Hidrelétricas ameaçam ritual indígena protegido pelo Iphan

Local: São Paulo – SP
Fonte: ISA – Instituto Socioambiental
Link: http://www.socioambiental.org/website/index.cfm

Vincent Carelli

Em fevereiro de 2009, o projeto Vídeo nas Aldeias, em parceria com o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), do Ministério da Cultura, e a Opan (Operação Amazônia Nativa), iniciou as filmagens do mais longo ritual indígena da Amazônia brasileira, o Yaõkwá, dos índios Enawenê Nawê.  O Iphan estava iniciando o processo de patrimonialização e ontem, 25 de maio, o Diário Oficial da União trouxe a informação de sua inscrição no livro de Registro de Celebrações.  Com duração de sete meses, é um dos quatro cerimoniais que os Enawenê realizam todo ano.  Com um ciclo cerimonial de 11 meses para reverenciar, alimentar e agradar o panteão de espíritos que podem ser perigosos ou protetores, os Enawenê se alimentam exclusivamente de peixes.

No ritual, os clãs que incorporam os espíritos naquele ano se esparramam pelos igarapés de suas terras, construindo barragens para capturar os peixes nobres que baixam nos igarapés após a piracema.  No ano passado, os peixes não retornaram da piracema como de costume.  Era a primeira vez que isso acontecia.  O período das chuvas havia se estendido além do normal e todos os sinais da natureza que tradicionalmente indicam o tempo da descida dos peixes falharam.  O descompasso da agenda cerimonial Enawenê com as mudanças climáticas parecia visível e desastrosa.  Desorientados, os índios se perguntavam por que os peixes não tinham subido.

Confira o vídeo.

Dois meses depois, os índios pressionaram a Funai para a compra de peixes de criatório.  Em três dias a Funai conseguiu dinheiro das construtoras da PCH (Pequena Central Hidrelétrica) Telegráfica para a compra de três mil quilos de peixe tambaqui para darem início ao capítulo mais importante do Yaõkwá.

Pode parecer muito, mas em tempos normais eles pescariam e moqueariam 10 vezes mais, para serem trocados e consumidos nos quatro meses seguintes na aldeia.  Em 2009, por conta disso tudo fez com que o ritual tivesse uma versão compactada, e a tradicional troca generalizada de raquetes de peixes no páteo da aldeia não aconteceu.  Além de ser a única fonte de proteína, o peixe ainda é a moeda de troca da sociedade Enawenê.  Como mandar colocar o estojo peniano no filho adolescente, como fazer as oferendas para os espíritos pouparem o seu filho que está doente, se não houver peixe para pagar?

Os Enawênê Nawê sabem muito bem que terminada a temporada de pesca é preciso romper a tapagem para permitir que no ano seguinte os peixes subam novamente para desovarem nas cabeceiras dos igarapés.  Imaginem o pavor quando souberam em 2008 que dezenas de barragens permanentes estavam sendo construídas nos rios que atravessavam suas terras!  Impactados com a notícia, em 11 de outubro de 2008, ocuparam e destruíram um dos canteiros de obras.  No final de março de 2009, pressionados por outros povos indígenas da região, eles finalmente assinaram o Plano de Compensação de 1 milhão e meio de reais pela construção de oito PCHs no Rio Juruena pelos empreendimentos da empresa do então governador de Mato Grosso, Blairo Maggi.  O Plano de compensação, que não tem nada de ambiental, consiste numa lista de compras de veículos e motores de popa, para quem não tem nem estrada para chegar na aldeia, o que deverá agravar a dependência de recursos para a compra de gasolina.

A única coisa que os Enawênê ainda se recusam a permitir é a pesquisa em seu próprio território, coisa que a EPE – Empresa de Pesquisas Energéticas – insistia em fazer, ameaçando os índios inclusive com intervenção da Casa Civil, respaldada nas ressalvas da sentença dada pelo STF, em março de 2009, no caso da Reserva Raposa-Serra do Sol.  Se a mudança climática já revelava a fragilidade da sobrevivência física e cultural dos Enawenê Nawê, imaginem quando as comportas estiverem fechadas e todo este Complexo Hidrelétrico o estiver implantado na região.  O que será do ritual do Yaõkwá?  Quem sabe agora, inscrito no livro de Registro e Celebrações do Patrimônio Imaterial Brasileiro, o ritual consiga um pouco mais de proteção, apesar das PCHs e das mudanças climáticas.

(*) cineasta, diretor do Vídeo nas Aldeias e vencedor do Festival de Gramado 2009 com o filme Corumbiara.

http://www.amazonia.org.br/noticias/noticia.cfm?id=356183

Comments (1)

  1. Terrorismo ambiental. Não temos institucionalidade para coner a agressão. As sociedades indígenas estão desamparadas, enquanto os civilizados viajamos no conhecimento…

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