ignorância esclarecida. Segundo o sociólogo, se trata de um conceito que ele buscou em um bispo que viveu em 1415, Nicolau de Cuza, cujo pensamento “ficou no lixo da história, assim como vários outros pensamentos ocidentais maravilhosos”. As ideias deste bispo, destacou Boaventura, não serviram para a colonização. O professor explica: “Nicolau de Cuza disse: ‘nós nunca soubemos nada, então, o que podemos fazer é lutar para passar da ignorância ignorante para a ignorância esclarecida, que é a consciência desta ignorância’. O conhecimento deste bispo, que era um grande filósofo, não tinha nenhuma validade para a conquista. Imaginem um missionário católico vir ao novo mundo com esta ideia na cabeça. Não poderia difundir a fé! Portanto, ele ficou no tinteiro da história do pensamento ocidental”.

De acordo com Boaventura, esta ignorância esclarecida exige muito saber e muito mais trabalho e uma luta contra a razão indolente. Ele ressalta que esta nova forma de justiça cognitiva pode fundar a justiça social e que terá ainda muitas outras dimensões, como a justiça política e a justiça social, e ainda a justiça histórica. Para o professor, junto com tudo isso é preciso pensar em uma nova forma de construção política para dar prosseguimento a esta consciência epistemológica. “Precisamos refundar o Estado, é uma outra forma de organizar a política, a própria burocracia que é autoritária, despótica, no seu sentido mais ingênuo, porque é aquela que é totalmente cega para o conhecimento não burocrático e que, portanto, boicota todas as outras formas de conhecimento porque não cabem dentro de seu formato totalmente estandardizado. Por isso nós temos quadros da administração altamente progressistas politicamente e altamente reacionários administrativamente, até fascistas muitas vezes, ingenuamente e subjetivamente fascistas, e não há nenhuma confusão na cabeça deles. Nós vivemos em sociedades politicamente democráticas e socialmente fascistas em muitos domínios”, diz.

Neste sentido, é preciso descolonizar e também democratizar a própria democracia. “Democratizar” é, portanto, segundo Boaventura, a segunda palavra importante neste processo de afirmação do pensamento pós-abissal e na refundação do Estado. O professor disse que há experiências de democratização na América Latina e citou o caso da Bolívia, em cuja Constituição está definido que há três formas de democracia – a representativa, a participativa e a comunitária. A última reconhece outras práticas democráticas das comunidades indígenas. “Não estamos falando de nenhum romantismo. Como não há relativismo no meu trabalho, não há romantismo: quem trabalha com movimentos sociais sabe que há líderes indígenas corruptos, assim como há brancos corruptos. Óbvio que isso não é um privilégio de nenhuma raça. Na verdade, este é o único risco que está mais ou menos democratizado, o risco da corrupção”, ressalta.

Por fim, Boaventura explicou a terceira palavra mais importante para estabelecer uma ação transformadora baseada em um pensamento pós-abissal, que é “desmercantilizar”. “Nós vivemos em mundo que se corre o risco de passar simplesmente de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado, onde tudo se vende e tudo se compra. As convicções políticas hoje se compram e se vende”, analisa. Ele afirma que toda a sociedade está organizada hoje na ideia do que tem preço e do que não tem preço. E esta é a forma de mercantilização da vida, que faz com que o capitalismo não seja um modo de produção, mas um modo de civilização. O professor comenta o quanto é importante desmercantilizar a saúde e a educação, por exemplo, que são patrimônios comuns da humanidade, e assim, irmos caminhando para formas mais abrangentes de direitos. “Os nossos instrumentos são ainda muito embrionários. Mas começamos a pensar como ignorantes esclarecidos. Isto é, começamos a ver as tarefas que estão pela frente: através da descolonização, da democratização e da desmercantilização, começamos a pensar formas densas de justiça social, que coexistam e se fundam numa justiça cognitiva, sexual, histórica. E que se criem construções de sentido que façam da aventura humana uma aventura planetária, que merece apenas ser vivida exatamente porque é vivida desta forma solidária”, concluiu Boaventura de Sousa Santos.

* Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), Fiocruz

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?boletim=1&lang=PT&cod=49887

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